Como a memória é analisada pela história oral?

History, memory and narrative: the disclosure of "who are you?" in the oral story-telling of the inhabitants of Córrego dos Januários

Denise Sampaio Gusmão Solange Jobim e Souza Sobre os autores

    O objetivo deste artigo é relatar uma pesquisa sobre as histórias de vida e as memórias dos habitantes de um pequeno povoado, situado na região leste de Minas Gerais, Brasil. Utilizando a "história oral" como estratégia metodológica e tendo como referência teórica o pensamento de Hannah Arendt, Walter Benjamin e Mikhail Bakhtin, os conceitos história, memória e narrativa são aqui analisados a partir das práticas discursivas entre a pesquisadora e os habitantes do Córrego dos Januários. Os resultados deste trabalho contribuem para a compreensão da ação e do discurso dos homens como condição do exercício da ética e da política na vida prática e, consequentemente, colocam em destaque a importância da experiência singular e a presença única de cada pessoa no mundo. A revelação da pergunta "quem és?", apresentada por Hanna Arendt em sua obra A condição humana, é aqui analisada a partir dos relatos das histórias de vida dos sujeitos envolvidos.

    memória; história oral; Hannah Arendt; Walter Benjamin; Mikhail Bakhtin


    Introdução

    Tudo o que comunica o povo e para o povo é Folkcomunicação. Trata-se da única teoria genuinamente brasileira, criada por Luiz Beltrão e popularizada a partir da década de 80, quando o teórico publicou suas primeiras pesquisas, especialmente, o livro "Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados", considerada pelos pesquisadores do folclore e da Comunicação como sua obra-prima. Este livro abriu caminho para diversos estudos comunicacionais na área, no âmbito nacional e internacional. O conceito mais disseminado acerca do campo de estudo da folk é este: Basicamente, a teoria estuda "o conjunto de procedimentos de intercâmbio de informações, ideias, opiniões e atitudes dos públicos marginalizados urbanos e rurais, através de agentes e meios direta ou indiretamente ligados ao folclore" (BELTRÃO, 1980, p.24).

    Contudo, é importante ressaltar que a Folkcomunicação não é o estudo da cultura popular, mas sim, dos meios de comunicação artesanais existentes nos ambientes de cultura popular e tem forte ligação com o folclore, ou seja, os conhecimentos repassados pela tradição por meio da oralidade. Afinal, na visão beltraniana, o folclore é, eminentemente, um arcabouço de conhecimentos do povo. Portanto, ao falarmos de Folkcomunicação estamos falando de uma teia de comunicação artesanal que se forma em diversos grupos sociais "extinguidos" dos meios e/ou canais sociais e comunicacionais hegemônicos. Tudo o que existe dentro do ambiente de cultura popular e se comunica de uma forma alternativa e peculiar (heterodoxa e/ou transgressora), fora do circuito midiático convencional ou das expressividades socioculturais tradicionais (hegemônicas ou elitizadas) é, potencialmente um objeto de folk.

    A Amazônia é terreno fértil para o fomento de pesquisas folkcomunicacionais, haja vista a pluralidade cultural, étnica e social dos seus diversos povos e grupos sociais. Contudo, a produção científica em Folkcomunicação nesta região ainda é pequena se comparada à do Nordeste e Sudeste do Brasil, por exemplo. Desta feita, faz-se salutar lançar mão do olhar folkcomunicacional sobre a riqueza cultural ainda escondida pela marginalização sociocultural, religiosa e midiática pela qual ainda sofrem alguns povos tradicionais da Amazônia, desconhecidos até mesmo para os que se dizem amazônidas (nativos ou não). Para desvelar cenários ignorados pela mídia de massa e pela cultura erudita, e para contar bem as histórias dos construtores de saberes marginalizados na região amazônica, este estudo apropriou-se do método da História Oral, à luz de José Carlos Sebe Bom Meihy.

    Por meio da complexidade do universo comunicacional, a Folkcomunicação revela riquezas culturais escondidas das mais variadas populações brasileiras. Espera-se com esta reflexão apresentar um cenário propício à difusão da teoria da Folkcomunicação aliada à cadeia multidisciplinar proporcionada pelo método da História Oral e à técnica da entrevista em profundidade como possibilidade de penetração na história vivida e em construção das mais diversas culturas folk, de forma a compreender os efeitos que as mensagens produzidas causam em sua audiência. Neste breve percurso teórico-metodológico, o leitor vai encontrar os conceitos e a eficácia da aplicabilidade da História Oral como mecanismo importante e estratégico de investigação folkcomunicacional.

