Que classe era o sustentáculo do poder civil nas primeiras décadas da República

CLASSE M�DIA E MOVIMENTOS RADICAIS:

uma proposta de retorno � Hist�ria Pol�tica a partir do conceito de classe

Valter Fernandes da Cunha Filho

Professor da UNIANDRADE

Doutorando em Hist�ria pela UFPR

Os per�odos da Rep�blica Velha e do Estado Novo no Paran� j� foram objetos de um n�mero relativamente grande de estudos. Apesar dessas an�lises terem se concentrado quase que exclusivamente em Curitiba, elas foram bastante criativas quanto � produ��o de objetos hist�ricos. J� se estudou o Paran� (com maior �nfase em Curitiba), durante o per�odo em quest�o, pela �tica dos exclu�dos (loucos, bandidos, vagabundos, prostitutas), dos trabalhadores pobres, das mulheres, da educa��o, da cultura, das id�ias, das reformas urbanas, etc. Poucos, por�m, tiveram a preocupa��o de situar esses objetos de an�lise no contexto de classe. Longe de considerar esta postura como sendo produto de um erro, penso que o desprezo por considera��es historiogr�ficas que contemplem a perspectiva de classe � uma a��o deliberada com base no est�gio de desenvolvimento da reflex�o hist�rica no Brasil.

Em primeiro lugar, os historiadores que trabalham seus objetos na perspectiva das rela��es de classe, t�m encontrado dificuldade em trabalhar estrat�gias que evitem reducionismos classistas ou determinismos economicistas, problema a muito solucionado nos Estados Unidos e Inglaterra, por exemplo. Em segundo lugar, o impacto que teve a historiografia francesa (e suas atualiza��es) sobre os brasileiros foi espetacular. Percebemos, a partir de ent�o, um progressivo ostracismo da Hist�ria Pol�tica[1]. Descontadas algumas boas exce��es, esta vertente da historiografia francesa se tornou quase uma unanimidade. Mas o suficiente para criar uma onda de pr�-conceitos, tanto aqui como na Fran�a, que at� hoje estudar Hist�ria Pol�tica em alguns lugares do Brasil, se tornou sin�nimo de heresia, desprezo pelo que realmente importa, ou mesmo menor potencial intelectual. Isto tanto � verdade que os franceses que sentiam curiosidade pelos estudos pol�ticos n�o encontraram espa�o (nem mesmo f�sico) entre a Hist�ria Nova, se obrigando a fundar locais quase que exclusivamente dedicados ao estudo da Ci�ncia Pol�tica e da Hist�ria do Tempo Presente[2]. Em terceiro lugar, o abandono do estudo da pol�tica n�o me parece estar totalmente desconectado da realidade s�cio-pol�tica brasileira nos anos 80 do s�culo XX. A chamada �d�cada perdida� trouxe um certo desencanto para boa parte dos intelectuais que havia apostado que a redemocratiza��o solucionaria as quest�es que vinham assolando o pa�s. A frustra��o foi evidente e a leitura que passaram a fazer da realidade era que a pol�tica tinha menos capacidade de determina��o do real do que se imaginava.

Acredito que uma tal mistura de motiva��es afastou uma grande parte dos historiadores brasileiros dos estudos da pol�tica. Por isso, as an�lises a partir das classes sociais foram perdendo for�a a partir de meados da d�cada de 1980. Mas � importante deixar claro que a id�ia de uma �crise� da Hist�ria Pol�tica parece ter afetado apenas a Fran�a e seu �Departamento de Ultramar�[3].

Entretanto, um significativo n�mero de trabalhos, tanto de historiadores quanto de outros cientistas sociais, tem demonstrado a import�ncia dos diferentes extratos sociais, notadamente, a classe m�dia, para a compreens�o dos fen�menos ocorridos nas primeiras d�cadas do s�culo XX.

Sabemos que no calor da Proclama��o da Rep�blica havia, no Rio de Janeiro, havia �um prec�rio setor m�dio, composto basicamente de funcion�rios p�blicos, comerci�rios e profissionais liberais�[4], por�m de grande agressividade pol�tica. Sua participa��o na Revolta da Vacina, nas elei��es e protestos foi sempre aguerrida. Na maioria das vezes a classe m�dia n�o somente participava desses movimentos radicais, pois comumente ela os fundava. Quase sempre exercia uma posi��o de lideran�a frente aos outros setores sociais[5]. O caso mais vis�vel foi o Tenentismo, onde a baixa e m�dia oficialidade das For�as Armadas passaram a aglutinar anseios e interesses de uma parte consider�vel dos habitantes urbanos no Brasil[6].

