Relatar a si mesmo butler pdf

O que significa ter uma vida �tica? Em seu primeiro estudo amplo sobre filosofia moral, Judith Butler nos oferece o esbo�o para uma nova pr�tica �tica, que responda � necessidade de autonomia cr�tica e que se fundamente em um novo sentido do que � o sujeito.

O ponto de partida de Butler � nossa capacidade de responder a perguntas do tipo: Como (eu) devo agir? ou O que (eu) devo fazer? Ela mostra que essas quest�es s� podem ser respondidas se antes perguntarmos quem � esse eu que se v� na obriga��o de fazer um certo tipo de relato de si e de agir de determinada maneira. Como o sujeito descobre que n�o pode narrar a si mesmo sem se responsabilizar, ao mesmo tempo, pelas condi��es sociais em que surge, a reflex�o �tica exige uma teoria social.

Butler nos mostra neste livro como � dif�cil relatar a si mesmo e como essa falta de autotranspar�ncia e narratividade � crucial para um entendimento �tico do ser humano. Em um di�logo brilhante com Adorno, L�vinas, Foucault e outros pensadores, Butler nos oferece uma cr�tica do sujeito moral, argumentando que o sujeito �tico transparente e racional � um construto imposs�vel que busca negar a especificidade do que � ser humano. S� podemos nos conhecer de forma incompleta, e apenas em rela��o a um mundo social mais amplo que sempre nos precedeu e moldou de maneiras que n�o somos capazes de apreender inteiramente. Se somos opacos a n�s mesmos, de que maneira o ato �tico pode ser definido pela explica��o que damos de n�s? Um sistema �tico que nos considera respons�veis por nosso pleno autoconhecimento e nossa consist�ncia interna n�o nos inflige um tipo de viol�ncia �tica, levando a uma cultura de autocensura e crueldade?

Ao reformular a �tica como um projeto em que ser �tico significa tornar-se cr�tico das normas que nunca escolhemos, mas que guiam nossas a��es, Butler ilumina o que significa para n�s, criaturas fal�veis, criar e compartilhar uma �tica da vulnerabilidade, da humildade e da responsabilidade.

Relatar a si mesmo

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A constru��o da narrativa do si mesmo por Butler


Vindo da ruptura de uma filosofia tradicional e conservadora, Butler (destruiu e) e reconstruiu uma leitura do sujeito enquanto narrador de si, na compreens�o e interpreta��o das pr�prias caracter�sticas ps�quicas, fisiol�gicas, jur�dicas, pol�ticas, etc. Partindo dos escritos de Laplanche, Levinas e Foucault ela faz um apanhado dial�tico dessas filosofias de modo a extrair aquilo que lhe agrega enquanto mais coerente e contempor�neo, trazendo � tona as contradi��es da linguagem e do p... leia mais