    A História Oral. é uma metodologia de pesquisa interdisciplinar por excelência, conforme Alberti (2005), pois, envolve uma trama de conhecimentos entre diversas áreas e intermedia teoria e prática gerando reflexão. Volta-se para a produção de relatos orais, sua transcrição, textualização e interpretação. Embora seja mais aplicada aos campos das ciências sociais e humanas, principalmente a história, também pode ser uma possibilidade investigativa nas ciências exatas, biológicas, agrárias etc., no intuito de “ampliar o conhecimento sobre experiências e práticas desenvolvidas, registrá-las e difundi-las entre os interessados”, segundo Alberti (2005, p. 156).

    Portanto, a História Oral vai além de um método de captação de relatos para a produção de fontes para serem analisadas, pois é compreendida como um processo complexo e aberto aos diversos campos do conhecimento. Envolve tanto a produção social de memórias e as tradições orais, perpassando por aspectos objetivos e intersubjetivos dos sujeitos, suas percepções do mundo e de si mesmos. Meihy e Holanda (2011, p. 13), entendem “o papel da história oral como uma forma de pensar a sociedade contemporânea”.

    A História Oral⁴ é um importante registro para a posteridade, quando trabalhada para a construção de acervos de preservação da memória, sobretudo, daquelas vozes que não se ouvem nos discursos oficiais. Assim, enquanto registro de experiências, a História Oral possibilita outras nuances para as narrativas cristalizadas ou questões obscurecidas no processo histórico. Consequentemente, trazendo novas versões para histórias contadas por perspectivas hegemônicas, pois, conforme Alberti (2005, p. 155), “a História Oral permite o registro de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ e, dessa forma, amplia a possibilidade de interpretação do passado”.

    Essa compreensão sobre a História Oral se alinha ao pensamento pós-colonialista e transita pelas teias da complexidade afirmando a importância de resgatar memórias de personagens anônimos ou de parcelas da população que são marginalizadas, mas que tem experiências, saberes e conhecimentos sobre determinados assuntos, situações ou pessoas, e que acabam se perdendo na imposição de algumas perspectivas científicas dominantes. Sendo assim, uma perspectiva de fundamental importância para os estudos do grupo de pesquisa Trokano, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do Amazonas.

    Uma das vertentes do Trokano é compreender a Amazônia em suas dimensões sociais, culturais, étnicas, históricas, econômicas, ambientais, nos diferentes processos e nas suas inter-relações com a pluralidade de sujeitos que ocupam a região, por meio da prática jornalística e das múltiplas possibilidades comunicacionais. Desse modo, a História Oral, como metodologia de pesquisa para os trabalhos na perspectiva folkcomunicacional, pode apontar novas interpretações para aspectos históricos, sistemas simbólicos, práticas socioculturais, e expor - com a devida contextualização - formas de pensar e ser no mundo que caracterizam os povos amazônicos em suas multiplicidades.

    Neste artigo não trabalhamos com um objeto empírico ou com a preocupação da aplicação prática sobre uma temática específica a partir da História Oral, pois o objetivo é apresentar noções conceituais e sua relevância enquanto metodologia de pesquisa, por meio de pressupostos teóricos. Portanto, trata-se de um estudo bibliográfico que se articula no pensamento de autores como Verena Alberti, José Carlos Sebe Bom Meihy e Michael Pollack, prioritariamente. Vejamos o que diz Maldonado (2006) a respeito das condutas metodológicas impostas pela academia e postura do pesquisador: “as operações e os procedimentos de investigação não são rituais repetitivos, mecânicos, simplesmente aplicativos de receitas gerais elaboradas por outros” (p. 293).