Uma primeira constata��o a ser feita, portanto, � a relev�ncia da classe m�dia como fomentadora dos movimentos radicais. Da� um primeiro argumento para a destacada import�ncia do estudo desses movimentos do prisma das classes. Todos esses agitadores do in�cio do s�culo XX formavam um grupo de intelectuais[7] de origem social bem definida. Para a compreens�o de sua ascens�o, enquanto categoria social historicamente relevante, temos que levar em conta as condi��es s�cio-econ�micas que propiciaram seu surgimento. Em outros termos, para come�arem a formular id�ias radicais foi preciso primeiro existir estes intelectuais. Aqui j� temos um motivo inicial para apostarmos na import�ncia da considera��o pr�via das �condi��es objetivas� que originaram a classe m�dia. N�o podemos entender seu nascimento sem levarmos em considera��o as transforma��es econ�micas e sociais que conduziram o pa�s � industrializa��o. Estudos recentes t�m apontado que os setores m�dios da sociedade foram paridos durante este processo de mudan�a, genericamente chamado de �moderniza��o�[8]. Ele propiciou o aparecimento de novas profiss�es e novas fun��es sociais, que permitiram formas at� ent�o desconhecidas n�o s� de inser��o social, mas tamb�m de pap�is desempenhados no sistema produtivo. Assim, a diferencia��o econ�mica e a urbaniza��o exigiram novas rela��es entre os pr�prios homens, e destes com a natureza e o Estado. Portanto, novas profiss�es e novas fun��es sociais.

A partir do final do s�culo XIX estes novos atores estar�o presentes de forma crescente no cen�rio econ�mico, pol�tico e social das cidades brasileiras, marcadamente nas capitais. Geralmente suas id�ias radicais nasciam a partir das ferramentas simb�licas obtidas no bojo de suas rela��es espec�ficas travadas com o mundo material. De outro modo, a forma como se conectavam ao sistema de produ��o de mercadorias acabava por facilitar o desenvolvimento de novas id�ias e, quase sempre, de reivindica��es que desencadeavam movimentos radicais. As fun��es s�cio-econ�micas da classe m�dia, portanto, facilitam a formula��o, tradu��o e adapta��o de id�ias sobre a realidade vivida.

Estas observa��es n�o s�o validas apenas para o �Brasil�, guardadas as devidas propor��es, o Paran� tamb�m participou deste processo de moderniza��o. Transi��o que n�o foi nem um pouco suave.

O primeiro fato a ser salientado foi o descompasso existente entre o vertiginoso crescimento populacional verificado em Curitiba, nesta �poca, e estagna��o da economia regional, decorrente dos �altos e baixos� do mercado externo[9]. O r�pido crescimento demogr�fico ocorrido na Capital, no per�odo entre s�culos, deveu-se tanto ao elevado n�mero de pessoas que compunham a prole imigrante j� fixada, como � grande quantidade de casos de reimigra��o. Este problema populacional gerou um fen�meno s�cio-econ�mico que logo chamou a aten��o das autoridades da �poca. Segundo De Boni, �a popula��o da cidade ultrapassou seu dobro, mas a economia n�o teve o mesmo impulso�[10]. A partir de ent�o o Paran� passou por uma s�ria crise econ�mica. Se durante os tempos de prov�ncia a erva-mate n�o s� fora o sustent�culo econ�mico, mas tamb�m o produto respons�vel pela sua inser��o nos mercados do Prata, nas primeiras d�cadas da Rep�blica ela n�o correspondeu �s necessidades postas pela nova conjuntura. J� nos primeiros anos do s�culo XX a economia paranaense dava sinais de que o ciclo da erva-mate havia chegado ao fim. Por ser uma economia dependente da exporta��o de produtos, principalmente para a Argentina, Uruguai e Chile, o Paran� se via constantemente � merc� das oscila��es do mercado internacional. A economia ervateira foi �sacudida� pelas inconst�ncias do mercado por todo o tempo em que perdurou a exporta��o (1851-1940), mas foi somente a partir da Proclama��o da Rep�blica, e da subseq�ente crise que se abateu sobre a economia brasileira, que ela passou a dar os primeiros sinais de colapso[11].

