Qual e o trauma do Charlie?

Atenção, pois este post contém spoilers de Hereditário! Prossiga com cuidado.

Se um recém conhecido resolve lhe consolar em um momento de luto apresentando a você um ritual repleto de palavras esquisitas em uma língua incompreensível, talvez a resposta mais óbvia seja obrigada, talvez mais tarde. Principalmente se ele for Ann Dowd, considerando seu histórico em The Handmaid’s Tale. Este é um dos grandes ensinamentos de Hereditário, tido por muitos como o melhor filme de terror de 2018.

Dirigido e roteirizado pelo estreante em longas Ari Aster e do mesmo produtor do sucesso A Bruxa (2015), Hereditário conta a perturbadora história de uma família de luto pela perda de sua matriarca Ellen, a mãe de Annie (Toni Collette) e avó de Peter (Alex Wolff) e Charlie (Milly Shapiro). Após o funeral, fenômenos estranhos começam a acontecer na casa habitada pela família, o que acaba culminando em novas desgraças e um mistério sobre a morte da matriarca.

O filme é assustador e envolvente, e em muito se assemelha a clássicos como O Exorcista (1973) e O Bebê de Rosemary (1968), tendo sido visivelmente inspirado por este último. Diferente de obras de terror que se apoiam no jumpscare (filmes repletos de sustos, feitos para colecionar gritos da plateia), Hereditário foca na coesão e atmosfera de sua trama para atordoar o telespectador com um terror psicológico e algumas cenas explícitas de violência avassaladora.

Apesar de um final em sua maioria conclusivo, o longa termina com alguns questionamentos em aberto, que serão abordados a seguir.

No fim do longa, descobrimos por meio de um diálogo entre Joan (Dowd) e Peter que sua avó era conhecida como Rainha Leigh e fazia parte de uma seita satânica que tinha por objetivo procurar um novo corpo para ser o receptáculo do Rei Paimon na Terra.

De acordo com a demonologia, Paimon é um dos oito Reis do Inferno e Rei do Oeste, em referência à posição de sua casa no submundo. No ocultismo, ele é responsável por ensinar todas as artes, ciências e conhecimentos secretos, podendo revelar todos os mistérios da terra, além de trazer harmonia e dignidade a seus seguidores.

O diretor de Hereditário disse em uma entrevista que optou por usar Paimon em sua narrativa em vez do próprio demônio unicamente pelo fato de Satanás já ser uma carta batida em diversas obras. Acerto de Aster, que trouxe uma nova camada ao longa, tecendo a narrativa conforme as características específicas de sua entidade escolhida.

Uma delas é o símbolo que representa o selo de Paimon. Ele é visto em diversos momentos ao longo do filme, aparecendo primeiro no colar usado por Annie, idêntico ao de sua mãe, que é sepultada com ele. Mas principalmente, ele aparece no poste que é responsável por decapitar Charlie, em uma reviravolta para a plateia, que pelo marketing do filme acreditava ser a menina a protagonista.

A influência da escolha pela entidade Paimon também está presente na profissão de Anne. Paimon é um apreciador das artes e das ciências, o que é representado pelo trabalho de Annie, que constrói casas em miniatura para uma galeria de arte. O ímpeto pelas artes também é visto em Charlie, que usa de seus desenhos como forma de expressar.

Paimon ainda é descrito como mestre da verdade, capaz de responder a qualquer pergunta feita a ele. Isso se reflete na personalidade de Annie, que acaba sendo duramente sincera em momentos como aquele em que diz a Peter que nunca quis ser mãe dele e que tentou o abortar diversas vezes.

Outra peculiaridade de Paimon que serve à narrativa de Hereditário é o fato de que no longa esta entidade prefere possuir homens a mulheres. Essa informação valida o diálogo que Annie tem com Charlie no primeiro ato do filme. Nele, após Annie dizer à filha que ela era a neta favorita de Ellen, Charlie retruca afirmando que sua avó preferiria que ela tivesse nascido homem.

A preferência da matriarca se justifica porque ao ter nascido mulher, Charlie serviria apenas de receptáculo provisório de Paimon. Oportunamente, ele seria transferido para o corpo de um homem, no caso, o de Peter.

Na primeira cena em que Annie vai ao grupo de apoio ao luto, ela fala sobre seu histórico familiar. Sua mãe tinha transtorno dissociativo de identidade, seu pai morreu de inanição decorrente de uma depressão severa e seu irmão era esquizofrênico, tendo cometido suicídio ainda jovem e culpado Ellen pelas vozes que atormentavam sua mente.

O suicídio do irmão de Annie é particularmente relevante para a trama do filme. Provavelmente, Ellen criou seu filho para entregar seu corpo a Paimon. No entanto, o rapaz interpretou o chamado da entidade como sinais de esquizofrenia. Não suportando mais viver desta forma, suicidou-se como forma de silenciar para sempre as vozes que escutava.