    Corroboramos com esses pressupostos e nos mantemos contrários aos reducionismos científicos de metodologias amarradas a “camisas de força”, em busca de fórmulas prontas. Com a imersão na História Oral sob o prisma da Folkcomunicação, buscamos a sugestão do pleno exercício da alteridade ao nos debruçarmos candidamente sobre o conhecimento do outro, sua forma de expressar e viver o mundo que o cerca. Em sua maioria, os objetos de estudos da folk são multidimensionais e complexos. Um método e técnica que não se utilize da liberdade de aproximação e o estabelecimento de uma relação de confiança com as pessoas, está fadado ao fracasso. É preciso formas também complexas de relacionamento para apreender esses fenômenos. Faz-se necessário uma confluência de saberes, e é pensando neste cenário que pontuamos a História Oral como parceira imprescindível nas investigações folkcomunicacionais.

    História Oral e Folkcomunicação

    Em termos panorâmicos de publicação, vejamos o que revelou uma pesquisa publicada nos anais da edição nacional de 2009 do Intercom (de forma preliminar) e na Revista Comunicação & Sociedade, em 2010, sobre a cartografia dos estudos em Folkcomunicação com base na análise das dez primeiras edições da Revista Internacional de Folkcomunicação (RIF):

    [...] obteve-se, assim, o seguinte retrato do material publicado na Revista, em suas 10 primeiras edições. Do total (79 ensaios ou artigos), cerca de 30% (23 unidades textuais) abordaram as 'expressões folkcomunicacionais' (aspectos variados sobre etnias, religião, política, turismo, cultura ou marketing). Tais expressões étnicas revelam o tema mais frequente discutido no periódico. (GADINI; CALIXTO, 2010, p. 222)

    Observemos agora uma excelente demonstração da inter e multidisciplinaridade das investigações folkcomunicacionais quando a mesma pesquisa elenca os principais autores citados nas pesquisas em Folkcomunicação:

    O levantamento das 10 primeiras edições da Revista Folkcom indica, também, os autores mais citados nos artigos ensaios publicados na Revista, considerando as obras referenciais a partir do ano de publicação. Em números absolutos (total de citações registradas), o fundador do conceito (disciplinar) folkcomunicação – Luiz Beltrão – é o autor mais citado com 33 referências bibliográficas, seguido por Nestor García Canclini, José Marques de Melo e Roberto Benjamin, com nove (9) citações cada, e J. Luyten, com seis (6) referências citadas. Na sequência, com quatro (4) citações, aparece Renato Ortiz. E, com três (3) citações, estão Jesús Martin-Barbero, Câmara Cascudo, Walter Benjamin, A J. Gonzalez e Muniz Sodré. Com duas (2) citações aparecem, em seguida, Peter Burke, M. Bakthin, Carlo Ginzburg, Adorno & Horkheimer, Téo Azevedo, Gilberto Freyre, A. Saraiva, John Downing, J.B.Thompson, Souza Barros, Pierre Bourdieu, Osvaldo Trigueiro e Stuart Hall. E, por fim, com uma (1) citação estão Pedrinho Guareschi, Mauro Wolf, Edgar Morin, Antonio Hohlfeldt, Sebastião Breguez, Roberto Da Matta, Eni Orlandi, Fábio Corniani, Cristina Schmidt, Roland Barthes, Severino Lucena Filho, dentre inúmeros outros. (GADINI; CALISXTO, 2010, p. 224-225)

    Nota-se a confluência de vários campos do conhecimento ao conjugarem-se aos autores da Comunicação, outros teóricos da sociologia, antropologia, filósofos e até semiólogos. O fato reitera o que já destacamos anteriormente: o caráter multifacetado da Folkcomunicação e sua capacidade de dialogar com várias ciências e áreas do saber. Nota-se ainda pelos números apresentados, que os estudiosos da Comunicação estão voltados a atenção reflexiva de outros fenômenos comunicacionais, além dos famigerados objetos de pesquisa sobre o Jornalismo, a Publicidade, a Propaganda, o Marketing ou às Relações Públicas.

    Apesar de ainda ser considerada uma teoria emergente, com pouco mais de trinta anos de consolidação científica, os comunicólogos estão se interessando pelas subjetividades antes perdidas pelo caminho ao se analisar os fenômenos comunicacionais. Os caminhos da Folkcomunicação permitem abrir um leque de tensões escondidas pelo olhar cego, fragmentado e hegemônico do fazer científico elitizado. Voltado às evidencias flutuantes de demandas e respostas imediatas para fenômenos práticos que respondem apenas ao imediatismo das urgências capitalistas ou dos sistemas de relações culturais funcionalistas e institucionalizados.