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Publicado em: 2020-08-05

Relatar a si mesmo butler pdf
Judith Butler
Relatar a si mesmo:
crítica da violência ética
Tradução
Rogério Bettoni
Posfácio
Vladimir Safatle
Agradecimentos
Os capítulos deste livro foram apresentados originalmente
no Spinoza Lectures, no primeiro semestre de 2002, evento
promovido pelo Departamento de Filosofia da Universidade de
Amsterdã. Agradeço a Hent de Vries por me fazer esse
generoso convite e pela oportunidade de trabalhar parte desse
material com os alunos de lá. O livro começou como tema de
um seminário na Universidade de Princeton, no segundo
semestre de 2001 – na época eu era membra do Conselho de
Humanidades. Minhas discussões com o corpo docente e os
universitários foram extremamente produtivas. Por fim,
entreguei o material revisado para a série de conferências
Adorno Lectures do Instituto para Pesquisa Social, em
Frankfurt, no segundo semestre de 2002. Agradeço a Axel
Honneth pela oportunidade de rever a obra de Adorno e de me
envolver com ela de uma maneira nova. Sou igualmente grata
pelas discussões que tive no Instituto com diversas pessoas
que me mostraram um forte compromisso com as questões que
levantei. Este texto foi publicado na Holanda, numa versão
prévia e substancialmente resumida, como Giving an Account
of Oneself: A Critique of Ethical Violence pela Van Gorcum
Press (2003), e posteriormente em alemão, também numa
versão resumida, como Kritik der Ethischen, pela Suhrkamp
Verlag (2003), habilmente traduzido por Reiner Ansen. Partes
do segundo capítulo foram publicadas como um artigo
chamado “Giving an Account of Oneself” na revista
Diacritics, v. 31, n. 4, p. 22-40.
Estendo meus agradecimentos a diversas pessoas que
colaboraram com várias ideias para o manuscrito do texto:
Frances Bartkowski, Jay Bernstein, Wendy Brown, Michel
Feher, Barbara Johnson, Debra Keates, Paola Marrati, Biddy
Martin, Jeff Nunokawa, Denise Riley, Joan W. Scott, Annika
Thiem e Niza Yanay. Também agradeço aos alunos do meu
seminário de literatura comparada realizado no segundo
semestre de 2003, que leram comigo a maioria dos textos
analisados aqui, contrariando meus pontos de vista e gerando
uma discussão intensa sobre diversos assuntos. Agradeço a Jill
Stauffer por me mostrar a importância de Lévinas para o
pensamento ético, e a Colleen Pearl, Amy Jamgochian, Stuart
Murray, James Salazar, Amy Huber e Annika Thiem pela
assistência editorial e pelas sugestões em diferentes etapas. Por
fim, agradeço a Helen Tartar, que está ansiosa para lutar com
minhas palavras e para quem, ao que parece, este livro retorna.
Dedico-o à minha amiga e interlocutora Barbara Johnson.
Abreviações
As seguintes abreviações foram usadas no texto.1
DF – LÉVINAS, Emmanuel. Difficult Freedom: Essays on
Judaism. Tradução para o inglês de Sean Hand. Baltimore:
The Johns Hopkins University Press, 1990.
EP – FOUCAULT, Michel. Structuralisme et
poststructuralisme. In: Dits et écrits, 1954-1988. Paris:
Gallimard, 1994. t. 4: 1980-1988. p. 431-457. [Edição
brasileira: Estruturalismo e pós-estruturalismo. In: Ditos e
escritos. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008. v. 2. p. 307-324.]
FS – FOUCAULT, Michel. Fearless Speech. Organização
de Joseph Pearson. Nova York: Semiotext(e), 2001.
GM – NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of
Morals. Tradução para o inglês de Walter Kaufmann. Nova
York: Random House, 1969. [Edição brasileira: Genealogia da
moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.]
H – FOUCAULT, Michel. About the Beginning of the
Hermeneutics of the Self. Tradução para o inglês de Thomas
Keenan e Mark Blasius. In: Religion and Culture. Organização
de Jeremy Carrette. Nova York: Routledge, 1999. p. 158-181.
HDS – FOUCAULT, Michel. L’Herméneutique du sujet:
Cours au Collège de France (1981-1982). Paris: Gallimard,
2001. [Edição brasileira: A hermenêutica do sujeito. Tradução
de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.]
HM – FOUCAULT, Michel. How Much Does It Cost for
Reason to Tell the Truth? In: Foucault Live. Organização de
Sylvère Lotringer. Tradução para o inglês de John Honston.
Nova York: Semiotext(e), 1989.
OB – LEVINAS, Emmanuel. Otherwise than Being, or
beyond Essence. Tradução para o inglês de Alphonso Lingis.
The Hague: Martinus Nijhoff, 1981.
PMP – ADORNO, Theodor W. Problems of Moral
Philosophy. Tradução para o inglês de Rodney Livingstone.
Stanford: Stanford University Press, 2001.
S – LEVINAS, Emmanuel. Substitution. Publicado
originalmente em La Revue Philosophique du Louvain, n. 66,
p. 487-508, 1968. Tradução para o inglês de Peter Atterton,
Simon Critchley e Graham Noctor. In: Emmanuel Levinas,
Basic Philosophical Writings. Organização de Adriaan T.
Peperzak, Simon Critchley e Robert Bernasconi. Bloomington:
Indiana University Press, 1996. p. 79-96.
UP – FOUCAULT, Michel. The Use of Pleasure: The
History of Sexuality, Volume Two. Nova York: Random House,
1985. [Edição brasileira: História da sexualidade 2: o uso dos
prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque.
13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009.]