Por outro lado, o Paran� vinha sofrendo uma verdadeira revolu��o no que dizia respeito a infraestrutura. A inten��o era criar um ambiente prop�cio ao florescimento dos neg�cios[12]. Estas transforma��es acabaram por refor�ar a import�ncia que vinha tendo a capital paranaense. Na maioria das vezes boa parte das mercadorias, ao tomarem o rumo dos portos, via Estrada de Ferro do Paran�, passavam por Curitiba. Com isso, a cidade adquiriu relev�ncia n�o s� como �ponto nodal� nas estradas de transporte do Estado, mas tamb�m pelo fato de grande parte dos produtores passarem a domiciliar capital, j� que era aqui que ocorriam as transa��es comerciais internas e externas. Al�m disso, o Paran� possu�a outras fontes de riqueza al�m da erva-mate. A madeira, apesar de vir sendo extra�da e comercializada desde o Imp�rio, na Rep�blica teve maiores incentivos para o seu desenvolvimento. Os madeireiros melhoraram o sistema de secagem com vistas � explora��o em larga escala de modo que, j� entre 1896 e 1898, o total exportado correspondeu a 4% da renda do Estado, al�m de, neste mesmo final de s�culo, existirem por volta de 64 serrarias no Paran�. Em decorr�ncia disso, instalou-se na capital do Estado uma f�brica de palitos de f�sforos, em 1903, e passou a ser geradora de nada menos que 20% da receita estadual[13].

No entanto, a explora��o da madeira no Paran� obedecia basicamente a dois prop�sitos: abastecer o mercado interno e a exporta��o. Ambos tiveram caracter�sticas predat�rias com o crescimento das cidades, originando as f�bricas de m�veis, que caracterizaram a economia paranaense nas primeiras d�cadas do s�culo XX. Visavam os mercados do Uruguai e da Argentina, bem como, constitu�am no neg�cio mais rent�vel para os madeireiros. Entretanto, nem a exist�ncia desse restrito mercado, nem os fomentos governamentais do princ�pio da era republicana, conseguiram atingir o objetivo: o velho mundo. Em 1873, na exposi��o de Viena, j� ficara constatado serem o pinho e outras madeiras do Paran� de superior qualidade. A Europa, por�m, continuou fora das rotas comerciais deste Estado at� 1910, quando o capital norte-americano se inseriu no setor. S� ent�o a madeira paranaense conseguiu chegar ao mercado europeu[14].

Por�m, a fuga de divisas era algo quase incontrol�vel. Eis um dos grandes problemas enfrentados pelo poder p�blico. Quase todas as divisas geradas pela economia de exporta��o da erva-mate voltavam ao exterior pela importa��o de artigos de consumo. Desta maneira, o fluxo de capitais nascido no exterior e que produzia o meio circulante paranaense, estava fadado a voltar para fora do Estado[15]. Com efeito, no Paran� do per�odo entre s�culos n�o s� havia o problema da defasagem econ�mica em rela��o a explos�o demogr�fica, como tamb�m existia a quest�o da sua depend�ncia quase exclusiva de um produto de exporta��o, t�o sens�vel �s intemp�ries do mercado internacional. Em virtude disso o Estado mergulhou numa crise econ�mico-financeira tal que, j� em 1898, o ent�o Secret�rio de Estado dos Neg�cios das Finan�as, Com�rcio e Ind�stria do Paran�, Dr. Luiz Ant�nio Xavier, buscava contorn�-la propondo a redu��o de gastos na propor��o da arrecada��o, a racionaliza��o dos servi�os p�blicos de modo que se pudesse dispensar boa parte do funcionalismo, a supress�o de subven��es e despesas que n�o davam retorno positivo, e o corte de concess�es de impostos. De fato, se medidas n�o fossem tomadas, acreditava o secret�rio, os d�fcits se sucederiam �de exerc�cio em exerc�cio� impedindo os �servi�os� que deveriam ser realizados no futuro[16].

Somente agora podemos afirmar com relativo grau de confian�a que esta �rdua transforma��o econ�mica tamb�m implicou em novas rela��es sociais. A inser��o do Paran� no mercado mundial de produtores de bens prim�rios acarretou importantes mudan�as, principalmente na capital. O status de Prov�ncia, alcan�ado em 1853, fez com que Curitiba passasse a ser habitada por uma quantidade sempre crescente de funcion�rios p�blicos. Alguns desempenhando fun��es que requeriam forma��o bastante espec�fica. Dentre estes agentes governamentais, merecem destaque os oficiais do ex�rcito. Como a capital dos paranaenses passou a sediar efetivos militares e considerando que a partir do final do s�culo XIX seus oficiais come�aram a angariar cada vez mais reputa��o e prest�gio social, ent�o podemos sugerir que formavam uma categoria social de consider�vel peso no cen�rio pol�tico local, por volta da virada do s�culo.