    No Amazonas, a Folkcomunicação com a História Oral de Vida como método de pesquisa vem ganhando espaço nas produções acadêmicas. Vem do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia (ICSEZ-UFAM) no município de Parintins, no interior do Amazonas, as produções mais notáveis como, por exemplo, os vídeo documentários de TCC “Anarriê” e “Fé e Cura: a comunicação popular das benzedeiras de Parintins”, além de artigos como“A umbandista do Aninga”e dissertações como “As Pastorinhas de Parintins”. Além de outras produções no campo simbólico em andamento como os “Encomendadores de Almas” e o “Corpo Santo”. Este último em desenvolvimento na capital do Estado, pelo PPGSCA-UFAM.

    A Folkcomunicação busca compreender o outro em vários níveis de sua existência, por isso, há uma tendência salutar em optar pela História Oral (especialmente a História Oral de Vida) como método de investigação (principalmente pesquisas do campo simbólico como as citadas acima), pois, pela complexidade desta abordagem é possível adentrar os espaços intersubjetivos dos sujeitos das pesquisas de modo a elucidar, por meio de suas próprias narrativas, a influência de sua experiência coletiva, ou seja, sua participação na formação coletiva da tradição de sua (ou suas) rede social, constituindo assim, uma rede complexa de comunicação e identidade sociocultural.

    Quando se fala de folk e suas metodologias, não se pode ignorar as interveniências e contingências ambientais, culturais e religiosas dos grupos sociais imersos numa região tensa onde os conflitos existenciais são intensos frente ao conhecimento acumulado pela humanidade e o mundo real empírico. O esforço do pesquisador em folkcomunicação quanto à escolha do método deve ser em desvelar, elucidar e reforçar as conexões mais pertinentes à condução do pleno exercício da cidadania no seio das culturas folk, conjugando os pontos de inter-relação desses saberes. Que nem sempre estão associados ou congregados de forma mútua e equânime. Não podemos ignorar que ao lançar mão do método da História Oral, os objetos de investigação da folk são inseridos num contexto multidimensional.

    Vejamos as ponderações de Marieta de Moraes Ferreira sobre a contribuição do método da História Oral para as investigações em Folkcomunicação (a comunicação dos marginalizados):

    (...) o uso sistemático do testemunho oral possibilita à História Oral esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como ser entendidos ou elucidados de outra forma: são depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças, miseráveis, loucos... São histórias de movimentos sociais populares, de lutas cotidianas encobertas ou esquecidas, de versões menosprezadas, característica que permitiu, inclusive, que uma vertente da História Oral se tenha constituído ligada à história dos excluídos (FERREIRA, 2012, p.171).

    Segundo Sebe Meihy, o caminho da narrativa dentro de uma História Oral não precisa necessariamente obedecer à continuidade material dos fatos. Para o autor, a História Oral (principalmente a História Oral de Vida) é retrato oficial do depoente. “Nesse sentido, a verdade está na versão oferecida pelo narrador, que é soberano para revelar ou ocultar casos, situações e pessoas” (MEIHY, 2005, p. 149). Ou seja, a verdade depende exclusivamente do colaborador, mesmo que para o entrevistador pareça algo impossível de acontecer. O que o autor se refere diz respeito, fundamentalmente, ao pleno exercício da alteridade.

    Uma história de vida exige do entrevistador uma atuação mais discreta, porém, ele tem que ser muito presente. Meihy (2005) diz que essa história oral tem como função contemplar aspectos gerais do comportamento social dos colaboradores. “Questões como vida social, cultura, situação econômica, política e religião devem compor a história de quem é entrevistado” (MEIHY, 2005, p. 151). O resultado é uma visão multiangular dos personagens, seu comportamento, seus problemas, sua realidade.

    Uma metodologia em emergência

    A História Oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador de fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. Tais entrevistas são produzidas no contexto de projetos de pesquisa, que determinam quantas e quais pessoas entrevistar, o que e como perguntar, bem como que destino será dado ao material produzido (ALBERTI, 2005, p. 155).

