A mão da punheta é a mesma de um poeta

Lugares estranhos e maravilhosos para enfiar a cabeça – Por Hugo Lorenzetti Neto

Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.

Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).

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Lugares estranhos e maravilhosos para enfiar a cabeça

Uma poeta amiga minha me respondeu muito tempo depois de eu ter mandado algo bem pessoal por WhatsApp. Pessoal e trivial, não doeu. Disse que estava com a cabeça enfiada no cu.

Sabe, isso é bom. Eu mesmo estou com a minha assim esses dias e não consegui transcrever a conversa com Paulo Sérgio, meu amigo que traduziu o Otto Gross. Aliás, a segunda edição de “Por uma psicanálise revolucionária”, da Editora Annablume, está disponível. Comprem, leiam e mudem o mundo comigo, estou esperando todo mundo aqui pra gente formar o bando, a horda.

Estou com mil projetos – de tradução inclusive. Alguns são bomba relógio, outros não. Um deles eu vou colocar aqui, um dos capítulos (ou episódios, ou meditações, ou contos, não sei e acho lindo não saber) de “A morte propaganda”, de Hervé Guibert, que estou traduzindo devagar, por prazer, por imitação de gesto, mas posso acelerar o processo se alguma editora me pedir. Aliás, a qualidade dos gestos, só vendo mesmo a seguir.

Guibert, como Leonilson, seria meu namorado ou coisa parecida, se não tivesse morrido. Também o Lauro Corona e o Cazuza. Estou solteiro porque esse tipo de boy sumiu. Mas não era isso. Guibert tem uma escrita muito conhecida (e extensa) que ele produziu após saber de sua infecção com o HIV. Mas “A morte propaganda” é de antes.

Os relatos do romance (assim está oficialmente catalogado) são lindíssimos, sexuais, sensuais e também pornográficos e violentos e escatológicos. A linguagem é encantadora, com palavras de registro elevadíssimo compartilhando o texto com nomes vulgares para atos sexuais e partes do corpo, e todas essas com neologismos, ou usos singulares de formação de palavras em francês. Foi o que tentei fazer, manter esses três tipos de escolhas, e de preferência inventando palavras para substituir as invenções do meu boy, quero dizer, de Hervé Guibert.

Faz-se muita leitura teleológica: um libro profético, porque o desejo viria a matar Guibert. Num dia não combativo como hoje acho injusto: que desejo intenso não caminha com a morte? Que liberdade absoluta do corpo não passa pela violência do desejo, não resvala ou mergulha na pornografia? Como hierarquizar secreções e ruídos senão dentro de uma cultura de repressões e hierarquias? E como sair dessa cultura SEM UIVAR?

Escolhi uma tradução que fiz há pouco mais de um ano. Revi algumas poucas questões no texto. É bom quando ele parece não mais te pertencer. Não pertence, é tradução, mas pertence porque eu traduzi: acho que quem lê aqui sabe dessa questão sem resposta.

Eu vou voltar ao Paulo e à conversa sobre tradução de teoria. Vou porque quero, e só mudo de ideia se eu não quiser mais. Não é como se alguém precisasse do que quero dizer. Mas é legal, e acho que quem vem aqui ler ia curtir. Não sei quem você é mas você é um amor, ironia ou cinismo zero, juro. Se eu não escrever, conversaremos ao vivo e você vai poder me falar do que traduz também, ou lê, ou sei lá. Sobre como é para você essa histórias de de vez em quando e de bom grado enfiar a cabeça no cu.