Por outro lado, o est�gio em que se achava a economia capitalista requeria uma expressiva gama de novas profiss�es e fun��es sociais. Como disse anteriormente, a atividade de exporta��o via Porto de Paranagu� fez de Curitiba uma cidade mais din�mica. Isto n�o s� reclamava um aumento de funcion�rios do governo (judici�rio, pol�cia, secretarias de estado, enfermeiros, etc.), mas tamb�m de empregados privados e aut�nomos. Um n�mero cada vez mais crescente de advogados, professores, m�dicos, escritores, engenheiros, funcion�rios de escrit�rios, etc[17]. Havia tamb�m uma por��o estim�vel de funcion�rios de firmas especializadas como companhias de seguros, bancos e reda��o de jornais. Finalmente, Curitiba tinha uma grande quantidade comerciantes os quais, comumente, pelos interesses e forma de a��o, s�o vistos pelos estudiosos como integrantes da classe m�dia.

Uma grande parte dos movimentos radicais ocorridos, n�o somente no Paran� mas em todo o Brasil, no in�cio do s�culo XX, tinha algo em comum. A saber, seus lideres e participantes faziam parte destes setores sociais intermedi�rios que acabei de descrever. Desta constata��o materialista dificilmente podemos fugir. De outro modo, raramente vemos membros das fra��es dominantes envolvidos nesses movimentos. Tenentismo, Modernismo, Reformas Urbanas, Paranismo, entre outros, s� puderam ocorrer por causa dessa combina��o de fatores hist�ricos que acaba configurando a sociedade de modo a torna-la mais propensa a realizar certas manifesta��es sociais. Desprezar estas configura��es objetivas pode for�ar o pesquisador a lan�ar m�o de artif�cios explicativos como o Bar�o de M�nchhausen. Desconsiderar isto � cair no absurdo de achar que o pensamento prescinde da pr�pria exist�ncia material do ser pensante[18].

Estruturalmente, a classe m�dia, embora ainda n�o muito numerosa no Paran� deste per�odo, assumia uma fun��o primordial no meio social. Ela controlava �o fluxo da comunica��o cotidiana da sociedade�[19]. Em outros termos, os comerciantes e artes�os, pela natureza pr�pria de sua atividade no sistema produtor de mercadorias, ofereciam o ambiente social prop�cio ao encontro de pessoas para troca de id�ias. Da mesma forma os professores e funcion�rios que tamb�m tinham uma fun��o socializante (tamb�m por causa do seu papel profissiona) j� que tinham contato cotidiano com as pessoas. �, pois, neste sentido que propomos ver estes agitadores de classe m�dia, como intelectuais formadores de opini�o. Nisto residia seu poder social. Dada a sua localiza��o na estrutura de classes, estes intelectuais podiam desenvolver ou traduzir id�ias que, ora se achavam mais � direita ora mais � esquerda. Como a classe m�dia n�o se reconhece na classe dominante (podendo, �s vezes, identifica-la como inimiga) nem se confunde com a classe oper�ria (pois a divis�o social do trabalho for�a-a a se representar como algo diferente do operariado, por dois motivos: 1) porque seu trabalho torna-se mais �limpo�, mais intelectualizado; 2) por viver da mais-valia produzida pela classe oper�ria n�o consegue se ver como parte dela[20]. Portanto, suas convic��es ora pendem para a esquerda (como indicou Jos� Murilo de Carvalho) ora para a direita[21].

Entretanto, algumas vezes a classe m�dia podia agir como vetor de id�ias universais. � claro que isto dependia do seu grau de coes�o interna. Esta coes�o pode ser determinada por: 1) Interesses Partilhados: trata-se das id�ias aglutinadoras dos interesses difusos da classe. Em torno da id�ia de �moderniza��o�, por exemplo, foram reunidos os v�rios interesses das fra��es da classe m�dia (educa��o, urbaniza��o, industrializa��o, desenvolvimento cient�fico e tecnol�gico, etc.). 2) Normas Partilhadas: a institucionaliza��o de normas sociais pode contribuir para o aumento da unidade de classe. Institui��es sociais como os �colarinhos brancos� acabam por diferenciar os indiv�duos de uma sociedade, al�m de criarem um sentido de comunidade definido por um status diferenciado. 3) Valores Partilhados: trata-se de um conjunto de indicadores do grau de socializa��o cultural dentro da classe. Indica qu�o integrada a classe se encontra no n�vel das orienta��es de valores[22]. Por exemplo, qual o grau de aceita��o de valores como anticlericalismo, educa��o feminina, democracia, no seio da classe m�dia?