    A partir dos pressupostos de Verena Alberti percebe-se que a História Oral é uma metodologia de pesquisa relativamente nova, surgida na metade século 20 e possibilitada pela invenção do gravador, muito embora a prática de ouvir e escrever relatos seja uma atividade desenvolvida desde a antiguidade. Mas, conforme Alberti (2005), a História Oral moderna está associada a estudos sociológicos, baseados em histórias de vida, desenvolvidos na Escola de Chicago e posteriormente com maior sistematização pela Universidade de Colúmbia, a partir de 1948, sendo potencializados com a invenção do gravador de fita. Nas décadas de 1950 e 1960, as experiências com relatos orais também foram difundidas na Europa e no México.

    A moderna história oral depende de recursos eletrônicos na medida em que estes se colocam como meios mecânicos para auxiliar não apenas a gravação em seu momento de realização, mas, sobretudo depois, quando se presta à fase de transposição do oral para o escrito. [...] a obrigatoriedade da participação eletrônica na história oral determina uma alteração nos antigos procedimentos de captação de entrevistas, antes feitos na base de anotações ou da memorização (MEIHY; HOLANDA, 2011, p. 21-22).

    Alberti (2005) salienta que em 1975 a História Oral chegou ao Brasil, reunindo um grupo de pesquisadores que representavam a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, a Fundação Getúlio Vargas e o Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação, inicialmente com o intuito de estudar a trajetória das elites no processo de montagem do Estado Novo e do regime militar. A partir da década de 1980 formaram-se núcleos de pesquisa em diferentes regiões do país com diferentes objetos e temas de estudo, com interesse por questões contemporâneas e sujeitos apartados dos discursos oficiais. Desde então, o avanço dos grupos, por meio de cursos, programas de pós-graduação, congressos e publicações tem favorecido a difusão, as discussões teóricas e o intercâmbio sobre História Oral no país.

    Entretanto, a História Oral ainda sofre resistência, principalmente, por parte de pesquisadores adeptos à ideia de que um trabalho científico só pode ser validado a partir de documentos escritos, devido aos questionamentos que fazem sobre a fragilidade e a credibilidade da memória humana. Mas, como reforça Alberti (2005, p. 163), “hoje já é generalizada a concepção de que fontes escritas também podem ser subjetivas e de que a própria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento científico”.

    Como já foi sinalizado, a História Oral é interdisciplinar por natureza e utiliza-se de ferramentas investigativas diversas, principalmente dos campos da sociologia e da antropologia, mas sua aplicabilidade se estende à educação, engenharias, economia, teatro, música, serviço social, comunicação, entre outras áreas, considerando que na História Oral não se busca uma verdade, mas o que faz sentido.

    É uma metodologia que exige dedicação, pois demanda recursos financeiros e tempo. Muitas vezes é necessário viajar diversas vezes para entrevistar as fontes, e ainda necessita-se de equipamento de gravação. É preciso considerar o tempo de pesquisa e preparação antes de ir a campo, e depois gravar, transcrever, revisar, analisar e interpretar. Alberti (2005, p. 165) reforça que, “por essa razão, é bom ter claro que a opção pela História oral responde apenas a determinadas questões e não é a solução para todos os problemas”.

    Por isso, o planejamento é fundamental (antes de ir a campo, durante e posteriormente a coleta dos depoimentos), com a elaboração de um projeto viável de ser realizado e de um roteiro (que pela natureza desta perspectiva investigativa precisa ser aberto) baseado no conhecimento prévio do universo a ser estudado. Não se deve perder o foco dos objetivos do trabalho, mas estar atento às pistas que surgirem no processo. Silêncios, rupturas, digressões, delírios entre outras situações podem estar apontando para trilhas surpreendentes.

    O enfoque da História Oral é qualitativo, portanto, a construção do trabalho - que começa no planejamento - necessita ter um lastro na relação do pesquisador com os sujeitos, pois o papel dos colaboradores é primordial e deve ser estabelecido por meio da confiança e da ética. O pesquisador precisa de empatia e disposição para escutar, analisar e interpretar, sendo assim, portanto, uma relação dialógica com os sujeitos-objetos. Nesse processo de inter-relações o pesquisador precisa reconhecer, dentro do seu contexto de pesquisa, os participantes mais representativos e os desviantes, traçando uma rede entre antagonismos, concorrências e complementaridades.