Com a morte de seu único filho homem, Ellen precisou encontrar um novo receptáculo.

E por que não usar seu genro, um corpo masculino já adulto e disponível?

Aqui, a dica está no título do filme: o estado de se conectar com Paimon é algo hereditário. Dessa forma, por não ser um parente consanguíneo descendente da linhagem de Ellen, Steve (Gabriel Byrne) não seria um receptáculo viável para receber Paimon.

Dessa forma, a atenção de Ellen recai para seu neto. Entretanto, o mau relacionamento que tinha com sua filha inviabilizou que ela fizesse parte do crescimento de Peter. No grupo de apoio ao luto, Annie revela que se sentiu muito culpada de não ter envolvido sua mãe na vida de seu filho. Por esta razão, acabou entregando Charlie totalmente aos seus cuidados. Quando Annie diz “Eu dei Charlie a ela“, tal afirmação soa quase como uma oferenda, da mesma forma que Ellen ofertou a menina a Paimon.

Em outro momento, Annie comenta com Charlie que sequer podia amamentá-la, pois sua mãe queria zelar sozinha pela criança. Na verdade, Ellen estava apenas se certificando de que sua neta cresceria forte, já que estava possuída por Paimon. A própria escolha do nome “Charlie”, majoritariamente masculino, revela que a menina estava possuída por Paimon desde antes de seu nascimento, como já foi confirmado pelo diretor em uma entrevista ao Variety. Assim, nunca existiu uma Charlie. Somente Paimon.

Dessa forma, quando Joan promete a Annie que o ritual convocará Charlie e em vez disso é invocado Paimon, tecnicamente ela disse a verdade, já que Paimon e Charlie são um só.

Conforme já mencionado, sempre foi parte do plano de Ellen e de seu clã transferir Paimon de Charlie para Peter, já que a entidade não poderia possuir o corpo de uma menina para sempre. Sendo assim, é possível que todos os acontecimentos da narrativa, inclusive a morte de Ellen, tenham sido em algum nível planejados ou previstos por ela, já que tudo caminharia para a conclusão da possessão de Peter.

Mas e Annie? Teria tido ela alguma participação no plano de sua mãe?

Acreditamos que em algum grau subconsciente é provável que sim. Sabemos que Annie tinha noção de que sua mãe era uma pessoa difícil, reservada, e que tinha “amigos secretos” com quem performava rituais estranhos, conforme exposto por ela no tributo fúnebre feito quando da morte de Ellen.

Além do mais, quando Annie engravidou de Peter, ela revelou que não queria ter o filho e fez de tudo para abortá-lo. Entretanto, todas as suas tentativas de aborto deram errado e Peter acabou nascendo. Será que Annie de alguma forma sabia do plano de sua mãe e por isso não queria que o menino viesse ao mundo?

Aliado a isso, temos o fato do sonambulismo de Annie e do episódio em que ela quase queimou seus filhos enquanto eles dormiam. Assustada, Annie despertou do sono após ter banhado seus filhos em querosene enquanto segurava um fósforo aceso em sua mão, pronta para colocar fogo nas crianças. Seria uma outra tentativa do subconsciente de Annie de prevenir disseminação do mal que acometia sua família?

Apesar desta teoria, o diretor Aster disse em entrevista ao portal Vulture que na verdade era o culto liderado por Ellen que estava por trás das ruínas da família e das atitudes de Annie o tempo todo: “A plateia é levada a crer que pode ser culpa de Annie, mas é culpa do culto no qual Ann Dowd tem uma participação significativa. Mas você deve sentir ao longo do filme que existem pessoas na periferia que ficam observando essa família e estão à espreita.”

O diretor disse também que era inevitável que o clã de Paimon obtivesse sucesso em sua empreitada, mesmo que Annie decidisse não invocar Charlie: “Nós vemos no filme apenas uma das possibilidades do desenrolar da história. Em outras palavras, mesmo que ela [Annie] tivesse evitado a armadilha, seu destino iria alcançá-la de alguma outra forma.”

Certo, mas e o final final?

Em uma tentativa desesperada de frear o espírito maligno com quem estava se comunicando, Annie decide atear fogo em si própria, ao perceber que ela e o espírito estavam de alguma forma conectados.

Só que justamente pela hereditariedade entre Paimon e sua família, a entidade acaba conseguindo possuir Annie, garantindo sua existência no plano terrestre, e queimando Steve vivo.