Como mencionei acima, dependendo do n�vel de coes�o interna a classe m�dia ter� condi��es de defender e difundir id�ias mais universalizantes. Aqui est� um segundo motivo para se estudar estes movimentos da perspectiva da classe: na medida em que as id�ias universalizantes contemplavam todas as classes sociais e prescreviam modelos para suas a��es futuras, elas acabavam por redefinir os pap�is das classes[23]. Um bom exemplo desse tipo de id�ia foi aquilo que chamarei de ideologia da moderniza��o[24]. Enquanto grupo de agitadores de classe m�dia os intelectuais paranaenses dispunham de vigorosos instrumentos de a��o com os quais n�o somente pensavam a sociedade, mas tamb�m agiam sobre ela. Os peri�dicos foram talvez os mais largamente utilizados[25].

No aspecto pol�tico a maior parte desses intelectuais preferiam um estado com mais autonomia federativa e com poder centralizado no executivo. � curioso o fato destes agitadores de classe m�dia estiveram envolvidos com o processo de fortalecimento dos executivos, ocorrido em quase toda a Am�rica Latina, neste per�odo[26]. Em Curitiba esta caracter�stica tamb�m esteve presente. Durante o processo de forma��o das pol�ticas urbanas da capital, a classe m�dia chegou a exigir que o executivo municipal encampasse empresas privadas com a certeza da melhoria dos servi�os prestados[27]. Como dissemos acima, na defesa de id�ias e no calor dos movimentos radicais, como o das reformas urbanas, � poss�vel que a pr�pria classe m�dia tenha redesenhado sua auto-representa��o enquanto classe. Os movimentos por reformas urbanas foram motivados porque membros da pr�pria classe m�dia, fazendo uso das ferramentas simb�licas que suas profiss�es ofereciam, criaram aquilo que ficou conhecido como �problemas urbanos�[28]. Em outros termos, foram os discursos de m�dicos e engenheiros que, principalmente nos primeiros anos do s�culo XX, criaram a representa��o da cidade como corpo doente. A partir de ent�o come�aram a fazer um trabalho de difus�o desta representa��o no interior da pr�pria classe. Pouco tempo depois o movimento pelas reformas urbanas tornava-se radical. Tal fen�meno demonstra um certo apetite desses setores intermedi�rios por bens urbanos de consumo coletivo. No processo de realiza��o deste interesse de classe, a classe m�dia redefine sua auto-representa��o enquanto tal, porque uma das formas dela se modelar � pelo consumo[29]. De quando em quando ela tem que alterar seu padr�o de consumo, tamb�m como forma de se diferenciar socialmente.

Por isso, n�o acredito que a an�lise das id�ias e de movimentos radicais pela �tica das classes v� conduzir ao determinismo econ�mico. Pois a cultura (ou melhor, esta caixa de ferramentas simb�licas[30]) nos oferece um extenso repert�rio de s�mbolos que s�o resgatados mediante os desafios do mundo real. Escolhemos ou descartamos representa��es e outras ferramentas culturais impulsionados pelas estrat�gias que definimos para a resolu��o de quest�es da vida material.

Uma das contribui��es mais importantes de Hill para a hist�ria foi justamente esta. Homens com necessidades concretas reviram sua �bagagem cultural� na busca da melhor ferramenta simb�lica que resolva seus problemas reais. Neste caso o rompimento com o determinismo �infraestrutural� marxiano � evidente. Enquanto para Marx a cultura era apenas um componente da ideologia (pelo menos na sua interpreta��o sociol�gica) tinha a fun��o perversa de conservar as rela��es de domina��o presentes na infraestrutura, para Hill (assim como, para Swidler), a cultura pode servir para a a��o, ou melhor, para a transforma��o. O exemplo mais radical � o que ocorreu com os Levellers, que a partir das Sagradas Escrituras encontraram justificativas para a reforma agr�ria[31]. Nesta �tica a cultura passa a ser esclarecedora e torna-se instrumento para a a��o, ao inv�s de alienante e conservadora. Importa, ainda, que fa�amos justi�a a Weber, um dos primeiros a insurgir contra o determinismo das condi��es objetivas. Este foi o teor do di�logo que estabelecera com Marx, no �mbito da ��tica protestante�. Para Weber n�o bastaria a matura��o das condi��es materiais para que o capitalismo aparecesse. Segundo este autor, �s condi��es econ�micas deviam se juntar as orienta��es subjetivas. Em outros termos, as cren�as somadas �s condi��es objetivas, ambas (e n�o uma e outra isoladamente) tinham o poder de alterar a realidade[32].

