É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores a partir dos sete anos de idade no ensino fundamental?

A relativização da obrigatoriedade da matrícula da criança e do adolescente em tempos de COVID-19

Mariane Bosa de Lins Neves Advogada. Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pelo CESUSC. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Membro do Grupo de Pesquisas de Direito de Família e Sucessões GFAM/UFSC/CNPQ.

Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões OAB/SC.

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As medidas de isolamento e quarentena adotadas para controlar o contágio do covid-19, restringiram diversas atividades profissionais e suspenderam as aulas presenciais na rede de ensino pública e privada em todo o território nacional.

De acordo com a Medida Provisória n. 934 de 1º de abril de 2020, os estabelecimentos de ensino de educação básica, excepcionalmente, estão dispensados da obrigatoriedade de observância do mínimo de 200 dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual de 800h para o ensino infantil e fundamental e 1.400h para o ensino médio, conforme disposto no inc. I, §1º do art. 24 e no inc. II do art. 31 da Lei n. 9.394/1996, Lei de diretrizes e bases da educação nacional.

O Brasil está em estado de calamidade pública, conforme Decreto n. 6/2020 do Congresso Nacional publicado em 18 de março de 2020. Portanto, não há como precisar quando as escolas retomarão o seu funcionamento presencial, tampouco como se dará a compensação dessas aulas perdidas durante o confinamento. Mesmo que alguns Estados tenham estipulado um prazo para a suspensão das aulas, não há como afirmar que não será prorrogado por mais tempo. Se analisarmos os países da China e da Itália, que tiveram início de casos de infectados pelo coronavírus muito antes do que o Brasil, ainda estão com as aulas presenciais suspensas.

Nesse contexto, muitos pais estão com seus recursos reduzidos, com a interrupção ou redução das suas atividades laborais, bem como, tiveram que assumir sozinhos todos os cuidados com os seus filhos, inclusive aqueles com a educação.

É sabido que a maior parte da população se esforça para prover uma educação de qualidade à sua prole, na maioria dos casos, com muito sacrifício. Num momento em que grande parte da população passa por dificuldades financeiras, pais que possuem filhos matriculados em escolas particulares, se encontram impossibilitados de efetuarem o pagamento integral da mensalidade escolar sem a prestação do serviço. Em contrapartida, as escolas permanecem, em sua maioria, irredutíveis acerca da suspensão da cobrança ou até mesmo de um abatimento da anuidade escolar, fazendo com que os pais tenham que rescindir o contrato com a escola.

Ante esse cenário, os pais que necessitam rescindir o seu contrato com as redes privadas de ensino, especialmente aqueles da educação infantil, em que não há possibilidade de substituição das aulas por videoconferência, estão sendo surpreendidos com a exigência de atestado de vaga do aluno em outra rede de ensino, sob pena de comunicação ao Conselho Tutelar por evasão escolar, nos termos do art. 56, II da Lei 8.069/90, haja vista a obrigatoriedade de educação básica dos quatro aos dezessete anos, prevista no art. 4º, inc. I da Lei 9.394/1996 e art. 208 da Constituição Federal.

Essa obrigatoriedade adveio com a Emenda Constitucional n. 59/2009, que alterou a redação do inc. I do art. 208 da Constituição Federal, estabelecendo que é dever do Estado garantir a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade, assegurando inclusive a sua oferta gratuita para todos os que não tiveram acesso a ela na idade própria. O inc. IV do referido dispositivo disciplina que a educação infantil, em creche e pré- escola, às crianças até cinco anos de idade.

Para regular a nova disposição constitucional, foi promulgada a Lei n. 12.796/2013 alterando alguns dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de n. 9.394/1996 (LDB), reafirmando a obrigatoriedade da disposta pela Constituição (art. 208). A norma determina ainda, em seu art. 6º que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade.

Ressalte-se que por ser obrigação do Estado em fornecer a educação, a obrigação dos pais em matricular os seus filhos é condicionada à existência de vagas na rede pública, servindo, inclusive, como justificativa de descumprimento dessa obrigação por parte dos pais, a espera da disponibilização de vaga no ensino público e gratuito.

Com as alterações da LBD, a educação básica foi organizada em a) educação infantil, sendo creche para crianças de até 3 anos de idade e pré- escola para crianças de quatro a cinco anos de idade; b) ensino fundamental a partir dos 6 anos; e, c) ensino médio.

Ainda, a Resolução n. 2 de 9 de outubro de 2018 do Ministério da Educação definiu diretrizes acerca da data de corte para a matrícula inicial, a partir de 2019 (art. 6º), de crianças na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Sendo obrigatória a matrícula na pré-escola, segunda etapa da Educação Infantil e primeira etapa da obrigatoriedade assegurada pelo inc. I do art. 208 da CF, de crianças que completam quatro anos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula inicial (art. 3º §2º).

Note-se, portanto, que a obrigatoriedade a partir dos 4 anos é para crianças que possuam essa idade até dia 31 de março. As crianças que completam quatro anos de idade após essa data, devem ser matriculadas em creches, primeira etapa da Educação Infantil (art. 3º §3º).

Já no Ensino Fundamental é obrigatória a matrícula de crianças com seis anos completos ou a completar até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula (art. 4º § 1º). A Resolução do MEC assegura ainda, a progressão das crianças que já estavam matriculadas até a data da sua publicação, sem interrupção, ressalvando que o direito de continuidade do percurso educacional é da criança, independentemente da permanência ou de eventual mudança ou transferência de escola. (art. 5º e 7º).