Neste livro, uso a noção de “outro” para denotar o outro
humano em sua especificidade exceto onde, por razões
técnicas, o termo precisa assumir um significado levemente
diferente. Em Lévinas, por exemplo, “o Outro” não se refere
apenas ao outro humano, mas age como lugar-tenente de uma
relação ética infinita. Nesse caso, grafo a palavra com inicial
maiúscula.
1 *
As edições brasileiras indicadas entre colchetes foram
usadas como referência para citações. Outras edições
brasileiras que serviram como referência de leitura, mas cujas
citações não foram usadas na tradução, estão indicadas
apropriadamente nas notas. (N.T.)
O valor do pensamento é medido pela sua distância em
relação à continuidade do conhecido.
Adorno, Minima Moralia
Gostaria de começar considerando como pode ser possível
colocar a questão da filosofia moral – questão que tem a ver
com conduta e, portanto, com o fazer – dentro de um
referencial social contemporâneo. Colocar a questão nesse
quadro já é admitir uma tese a priori, a saber, não só que as
questões morais surgem no contexto das relações sociais, mas
também que a forma dessas questões muda de acordo com o
contexto – e até o contexto, em certo sentido, é inerente à
forma da questão. Em Problems of Moral Philosophy
[Problemas da filosofia moral], série de conferências
ministradas em meados de 1963, Adorno escreve: “Podemos
provavelmente dizer que as questões morais sempre surgem
quando as normas morais de comportamento deixam de ser
autoevidentes e indiscutíveis na vida de uma comunidade”.2
De certa forma, essa afirmação parece descrever as condições
de surgimento das questões morais, mas Adorno depois
especifica essa descrição. Ele faz uma breve crítica a Max
Scheler, que lamenta a Zersetzung das ideias éticas. Para
Scheler, Zersetzung significa a destruição de um éthos ético
coletivo e comum. Adorno se recusa a lamentar essa perda e
afirma que o éthos coletivo é invariavelmente conservador e
postula uma falsa unidade que tenta suprimir a dificuldade e a
descontinuidade próprias de qualquer éthos contemporâneo.
Não que antes existisse uma unidade que acabou se separando;
o que havia antes era uma idealização, ou melhor, um
nacionalismo, que hoje não é mais aceitável nem deveria ser.
Como resultado, Adorno faz um alerta contra o recurso à ética
como uma espécie de repressão e violência. Escreve ele:
nada é mais degenerado do que o tipo de ética ou
moral que sobrevive na forma de ideias coletivas
mesmo depois que o Espírito do Mundo – usando a
expressão hegeliana como atalho – cessou de nelas
residir. Uma vez que o estado da consciência
humana e o estado das forças sociais de produção
abandonaram essas ideias coletivas, essas mesmas
ideias adquirem qualidades repressoras e violentas.
O que obriga a filosofia a realizar esse tipo de
reflexão que expressamos aqui é o elemento de
compulsão que deve ser encontrado nos costumes
tradicionais; é essa violência e esse mal que
colocam os costumes [Sitten] em conflito com a
moralidade [Sittlichkeit],3
e não o declínio dos
princípios morais como pranteado pelos teóricos da
decadência (PMP, p. 17).
Em primeiro lugar, Adorno afirma que as questões morais
surgem apenas quando o éthos coletivo deixa de imperar. Isso
quer dizer que elas não têm de surgir na base de um éthos
comumente aceito para serem qualificadas como morais; na
verdade, parece haver uma tensão entre éthos e moral, tanto
que o enfraquecimento daquele é a condição para o
aperfeiçoamento desta. Em seguida, ele deixa claro que,
embora o éthos coletivo não seja mais compartilhado – aliás,
justamente porque o “éthos coletivo”, que agora deve ser
colocado entre aspas, não é compartilhado de maneira comum
–, ele só pode impor sua pretensão de comunidade por meios
violentos. Nesse sentido, o éthos coletivo instrumentaliza a
violência para manter sua aparência de coletividade. Além
disso, esse éthos só se torna violência uma vez que tenha se
tornado um anacronismo. O que há de estranho em termos
históricos – e temporais – nessa forma de violência ética é que,
embora o éthos coletivo tenha se tornado anacrônico, ele não
se tornou passado: insiste em se impor no presente como
anacrônico. O éthos se recusa a se tornar passado, e a violência
é sua forma de se impor no presente. Com efeito, ele não só se
impõe no presente como também busca ofuscá-lo – esse é
precisamente um de seus efeitos violentos.
Adorno usa o termo “violência” em relação à ética no
contexto de pretensões de universalidade. Ele oferece ainda
outra formulação para o surgimento da moral, que é sempre o
surgimento de certos tipos de inquisições morais, de
questionamentos morais: “o problema social da divergência
entre o interesse universal e o interesse particular, os interesses
de indivíduos particulares, é o que se dá à constituição do
problema da moral” (PMP, p. 19). Quais são as condições em
que acontece essa divergência? Adorno alude a uma situação
em que “o universal” deixa de concordar com o individual ou
de incluí-lo, e a própria pretensão de universalidade ignora os
“direitos” do indivíduo. Podemos imaginar, por exemplo, a
imposição de governos em países estrangeiros em nome de
princípios universais de democracia, quando na verdade essa