Vemos, portanto, que os movimentos radicais mant�m la�os de conex�o com o mundo material. Tomando cuidado para n�o reduzir as id�ias ao mero reflexo das condi��es objetivas, o pesquisador deve estar preparado para demonstrar como indiv�duos escolhem e recriam conceitos, representa��es e outras express�es espirituais, orientados para fins que est�o ligados � vida material. At� mesmo os crit�rios de escolha de tais ferramentas culturais obedecem, quase sempre, ao princ�pio da a��o sobre o mundo real (ligado, portanto, a interesses objetivos). Neste sentido, a situa��o objetiva de uma classe de pessoas, como a classe m�dia, pode contribuir para a produ��o de mais materiais intelectuais e de estrat�gias que definir�o quais desses materiais ser�o utilizados al�m, � claro, de fornecer os interesses que ir�o requerer tais estrat�gias para a a��o.


 


[1]    A atualiza��o da Escola dos Annales ocorrida em torno da d�cada de 1970, com raras exce��es, baniu de vez o estudo dos fen�menos pol�ticos. A prova mais evidente disso foi o abandono do estudo da Hist�ria Contempor�nea. Ver: BOURD�, Guy; MARTIN, Herv� (1990). As Escolas Hist�ricas. Mira Sintra: Europa-Am�rica, p. 139.

[2]    Justi�a seja feita! N�o podemos generalizar esta acusa��o a toda a Hist�ria Nova. Em 1992, foi publicado, na Fran�a, um livro dedicado exclusivamente �s reflex�es sobre a Hist�ria do Tempo Presente, com a contribui��o de v�rios autores. Entre eles, o medievalista Jacques Le Goff, que faz uma afirma��o curiosa: �O presente me interessa antes de tudo como cidad�o, como homem do presente, mas diante dos acontecimentos, dos fen�menos, dos problemas importantes, minha rea��o � a de um historiador, de um aluno de Marc Bloch. Escrever o presente pelo passado e o passado pelo presente�. Ver: LE GOFF, Jacques (1999). A Vis�o dos Outros: um medievalista diante do presente. In: CHAUVEAU, Agn�s; T�TART, Philippe. Quest�es para a Hist�ria do Presente. Bauru: Edusc, 1999.

[3]   Refiro � obra de ARANTES, Paulo Eduardo. Departamento Franc�s de Ultramar: um estudo sobre a forma��o da cultura filos�fica da USP. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Qualquer pesquisador que tenha tido curiosidade de conhecer o desenrolar das produ��es historiogr�ficas em outros pa�ses (atrav�s, por exemplo, da �History & Theory�e �Journal of Modern History�) p�de constatar que, antes de ocorrer uma �crise� da Hist�ria Pol�tica, seus historiadores souberam renovar conceitos e recriar metodologias, fazendo dessa forma de abordagem hist�rica um instrumento agudo e preciso de estudo da realidade.

[4]    CARVALHO, Jos� Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a Rep�blica que n�o foi. S�o Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 76.

[5]    Por exemplo: �Pouco depois, no in�cio de 1890, houve v�rias tentativas de criar um Partido Oper�rio, j� a� abrangendo tamb�m oper�rios do setor privado. Estabeleceu-se uma disputa entre l�deres oper�rios, como Fran�a e Silva, que lutava por um partido controlado pelos pr�prios oper�rios, e o tenente Jos� Augusto Vinhaes, da Marinha, que organizou um partido sob sua lideran�a�. Ver: CARVALHO, Jos� Murilo de. Os Bestializados, op.cit., p. 53.

[6]    SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Get�lio a Castelo, 1930 � 1964. 11.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

[7]    Estou tomando a palavra no sentido que Coser a emprestou: �El intelectual como cr�tico activo del gobierno y de la sociedad, como agitador de un grupo de ideas, no est� atento al poder sino primero trata de enfocar la mente del p�blico hacia un tema central y luego trata de cargar la fuerza de la opini�n p�blica sobre los que hacen la pol�tica�. Ver: COSER, Lewis A. Hombres de Ideas: el punto de vista de un soci�logo. Ciudad del M�xico: Fondo de Cultura Econ�mica, 1968, p. 217.

[8]    �... a hist�ria pol�tica passada e presente da classe m�dia brasileira est� estreitamente ligada �s particularidades nacionais do processo capitalista de transi��o � �economia agro-exportadora economia industrial�- e de industrializa��o�. Ver: SAES, D�cio. Classe M�dia e Sistema Pol�tico no Brasil. S�o Paulo: T. A. Queiroz, 1985, p. 02.