A obrigação dos pais ou responsável em matricular os seus filhos na rede regular de ensino também está disposta no art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), bem como no exercício do poder familiar conferido aos pais, conforme disposto no art. 22 do mesmo diploma legal, no art. 229 da Constituição Federal e, no art. 1.634, I do Código Civil.

Sendo que, a inobservância dos deveres decorrentes do poder familiar, pode acarretar na suspensão (art. 1637 CC), extinção (art. 1635 CC) ou perda (art. 1638  CC)  do  poder familiar,  entre outras medidas previstas no art. 129  do  Estatuto  da  Criança  e  do  Adolescente.  Incorre  ainda,  em infração administrativa, os pais que descumprirem, dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao poder familiar (art. 249, ECA), podendo lhes ser aplicado multa de três a vinte salários mínimos, e o dobro em caso de reincidência.

Conforme disposto no referido artigo, necessariamente, deve estar configurado o dolo ou a culpa dos pais para a caracterização do ato ilícito. Guilherme de Souza Nucci (2018, p. 902) ao comentar o dispositivo afirma que: “Muitos pais ou responsáveis terminam por descumprir seus deveres de cuidado, proteção, sustento e educação das crianças e adolescentes por motivos variados, mas sabem fazê-lo de maneira voluntária; entretanto, essa voluntariedade nem sempre é reprovável.”

Da mesma forma, o art. 246 do Código Penal prevê aplicação de pena de detenção de quinze dias a um mês ou multa aos pais que, sem justa causa, deixarem de prover instrução primária de filho em idade escolar.

Desse modo, vimos que para a responsabilização dos pais deve haver dolo ou culpa e ausência de justo motivo. Notadamente, uma pandemia justifica o descumprimento dessa obrigação, em atendimento à obrigação de garantir a saúde da criança e do adolescente enquanto perdurar a situação de emergência que assola o país. Não podendo nenhuma sanção ser imputada aos pais durante esse período de quarentena, em que a ordem é de isolamento.

Importante destacar ainda, que o art. 56, inc. II do ECA determina, que os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares. Vejam, que a determinação da comunicação, portanto, refere-se apenas ao ensino fundamental. Sendo, abusiva e até coercitiva, a escola condicionar a rescisão contratual com a apresentação de atestado de vaga em outra unidade de ensino e assinatura dos pais em declaração de ciência da comunicação ao Conselho Tutelar por evasão escolar.

Como norma máxima, a Constituição Federal determina, em seu art. 227, em absoluta prioridade, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. No mesmo sentido, o Estatuto da Criança e Adolescente reforça essa proteção integral em seus arts. 3º e 4º.

Ainda, a Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe em seu art. 3º, inc. I que: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.”

Acerca do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, a doutrinadora Josiane Petry Veronese (2019, p. 571) leciona que: “Para a concretização dos direitos de crianças e adolescentes em consonância com o que preceitua a Doutrina da Proteção Integral, todas as ações voltadas para a satisfação dos direitos desses sujeitos vulneráveis devem levar em consideração aquilo que atender ao melhor interesse deles.”

Verifica-se, portanto, que tanto a educação como a saúde são direitos fundamentais da criança e do adolescente, devendo ser resguardados em prioridade absoluta, sob o prisma do melhor interesse desses indivíduos em desenvolvimento.

Não se olvida os esforços das escolas em se adaptar para prestar aulas de forma virtual aos seus alunos, mas fato é, que para crianças de tenra idade, essa medida não será eficaz. Da mesma forma que devemos nos atentar que o uso excessivo de telas pode causar sérios danos físicos e psicológicos nas crianças e adolescentes, como ansiedade, irritabilidade, depressão, transtornos de sono, de déficit de atenção, de alimentação, entre outros, conforme alerta a Sociedade Brasileira de Pediatria, em seu Manual de Orientação acerca da saúde de crianças e adolescentes na era digital.

Nesse diapasão, importante destacar as recomendações da contidas no respectivo manual de limitar o uso de telas ao máximo de um hora por dia a crianças entre dois e cinco anos; máximo de duas horas por dia para crianças entre seis e dez anos; máximo de três horas por dia a crianças de onze anos e adolescentes entre doze e dezoito anos, em todas as idades sempre com supervisão dos pais ou responsáveis. Contudo, nem todo genitor conseguirá acompanhar as aulas com o seu filho ou aplicar às atividades em casas, sendo que ainda necessita trabalhar e cuidar dos afazeres domésticos, restando prejudicada a educação como um todo neste ano letivo.

Desse modo, conclui-se que a exigência da obrigatoriedade da matrícula, enquanto perdurar a suspensão das aulas presenciais, como medida preventiva de contaminação pelo covid-19, deve ser relativizada, haja vista que por um motivo de força maior, alheio à vontade de todos, as crianças e os adolescentes estão impossibilitados de frequentar a escola, bem como os pais encontram-se sem recursos para manter os seus filhos matriculados em redes de ensino particular. No que não lhes deve ser aplicada nenhuma sanção, por estarem justamente cumprido o seu dever de proteção à sua prole, mantendo os filhos em casa.

Na atual situação de pandemia, em que as determinações são de isolamento, não há dúvida de que o melhor interesse da criança e do adolescente, nesse momento, é prioritariamente, a sua saúde. Desse modo, se nossos filhos irão se formar com dezessete, dezoito ou dezenove anos, pouco importa agora, conquanto que eles estejam vivos e saudáveis até lá.

Referências

NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 4. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.

Sociedade Brasileira de Pediatria. Rio de Janeiro: SBP. Manual de orientação: saúde de crianças e adolescentes na era digital. Disponível em:

<//www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2016/11/19166d-MOrient- Saude-Crian-e-Adolesc.pdf> Acesso em: 18 abr. 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente: novo curso – novos temas / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM

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