Por agora, olha só a investigação do desejo que Guibert fez com o dele:

Monologue I – Charcuterie Esthétique

Être dans une salle de dissection et dépecer un cul. Autopsier cet endroit de mon corps dont la pénétration par une bite, l’ongle du doigt calleux qui écrit et qui branle, griffe avec délice mes parois intestinales, ou le râpeux d’une langue se durcissant, me fait bander, jouir, pisser mon sperme. Écarter les deux fesses blanches, taillader le muscle au moyen d’un scalpel, épingler dans le liège de la table les fibres déchiquetées pour arriver au trou. Couché sur le dos, recouvert d’un drap jusqu’à la tête, les jambes repliées sur le ventre, les deux mains maniant avec dextérité spatules, pinces recourbées ou incisives, ciseaux ronds. Une fois arrivé au trou, déplier les plissés roses comme les lamelles d’un éventail de Russie tsariste, plumes voluptueuses d’autruche noire caressant la rosette. Commencer par élargir le trou en y rentrant un doigt, puis la main tout entière trempée dans la vaseline. Ne pas avoir peur d’avoir recours à un os, tibia, qui tiendra lieu de godemiché. Armé d’une lunette d’ophtalmologiste, jeu de miroirs microscopiques, la science au service de l’érotisme, stroboscoper les chairs distendues. La tête, le groin reniflant entre les deux jambes. Petit faisceau électrique reproduit par la mathématique de la lunette et s’infiltrant dans le cul. Y mettre la langue, introspecter le gouffre miniature dont les parois rosacées frémissent au toucher du scalpel. À l’aide d’un petit ciseau, en découper l’intérieur, les bords, ces divins tuyaux à merde. Détendre les plissés de façon circulaire, en faire des rubans, de longues écharpes de galantine rose. Ma rosette devient un prototype vestimentaire : j’ai le cul lyrique. À l’intérieur, dédales compliqués, poches à crever, membranes, souterrains, glottes anales. Le sentir défoncé, troué par le fer instrumental. Le faire dégorger, baver, cracher. L’entendre chier le sperme à toute gargouille, spasmodier. Ne pas ressembler à une souris blanche, avoir de l’élégance jusque sur la tablette de liège.

Monólogo I – Delicatessen estética

Estar numa sala de dissecação e despedaçar uma bunda. Autopsiar desse lugar de meu corpo onde a penetração de uma rola, a unha de um dedo caloso que escreve punheta, arranha com deleite minhas paredes intestinais, ou o áspero de uma língua se enrijecendo, faz que me excite, goze, mije meu esperma. Separar as duas nádegas brancas, talhar o músculo com um bisturi, alfinetar na cortiça da mesa as fibras retalhadas para chegar ao cu. Deitado de costas, coberto com um trapo até a cabeça, as pernas dobradas sobre o ventre, as duas mãos manuseando com destreza espátulas, alicates de fixação e de corte, tesouras arredondadas. Uma vez chegando ao cu, desdobrar as pregas rosadas como as lâminas de um leque da Rússia czarista, plumas voluptuosas de avestruz negro acariciando a roseta. Começar por alargar o buraco e enfiar o dedo, depois a mão toda besuntada de vaselina. Não ter medo de recorrer a um osso, tíbia, que servirá de dildo. Armado com uma lupa de oftalmologista, jogo de espelhos microscópicos, a ciência a serviço do erotismo, estroboscopar as carnes distendidas. A cabeça, o focinho farejando entre as pernas. Pequeno feixe elétrico reproduzido pela matemática da lupa e se infiltrando na bunda. Enfiar a língua aí, introspectar o abismo em miniatura cujas paredes rosáceas tremem ao toque do bisturi. Com o auxílio de uma pequena tesoura, decupar o interior, as bordas, esses divinos tubos de merda. Afrouxar as pregas em movimento circular, fazendo fitas, longas echarpes de galantina rosa. Minha roseta se transforma num protótipo indumentário: tenho a bunda lírica. Em seu interior, dédalos complexos, bolsas estourando, membranas, subsolos, glotes anais. O sentir desvirginado, perfurado pelo ferro instrumental. O fazer vomitar, babar, cuspir. O ouvir cagar o esperma, a todo estrondo, espasmar. Não me assemelhar a um rato de laboratório, manter a elegância mesmo sobre um painel de cortiça.

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