[9]    DE BONI, Maria In�s Mancini. O Espet�culo Visto pelo Alto: vigil�ncia e puni��o em Curitiba (1820-1920). Tese de Doutorado, FFLCH / USP, S�o Paulo, 1985. O aumento do contingente num�rico dos habitantes da capital paranaense ficou evidente na observa��o de Martins, no in�cio da d�cada de 1920: �Curitiba � a s�tima, dentre as capitais de Estados da Rep�blica quanto � popula��o. Em 1900, tinha 49.755 habitantes, em 1910, 60.800 e, em 1920, 78.986. V�-se da� seu r�pido crescimento�. Ver: MARTINS, Alfredo Rom�rio. Curityba de Outr�ora e de Hoje. Curitiba: Edi��o da Prefeitura Municipal de Curitiba, �Comemorativa da Independ�ncia do Brasil�, 1922, p. 140.

[10]    DE BONI, Maria In�s Mancini. O Espet�culo ... op. Cit., p. 23.

[11]    Sobre os fatores externos que contribu�ram para o agravamento da crise nas exporta��es paranaenses da erva-mate, diz Kroetz: �a Guerra Civil do Uruguai, um dos principais compradores, a crise por que passou a Europa nesta �poca (1893), reduziram as exporta��es das Rep�blicas do Prata e do Chile e, conseq�entemente, a sua capacidade de importar�. Ver: KROETZ, Lando Rog�rio. As Estradas de Ferro do Paran�: 1880-1940. Tese de Doutorado, FFLCH / USP, S�o Paulo, 1985, p. 196.

[12]    � digno de nota o esfor�o despendido pelo Estado a fim de dotar o sistema econ�mico de uma infraestrutura tal que possibilitasse um escoamento r�pido da produ��o, eliminando o risco de deteriora��o das mercadorias ao longo do transporte lento e danoso sobre carro�as. Da� toda a aten��o dada �s ferrovias. Primeiramente, a implanta��o da Estrada de Ferro do Paran� (1880-1885), que ligava Curitiba aos portos de Antonina e Paranagu�, principalmente para a exporta��o da erva-mate; em seguida, a Estrada de Ferro Norte do Paran� (1908), que chegava at� a col�nia Assungui, com o objetivo de deslocar produtos agr�colas e min�rios; o Ramal Paranapanema (1911), com a inten��o de ligar a Estrada de Ferro S�o Paulo-Rio Grande do Sul `a Estrada de Ferro Sorocabana, atravessando o Norte Pioneiro; tamb�m o Ramal de Serrinha - Nova Restinga (1914) da Estrada de Ferro do Paran�, surgiu da necessidade de reconstru��o do trecho Serrinha - Porto Amazonas; a Estrada de Ferro Mate - Laranjeiras (1918), obra da iniciativa privada que ligava Gua�ra at� Porto Mendes; todas constru�das na �nsia aparelhar a infra-estrutura do sistema de transporte agilizando a exporta��o dos produtos. Ver: Idem, p. 179.

[13]    Idem, p. 180-181.

[14]    Ao lado da madeira, a pecu�ria e o algod�o tamb�m fizeram parte do cen�rio econ�mico regional. A primeira, ap�s a queda do Imp�rio, passou a ser progressivamente desencorajada, o segundo, nesta �poca, s� serviu para o abastecimento do mercado interno. O caf�, por outro lado, come�ou a ter uma t�mida participa��o na economia agro-exportadora paranaense a partir da d�cada de 1920. Embora existisse essa �variedade� de produtos, a economia do Paran� ainda dependia, at� a segunda metade deste s�culo, da produ��o ervateira. Quando o mate ia mal, mal iam as administradoras de estradas de ferro, os trabalhadores da lavoura, a importa��o, o com�rcio, os fabricantes de carro�as, o tesouro e o contribuinte. Nas palavras de Kroetz: �A erva-mate, respons�vel pelo bom n�vel de emprego, era o instrumento fundamental para a importa��o de bens n�o produzidos internamente. At� o surgimento do caf� em maior escala, foi a maior fonte de renda na arrecada��o da receita p�blica e principal mercadoria no transporte ferrovi�rio�. Idem, p. 194.

[15]    LUZ, Regina Maria. A Moderniza��o da Sociedade no Discurso do Empresariado Paranaense: Curitiba 1890 / 1925. Disserta��o de Mestrado, UFPR / SCHLA, Curitiba, 1992, p. 12.

[16]    Relat�rio citado por: POMBO, Jos� Francisco da Rocha. O Paran� no Centen�rio: 1500-1900. Rio de Janeiro: J. Olympio; Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte do Estado do Paran�, 1980, 2 ed., pp. 138-139.

[17]    Quem quer que tenha trabalhado com fontes da imprensa peri�dica dos primeiros anos do s�culo XX, teve a oportunidade de ver esses profissionais oferecendo seus servi�os nos classificados.