Quando Peter desperta com os gritos do pai, encontra seu corpo carbonizado e Annie possuída, iniciando uma luta por sua sobrevivência. Annie/Charlie/Paimon corta a sua própria cabeça, e Peter, assustado com este ato e com os senhores pelados que sorriam para ele, se joga pela janela. Este momento de fraqueza de Peter era o que Charlie/Paimon estava esperando para finalizar a transferência dos corpos.

Peter então ressurge como o Rei Paimon, vivendo o resto de seus dias como hospedeiro do demônio que assassinou toda a sua família. Um filme família, para levantar o espírito.

Mas o final do longa não é nenhuma surpresa, já que a tragédia foi anunciada desde o início. Pelo menos para aqueles que praticam ocultismo.

Na residência dos Graham, nos deparamos com palavras como satony, liftoach pandemonium, e zazas. Satony é uma palavra ligada à necromancia, e utilizada em rituais para conjurar os mortos. Liftoach é a palavra em hebraico para “abrir”, e pandemonium pode ser interpretado como sua definição usual de “caos”. Já zazas é um demônio usualmente conjurado em tabuleiros de Ouija.

A essas palavras, associa-se o fato de Charlie ter matado um pombo com os seus poderes, tendo coletado sua cabeça em seguida. O pombo é notoriamente conhecido por ser uma ave mensageira. Sua decapitação por Charlie poderia ser um sinal de que os demais mensageiros do filme também teriam suas cabeças decepadas.

A começar pela de Charlie.

A morte de Charlie era planejada pelo clã de Paimon, pois era condição necessária para que o espírito da entidade se desprendesse de seu corpo. Assim, ele estaria livre para possuir Peter, o escolhido como hospedeiro desde o início.

A segunda a ser decepada foi Ellen. Hereditário não deixa claro quem foi o responsável por desenterrar a matriarca da família Graham. Poderia ter sido Annie, em um surto sonâmbulo. Entretanto, é mais provável que tenha sido Charlie/Paimon a desenterrar o corpo de sua avó e decepar sua cabeça, considerando o histórico da menina em decapitar animais.

Por fim, Annie, ao ser possuída por Paimon, cortou sua própria cabeça com um fio de aço.

Mas por que tantas cabeças decepadas no filme? Haveria algum significado para elas?

Na última cena de Hereditário, Peter assiste enquanto o corpo decepado de sua mãe flutua para a casa na árvore, antes de ele fazer o mesmo. Ao chegar lá, Peter encontra um altar, contendo um corpo metálico e, no topo dele, a cabeça em decomposição de sua irmã Charlie usando uma coroa. Em adoração a esta mórbida figura, senhores pelados estão prostrados, juntamente com Joan e os corpos sem cabeça de Annie e Ellen. Peter então é coroado por Joan como o novo Rei Paimon.

Os corpos decapitados podem representar nesta cena final a submissão de toda a linhagem Graham a Paimon. A entidade sempre foi dona da mente de todos os consanguíneos de Ellen, e decepar a cabeça de seus corpos foi uma representação literal disso.

O luto, o trauma e a real história de Hereditário

Assim como Corra! e os demais filmes de terror da última geração,  Hereditário é um filme de terror que numa camada mais profunda aborda temas mais sérios e mais palpáveis que o sobrenatural, como o luto, o trauma e o significado de hereditariedade. Para isso, transforma o conceito de “demônios” familiares em algo literal, materializando-o na família Graham como a entidade Paimon.

A real história de Hereditário consiste nas cicatrizes familiares que acontecem de forma randômica e que são inevitáveis, sejam elas doenças mentais ou grandes tragédias, como o luto advindo da perda de algum de seus membros. Mesmo sem a parte paranormal da trama, o filme ainda seria trágico e perturbador, pois narra a história da decadência de uma família que sofre perdas e lida com questões difíceis sem ter nenhuma culpa disso.

Aí está o verdadeiro terror, na aleatoriedade da vida.

Da mesma forma que o título do longa pode ser explicado sob o ponto de vista paranormal, Hereditário também é uma referência aos distúrbios mentais que acometem a família Graham e que são passados de geração a geração. O pai de Annie sofria de “depressão psicótica” e por isso parou de comer, vindo a morrer de inanição. Ellen tinha transtorno dissociativo de identidade (TDI), antigamente chamado de “dupla personalidade”, e tratado com maestria recentemente no filme Fragmentado. O irmão de Annie, por sua vez, era esquizofrênico e cometeu suicídio. É possível que Charlie possuísse transtorno de personalidade antissocial, o que podia ser refletido em seu comportamento de matar animais, guardar suas cabeças como troféus, ou desenhar imagens violentas em seu caderno.

Há estudos indicando que determinados transtornos mentais como a esquizofrenia e a depressão possuem um fator genético, que apesar de não ser determinístico para o desenvolvimento da psicopatologia, pode vir a influenciá-la. Assim, o título do filme também é uma alegoria para as doenças mentais que são passadas de geração em geração na família Graham.