    A opção pela pesquisa com a História Oral não exclui outros tipos de fontes, como documentos, textos escritos, filmes entre outros tipos de registros. Mas, quem pesquisa sob a perspectiva da História Oral precisa de planejamento e organização sistematizada, como sugerem Meihy e Holanda (2011), considerando o “como fazer”, que são os passos de elaboração de um projeto, e o “como pensar”, que é se valer da História Oral para discutir e refletir sobre o mundo.

    Meihy e Holanda (2011) apresentam três principais tipos ou gêneros de história oral e cada qual definirá a condução e as especificidades dos trabalhos. 1.) a “História Oral de Vida” decorre de narrativas que não estão apenas baseadas em fatos, mas dependem dos contornos da memória de seus sujeitos, seus delírios fantasias e contradições; 2.) a “História Oral Temática” se aproxima mais das entrevistas tradicionais e mantém um foco central nas questões preestabelecidas para a investigação em determinada temática e o que é pertinente em seu contexto; 3.) a “Tradição Oral” se baseia em elementos da memória coletiva e depende também da compreensão entre fundamentos míticos e das práticas socioculturais dos grupos envolvidos. Os autores também definem os cinco passos para a realização de um trabalho em História Oral: elaboração do projeto (critérios e procedimentos), entrevistas/gravação (trabalho de campo); estabelecimento do documento escrito e sua seriação (transposição do oral para o escrito), análise (dependendo do objetivo do projeto), arquivamento (e manutenção do material), devolução social (compromisso social com o grupo pesquisado).

    No que tange aos aspectos prático-operacionais, Alberti (2005) apresenta um roteiro bem detalhado sobre como proceder no que a autora chama dos três momentos principais de um projeto de História Oral: a preparação das entrevistas; a realização; o tratamento do material. A autora reforça desde o tipo de metodologia, como e porque devem ser escolhidos os entrevistados, como deve ser a relação com o entrevistador, a operacionalização do projeto, maneiras de compreender e tratar os depoimentos, bem como todos os cuidados éticos que devem permear o projeto do início ao fim.

    Não se trata de sair com o gravador em punho e solicitar às pessoas que relatem suas vidas. É preciso ter bem claro por que, como e para que se fará uma pesquisa utilizando história oral, e não adotar posturas ingênuas, como se imbuir da missão de “dar voz aos vencidos”, ou esquecer que toda a entrevista é “documento-monumento” (ALBERTI, 2005, p. 189).

    As questões éticas são imprescindíveis na visão de Portelli (1997, p. 13), para quem esta percepção vai além de diretrizes ético-jurídicas ou profissionais, pois perpassa por “uma consciência mais abrangente e profunda do compromisso pessoal e político com a verdade e a honestidade”. Conforme o autor, os pesquisadores que utilizam a História Oral precisam ser responsáveis tanto com as preocupações metodológicas do trabalho quanto respeitar os sujeitos e as informações coletadas e interpretadas, correspondendo ou não aos seus desejos e expectativas.

    O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo na História Oral. Não são exclusivamente os santos, os heróis, os tiranos – ou as vítimas, os transgressores, os artistas – que produzem impacto. Cada pessoa é uma amálgama de grande número de histórias em potencial, possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes, contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem nossa experiência (PORTELLI, 1997, p. 17).

    Memória, oralidade e construção da identidade

    Acionar memórias é um processo complexo e caracteriza-se por uma plasticidade contextual, pois se expressa de diversas formas, seja para quem vivenciou determinado fenômeno, sendo um guardião da memória pela experiência direta (conferindo um testemunho privilegiado) ou para quem tem a lembrança de determinado acontecimento através do que lhe foi contado.

    O sociólogo austríaco Michael Pollack diz que há uma ligação entre memória e identidade social, podendo estar fundada em fatos concretos e na projeção de outros eventos. Embora, a priori, a memória seja um fenômeno individual (experiências pessoais, que se constituem basicamente a partir do acionamento de três critérios: acontecimentos, pessoas e lugares) também necessita ser compreendida como um fenômeno social, “construído coletivamente, e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes” (POLLACK, 1992, p. 01).

    Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social ou individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é no sentido da imagem em si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros (POLLACK, 1992, p. 05).