[18]    Sem medo de cometer heresia, sou for�ado, embora n�o totalmente (mais adiante explicarei porque), a concordar com a antiga li��o do velho redator da Gazeta Renana: �� por isso que a humanidade s� se prop�e as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegar� � conclus�o de que a pr�pria tarefa s� aparece onde as condi��es materiais de sua solu��o j� existem, ou, pelo menos, s�o captadas no processo de seu devir�. MARX, Karl. Para a Cr�tica da Economia Pol�tica. S�o Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 52.

[19]    EDER, Klaus. A Classe Social tem Import�ncia no Estudo dos Movimentos Sociais? Uma teoria do radicalismo da classe m�dia. In: Revista Brasileira de Ci�ncias Sociais, vol. 16, n. 46, junho/2001, p. 09.

[20]    SAES, D�cio. Classe M�dia ..., op. cit., p. 10.

[21]    � interessante notar que a classe m�dia s� despertou a aten��o dos pesquisadores depois de ficar evidente seu apoio maci�o aos regimes totalit�rios do in�cio do s�culo XX. Ver: EDER, Klaus. A Classe Social..., op. cit., p. 09.

[22]    Idem, p. 11.

[23]    Na medida que o chamado Movimento Paranista teve que lidar com quest�es como �identidade�, fatalmente teve tangenciar os problemas que desenvolvemos aqui. Nas palavras de um estudioso do tema, o Movimento Paranista esteve envolvido na �cria��o de um conjunto de atividades visando o desenvolvimento e integra��o da sociedade paranaense ...�. Ver: SOUZA, Fabr�cio Leal de. Na��o e Her�i: a trajet�ria da intelectualidade paranaense. Disserta��o de Mestrado, UNESP, Assis, 2002, p. 42.

[24]    Este � sentido �fraco� de ideologia usado por Bobbio, e que consiste num �conjunto de mudan�as operadas nas esferas pol�tica, econ�mica e social que t�m caracterizado os dois �ltimos s�culos�. Ver: BOBBIO, Norberto (org.). Dicion�rio de Pol�tica. Bras�lia: Editora da Universidade de Bras�lia, 2 ed., 1996, p. 585.

[25]   �(Curitiba)Tem uma imprensa que constantemente agita as quest�es internas com crit�rio e comedimento (...) S�o 5 os jornais di�rios, sendo 1 em alem�o, al�m de numerosa imprensa peri�dica destinada a agitar problemas especiais, liter�rios, educativos, filos�ficos, econ�micos, art�sticos e cient�ficos, em vern�culo, alem�o, polaco e italiano�. MARTINS, Alfredo Rom�rio. Curitiba de Outr�ora..., op. cit., p. 144.

[26]    Referindo-se a este per�odo, Graciarena afirma que a classe m�dia na Am�rica Latina assumira uma ideologia tipicamente de Estado, segundo o autor �� preciso salientar que ajudaram a expandir as burocracias p�blicas, seja mediante a exig�ncia de novos empregos para seus membros, seja pela imposi��o de pol�ticas de amplia��o de servi�os p�blicos e de interven��o do Estado na economia�. GRACIARENA, Jorge. O Poder e as Classes Sociais no Desenvolvimento da Am�rica Latina. S�o Paulo: Mestre Jou, 1971, p. 140.

[27]    CUNHA FILHO, Valter Fernandes da. Cidade e Sociedade: a g�nese do urbanismo moderno em Curitiba. Disserta��o de Mestrado, DEHIS / UFPR, Curitiba, 1998.

[28]    TOPALOV, Christian. Da Quest�o Social aos Problemas Urbanos: os reformadores e a popula��o das metr�poles em princ�pios do s�culo XX. In: RIBEIRO, Luiz C�sar de Queiroz; PECHMAN, Robert (orgs.). Cidade, Povo e Na��o: g�nese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civiliza��o Brasileira, 1996, p. 23-51.

[29]    O�DOUGHERTY, Maureen. Auto-Retrato da Classe M�dia: hierarquia de �cultura� e consumo em S�o Paulo. In: Dados, 1998, vol. 41, n. 02, p. 411-444.

[30]    Tomei o conceito de �tool kit� emprestado de SWIDLER, Ann. Culture in Action: symbols and strategies. American Sociological Review, n. 51, p. 273-286, Apr., 1986.

[31]    Ver: HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabe�a: id�ias radicais durante a Revolu��o Inglesa de 1640. S�o Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[32]    WEBER, Max. A �tica Protestante e o Esp�rito do Capitalismo. 10. ed. S�o Paulo: Pioneira, 1996.