Especial Consciência Negra - Dura realidade enfrentada pelos remanescentes de quilombos (07' 28")
Trilha "Canto das Três Raças", de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro e interpretada por Clara Nunes
Os quilombos espalharam-se por todo o território brasileiro, a partir do século dezessete, como uma das principais formas de combate e resistência à escravidão. Na área quilombola, os negros buscavam a liberdade, a dignidade e o resgate da
cultura que deixaram na África. Hoje, a luta desses povos tem um valor simbólico no Brasil. Pode-se até dizer que o mais conhecido dos quilombos, o de Palmares, em Alagoas, faz parte do imaginário popular. Seu principal líder, Zumbi, foi reconhecido oficialmente como herói nacional. E a data de sua morte, 20 de novembro, é lembrada a cada ano como o Dia da Consciência Negra.
Mas apesar do reconhecimento simbólico da importância da luta quilombola, os descendentes daquelas primeiras
comunidades negras rurais continuam marginalizados socialmente. Os remanescentes de quilombos enfrentam problemas sérios, principalmente no que diz respeito à titulação de suas terras. Segundo pesquisa elaborada pelo Centro de Cartografia da Universidade de Brasília, das 2.228 comunidades quilombolas no Brasil, apenas 119 tiveram território regularizado até meados deste ano.
A articuladora da Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (Conaq), Jô Brandão, explica que a falta de titulação
dificulta a condução de políticas nessas áreas e impede que as comunidades tenham acesso a condições adequadas de saúde e educação.
"Ou seja, você não tem saneamento, não tem moradia adequada e tem uma educação universal que não respeita a diversidade étnica desses grupos. Sem contar o alto índice de analfabetismo que essas comunidades são submetidas. Você tem crianças e jovens que só começam a estudar com oito, dez anos e em grupos e salas multiseriadas, onde têm várias etapas e faixas etárias juntas. O aprendizado é praticamente impossível dessa forma.
Jô Brandão reconhece que o governo Lula avançou no tratamento da questão quando editou um decreto, em 2003, para regulamentar o artigo da Constituição que garante aos quilombolas o direito à terra. O problema, segundo ela, é que desde então, somente duas áreas foram regularizadas. Ou seja, na prática, pouco mudou.
Para o professor do Departamento de Geografia da UnB Rafael Sanzio, a lentidão no processo de
regulamentação revela o preconceito. Responsável pelo levantamento cartográfico das comunidades quilombolas realizado pela UnB, o professor diz que ainda existe uma mentalidade de que a terra do negro é a África e não o Brasil. Mas ele alerta que, para o remanescente de quilombo, o território é sagrado e representa a ligação da comunidade com suas raízes africanas. Segundo Rafael Sanzio, a sociedade precisa entender que garantir terra e políticas adequadas aos quilombolas traz benefícios a todos
os brasileiros.
"Os benefícios dessas políticas públicas não são simplesmente para essas populações que estão na ponta da linha, as comunidades quilombolas ou outras tradicionais. É para o Estado brasileiro que está reconhecendo esse patrimônio cultural, esse patrimônio inestimável que são essas comunidades nacionais. Nelas, há uma sabedoria imensa para o país. Lá tem as soluções tecnológicas que construíram esse país. Seja do ciclo da mineração, do ciclo da cana, do ciclo do café, do ciclo do cacau. O melhor da tecnologia dos trópicos- não podemos perder de vista- que existia no continente africano e veio para a América e veio para o Brasil".
Mozar Dietrich, assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário, reconhece as sérias dificuldades por que passam os quilombolas. Mas ele destaca que a situação é complexa porque a maioria das comunidades encontram-se em áreas particulares e sofrem a pressão de fazendeiros e grileiros.
"Comunidades estão sendo pressionadas, invadidas, expulsas, sendo griladas. Normalmente você encontra comunidades de 50, 100 famílias sobre área de meio hectare, um hectare, 20 hectares, que foi o que sobrou. Nâo se trata de regulamentar esse território, mas buscar seu território original o melhor possível."
Mozar Dietrich argumenta que a lentidão no atual processo de titulação acontece porque está se falando de terras particulares, em sua maioria.
"Isso é uma ação bastante difícil. Umas poucas comunidades estão sobrepostas em terras públicas, que é mais fácil de titular. Foi isso basicamente o que foi feito em governos anteriores, foram tituladas 14 áreas somente em terras públicas. Portanto, é um procedimento mais simples. O Incra vai lá, faz um estudo e procede a titulação porque não tem nenhum invasor, nenhum ocupante sobre aquela terra ou um título de um proprietário que precisa ser desapropriado."
Segundo Mozar Dietrich, a situação dos quilombolas tende a melhorar porque o governo Lula
finalizou um plano nacional voltado à regularização das terras dessas comunidades, o que seria inédito na história do país. Além disso, a contratação de novos servidores do Incra, a partir do ano que vem, deve permitir a titulação de mais 40 territórios quilombolas. O assessor do Ministério do Desenvolvimento Agrário Mozar Dietrich destaca, ainda, que o Estatuto da Igualdade Racial, se aprovado pela Câmara, dará mais segurança jurídica à questão.
A articuladora da Coordenação Nacional de
Comunidades Quilombolas, Jô Brandão, é menos otimista. Para ela, o Estatuto somente vai melhorar a situação dos quilombolas se a sua implementação for acompanhada de perto.
"A população negra precisa pensar esses mecanismos de como vamos monitorar implantação e o desenvolvimento do Estatuto da Desigualdade do ponto de vista da efetividade das ações. Acreditamos que esse Estatuto traz benefícios, principalmente, na questão da regularização em pensar políticas que promovam a igualdade racial neste país e como pensar mecanismos de superar desigualdades, onde a população negra, em especial a rural, sobrevive com os piores índices."
O Estatuto da Igualdade Racial, para virar lei, precisa ser aprovado pelo Plenário da Câmara. Segundo o presidente da Câmara, Aldo Rebelo, a proposta é uma das prioridades da pauta de votações este restante ano.
De Brasília, Ana Raquel Macedo