    Como já foi mencionado, parte da resistência em relação à História Oral, conforme Alberti (2005, p. 166), se deve ao que alguns críticos argumentam em relação às “distorções” da memória, ou seja, alegam que não se pode confiar nos relatos dos entrevistados devido às subjetividades que eles carregam. Porém, a autora sustenta que “a análise dessas ‘distorções’ pode levar à melhor compreensão dos valores coletivos e das próprias ações de um grupo”. E vai além,

    [...] o trabalho com História Oral pode mostrar como a constituição da memória é objeto de contínua negociação. A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nação, são importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um todo (ALBERTI, 2005, p. 167).

    Nesse sentido, no momento em que os sujeitos acionam memórias reformulam histórias e afirmam sua identidade perante os outros. Uma sistemática de recriação, reflexão e compartilhamento. Portanto, o processo de rememorar é um elemento importante na História Oral e também possibilita ampliar sentidos e ter outras camadas de compreensão sobre fatos históricos, acontecimentos envolvendo determinados personagens, sejam eles considerados vultos da história ou figuras anônimas.

    Se compreende-se a memória além de um processo individual, mas com lastro em memórias sociais compartilhadas em grupo e sujeitas a reelaborações decorrentes de inúmeros cenários contextuais, é possível configurar a complexidade de um objeto de estudo. Como a memória se expressa pelo acionamento de dispositivos psíquicos, como a projeção e a transferência, permite aos indivíduos reconstruir lembranças, muitas vezes ressignificando as experiências vividas ou sobre fatos contados. Nesse sentido, reforça-se o que já foi exposto em relação à afirmação da identidade e de pertencimento.

    Outra especificidade da História Oral é estar alicerçada na narrativa.

    Um acontecimento vivido pelo entrevistado não pode ser transmitido a outrem sem que seja narrado. Isso significa que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista. Ao contar suas experiências, o entrevistado transforma o que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os acontecimentos de acordo com determinado sentido (ALBERTI, 2005, p. 170-171).

    A construção de narrativas, feitas na perspectiva de quem conta e com as suas próprias palavras, geralmente sujeitos excluídos dos discursos instituídos ou da história oficial, muitas vezes provocam conflitos narrativos se comparadas às narrativas hegemônicas. Mas, exatamente por estas dissonâncias, consequentemente, é possível configurar um panorama mais complexo sobre a temática investigada.

    O fato de ser uma narrativa oral, que resulta de uma interação entre entrevistado e entrevistador – uma conversa, podemos dizer -, torna essa fonte específica em relação a outros documentos pessoais, como as memórias e as autobiografias. O que o entrevistado fala também depende da circunstância da entrevista e do modo pelo qual ele percebe seu interlocutor. Quando é solicitado a falar sobre o passado diante de um gravador ou uma câmera, cria-se uma situação artificial, pois a narrativa oral, ao contrário do texto escrito, não costuma ser feita para registro (ALBERTI, 2005, p. 171).

    Sendo assim, Alberti (2005) reforça que, para alguns – já acostumados a conceder entrevistas- o desempenho costuma ser mais fluido. Já para outros sujeitos pode ser uma experiência inibidora. Em relação à transcrição do material, pode parecer estranho para alguns leitores já que a linguagem tem a informalidade de uma conversa e, portanto, bem diferente de um texto produzido para ser lido na forma escrita.

    Meihy e Holanda (2011) apontam também que a oralidade quando é codificada para a linguagem escrita, possivelmente, cristaliza a realidade narrada e muda a dinâmica de sua essência. Por isso, a análise sobre os registros da oralidade não deve se ater apenas ao método de produção e transposição do oral para o escrito, mas deve também levar em consideração as condições de sua produção, a ambiência e seus processos subjetivos.

    Diante de todos os aspectos apresentados, chega-se à reflexão que o impacto dos trabalhos de História Oral, perante as comunidades onde são realizados e sua relevância social diante das assimetrias de um mundo globalizado, precisa ser compreendido como uma possibilidade de descolonização do pensamento. Há uma emergência de novas perspectivas compreensivas para a sociedade.

    Por meio da história oral, por exemplo, movimentos de minorias culturais e discriminadas – principalmente de mulheres, índios, homossexuais, negros, desempregados, pessoas com necessidades especiais, além de imigrantes e exilados – têm encontrado espaço para validar suas experiências, dando sentido social aos lances vividos sob diferentes circunstâncias (MEIHY; HOLANDA, 2011, p. 26-27).