A própria Annie, protagonista do longa, não está imune a esta hereditariedade. Apesar de ela demonstrar amar seus filhos e se preocupar com eles, faz declarações agressivas a Peter, como quando diz a ele que gostaria que ele não tivesse nascido e fez de tudo para abortá-lo. Além disso, Annie é sonâmbula, e certa vez despertou de um episódio no momento em que ia atear fogo em seus filhos enquanto eles dormiam. Por fim, Annie acaba sendo possuída por Paimon, e passa a agir de forma demoníaca, até que corta a sua própria cabeça com um fio de aço.

Devido a este comportamento, é possível que Annie tivesse o mesmo transtorno dissociativo de identidade que sua mãe.

De acordo com o Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), os indivíduos que possuem este transtorno têm uma “ruptura da identidade caracterizada pela presença de dois ou mais estados de personalidades distintos, descrita em algumas culturas como uma experiência de possessão“. Essas pessoas possuem alterações concernentes ao afeto e ao comportamento, como a forma que Annie tratava Peter. Não raro, os indivíduos portadores deste transtorno têm lapsos de amnésia e transtornos do sono, como o sonambulismo de Annie e o episódio em que ela se esqueceu que havia colocado querosene em seus filhos.

Já sobre a experiência de possessão, o DSM-5 explica que no transtorno dissociativo de identidade ela se manifesta “como comportamentos que surgem como se um ‘espírito’, um ser sobrenatural ou uma entidade externa tivesse assumido o controle, de tal forma que o indivíduo começa a falar e agir de maneira claramente diferente, (…) a pessoa pode ser ‘possuída’ por um demônio ou divindade, resultando em uma alteração profunda, e exigindo que a própria pessoa ou um familiar seu seja punido por uma ação do passado“. Mera coincidência?

Annie poderia ter também episódios de fuga dissociativa. Apesar de não necessariamente ser sintoma de algum transtorno mental, a fuga dissociativa também está associada ao TDI ou a um estado de trauma prolongado (como o luto de Annie pela morte da mãe e de Charlie). Os indivíduos nessa condição sofrem de amnésia temporária, podendo esquecer desde seu nome ou onde vivem ou até mesmo sua personalidade e memórias.

Steve, o marido de Annie, em uma conversa telefônica dá a entender que não era a primeira vez que Annie tinha episódios de TDI. Por ser um psicólogo, ele identificou os sinais de um surto em Annie e conversou com seu médico que ela havia voltado a apresentar um comportamento prejudicial e destrutivo, não sabendo mais como agir para freá-la.

A própria profissão de Steve reflete a tentativa do longa em equilibrar os distúrbios mentais que acometem sua família. Enquanto todos estão em surto, seja mental ou pela dor do luto, Steve se mantém como o porto seguro, aquele com que os demais sabem que podem contar.

Na metáfora do filme sobre transtornos mentais, possivelmente Peter também possuía algum tipo de distúrbio, já que no final viu o espírito decapitado de sua mãe flutuar até a casa na árvore, delirando também sobre a presença de idosos pelados idolatrando a cabeça de sua irmã.

Hereditário é um filme poderosamente assustador que demonstra que o terror real não reside no sobrenatural. A inevitabilidade do sofrimento, seja por transtornos mentais ou por traumas, é o verdadeiro Paimon do filme – e da vida.

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Qual é o trauma do Charlie?

Trauma e Sexualidade A questão que envolve a maior parte do trauma de Charlie é a respeito de sua sexualidade. Ao longo da história e de seus envolvimentos amorosos – com Mary Elizabeth (Mae Whitman) e Sam – vemos que o garoto tem dificuldades em sentir-se à vontade em momentos íntimos com elas.

Qual o transtorno do Charlie de As Vantagens de Ser Invisível?

Ansiedade e Depressão na adolescência no filme As Vantagens de Ser Invisível. As Vantagens de Ser Invisível é um filme estrelado por Logan Lerman, Emma Watson e Ezra Miller. Traz a história de Charlie, um adolescente que está no ensino médio e sofre de depressão e ansiedade.

Como se sente o personagem Charlie?

Sensível e desajustado, Charlie se sente desconfortável até mesmo dentro de sua própria família. Sem ninguém para conversar, ele começa a escrever cartas para um “amigo” misterioso do qual ele apenas ouvira falar e que não o conhece.

Para quem são as cartas que Charlie escreve?

Por conta disso, Charlie precisou frequentar algumas sessões com o orientador educacional da escola, que sugeriu que Charlie escrevesse cartas para alguém como forma de terapia, contando como se sente, o que pensa, suas experiências, suas frustrações, ou qualquer outro assunto.

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