    Portanto, ao se valer da História Oral como metodologia o pesquisador abre o leque sobre o conhecimento acerca de fatos, situações e sujeitos, e também capta subjetividades acerca das vivências e percepções. Obviamente, que os procedimentos investigativos, como foi salientado ao longo desta exposição, necessitam seguir o rigor científico, explicitando objetivamente os critérios de escolha do corpus, perspectiva de análise e embasamento interpretativo. Entretanto, sem descartar as intersubjetividades inerentes ao processo e construção de uma nova leitura para a temática que se propõe investigar. Ou seja, produzindo conhecimento científico com metodologia, trabalho de campo e reflexão teórica.

    Considerações Finais

    Diante do que foi apresentado, podemos concluir reiterando que a História Oral (sobretudo a História Oral de Vida) é um agregador imprescindível nos avanços qualitativos frentes aos objetos de investigação folkcomunicacionais. Com sua iminência interdisciplinar, esse método é capaz de otimizar o olhar folkcomunicacional diante dos seus fenômenos (sobretudo os simbólicos).

    A imaterialidade da cultura é difícil de ser assimilada com métodos quantitativos, por isso, a forma multiangular de cercar os fenômenos, valorizando as atitudes, impressões, sentimentos e memórias de quem os recepciona faz da História Oral instrumento valioso para a Folkcomunicação; uma teoria que se assenta justamente naquilo que não está posto e que a ciência dura, tecnicista, fragmentada e funcionalista ignora com suas fórmulas prontas de avaliação e análise de dados. Fato que influencia inclusive a formação do pensamento coletivo das sociedades.

    O caminho sugerido aqui é oposto. Defendemos nesta exposição o poder da contextualização em detrimento ao reducionismo pragmático das pesquisas em Comunicação, conduzindo-as a um exercício abstrato, incoerente e incompleto. E, por fim, inverossímil. Sem vínculo algum com a realidade nem com o mundo real e histórico. Folkcomunicadores estão sempre empenhados revelar riquezas culturais e comunicacionais escondidas, marginalizadas pelas práticas hegemônicas. E nada melhor do que desvendar essas tensões do que abandonar a soberba científica, o rigor quantitativo, e parar para observar e ouvir candidamente os sujeitos. Mesmo que em algum momento o pesquisador confronte essas narrativas com suas conjecturas teóricas, sem perder de vista a alteridade e a ética.

    Neste sentido, a História Oral é um movimento que aguça e aflora os pontos de tensão porque traz a baila, sem amarras, os reais construtores da história, da sua história, daquela realidade que o pesquisador pretende recortar e explicitar. Ela aproxima o pesquisador de folk do trabalho no mundo real empírico. Sabe-se que não é fácil apreender um objeto, daí a importância de considerar a abordagem multiangular possibilitada pela História Oral.

    Outra questão que queremos ressaltar é que a História Oral também representa instrumento qualitativo se posta em diálogo com os estudos da memória. Feitas as devidas conexões complexas, possibilita a saída do lugar comum, da homogeneidade e a imersão no todo singular heterogêneo. Uma transgressão aos conceitos hegemônicos e reducionistas da globalização. Eis aí a gênese do fio condutor entre esses procedimentos metodológicos e a área da Folkcomunicação.

    O que caracteriza a memória oral?

    Compreende o registro de histórias de vidas e também depoimentos diversificados, articulados, registrados de forma sistemática, em torno de um tema.

    Qual a importância da memória oral?

    Ela se impõe como primordial para compreensão e estudo do tempo presente, pois só através dela podemos conhecer os sonhos, anseios, crenças e lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem nenhum status político ou econômico, mas que viveram os acontecimentos de sua época (p. 57).

    O que se entende por história oral?

    História Oral é uma forma de coletar relatos, em vídeo e áudio, sobre vivências de uma ou de mais pessoas, relativos a determinadas conjunturas, processos ou acontecimentos relevantes.

    Qual é a relação da memória e a história?

    A história não é a memória. O historiador, no trabalho científico, coleta as lembranças dos homens, compara-as entre si, confronta-as com documentos, objetos e vestígios, e estabelece os fatos. A história leva em conta a memória, mas não se reduz a ela. A história não é um objeto jurídico.