imposição nega efetivamente os direitos da população para
eleger seus próprios representantes. Nesse sentido, podemos
pensar na proposta do presidente Bush de uma Autoridade
Palestina, ou em seus esforços para substituir o governo no
Iraque. Nesses exemplos, usando as palavras de Adorno, “o
universal […] aparece como algo violento e extrínseco, sem
nenhuma realidade substancial para os seres humanos” (PMP,
p. 19). Embora Adorno muitas vezes transite abruptamente
entre ética e moral, ele prefere usar em sua obra o termo
“moral”, refletido posteriormente em Minima Moralia, e
insiste em que qualquer conjunto de máximas ou regras deve
ser apropriável por indivíduos “de maneira vital” (PMP, p.
15). Considerando que se possa reservar o termo “ética” para
se referir aos amplos contornos dessas regras e máximas, ou
para a relação entre si-mesmos implicada por essas regras,
Adorno insiste em que a norma ética que não oferece um
modo de vida ou que se revela, dentro das condições sociais
existentes, como impossível de ser apropriada tem de ser
submetida à revisão crítica (PMP, p. 19). Se ela ignora as
condições sociais, que também são as condições sob as quais
toda ética deve ser apropriada, aquele éthos torna-se violento.
No que se segue deste primeiro capítulo, quero mostrar o
que considero importante na concepção adorniana de violência
ética, embora uma consideração mais sistemática do tema só
seja feita no terceiro capítulo. Nesta seção introdutória, quero
apenas salientar a importância da formulação de Adorno para
as discussões contemporâneas sobre niilismo moral e mostrar
como as mudanças em seu quadro teórico são exigidas pelo
caráter histórico mutável da investigação moral. Em certo
sentido, o próprio Adorno teria aprovado esse deslocamento
para além dele mesmo, dado seu compromisso em considerar a
moral dentro dos contextos sociais mutáveis, em que surge a
necessidade da investigação moral. O contexto não é externo
ao problema: ele condiciona a forma que o problema vai
assumir. Nesse sentido, as questões que caracterizam a
investigação moral são formuladas ou estilizadas pelas
condições históricas que as suscitam.
Entendo que a crítica de Adorno à universalidade abstrata
como algo violento pode ser interpretada em relação à crítica
de Hegel ao tipo de universalidade característica do Terror.
Escrevi alhures sobre isso4
e aqui quero apenas frisar que o
problema não é com a universalidade como tal, mas com uma
operação da universalidade que deixa de responder à
particularidade cultural e não reformula a si mesma em
resposta às condições sociais e culturais que inclui em seu
escopo de aplicação. Quando, por razões sociais, é impossível
se apropriar de um preceito universal, ou quando – também
por razões sociais – é preciso recusá-lo, ele mesmo se torna
um terreno de disputa, tema e objeto do debate democrático.
Ou seja, o preceito universal perde seu status de precondição
do debate democrático; se funcionasse como precondição,
como um sine qua non da participação, imporia sua violência
na forma de forclusão excludente. Isso não quer dizer que a
universalidade seja violenta por definição. Ela não o é. Mas há
condições em que pode exercer a violência. Adorno nos ajuda
a entender que essa violência consiste em parte em sua
indiferença para com as condições sociais sob as quais uma
apropriação vital poderia se tornar possível. Se uma
apropriação vital é impossível, parece então seguir-se que o
preceito só pode ser experimentado como uma coisa mortal,
um sofrimento imposto, de um exterior indiferente, à custa da
liberdade e da particularidade.
Adorno parece quase kierkegaardiano quando insiste no
lugar e no significado do indivíduo existente e na tarefa
necessária de se apropriar da moral, bem como de se opor às
diferentes formas de violência ética. No entanto, adverte
contra o erro da posição oposta, quando o “eu”5
se compreende
separado de suas condições sociais, quando é adotado como
pura imediaticidade, arbitrária ou acidental, apartado de suas
condições sociais e históricas – as quais, afinal de contas,
constituem as condições gerais de seu próprio surgimento.
Adorno é claro quando afirma que não há moral sem um “eu”,
mas algumas perguntas críticas permanecem sem resposta: em
que consiste esse “eu”? Em que termos ele pode se apropriar
da moral, ou melhor, dar um relato de si mesmo? Adorno
escreve, por exemplo: “para vocês será óbvio que todas as
ideias da moral ou do comportamento ético devem se
relacionar a um ‘eu’ que age” (PMP, p. 28). Contudo, não
existe nenhum “eu” que possa se separar totalmente das
condições sociais de seu surgimento, nenhum “eu” que não
esteja implicado em um conjunto de normas morais
condicionadoras, que, por serem normas, têm um caráter social
que excede um significado puramente pessoal ou
idiossincrático.
O “eu” não se separa da matriz prevalecente das normas
éticas e dos referenciais morais conflituosos. Em um sentido
importante, essa matriz também é a condição para o
surgimento do “eu”, mesmo que o “eu” não seja induzido por
essas normas em termos causais. Não podemos concluir que o
“eu” seja simplesmente o efeito ou o instrumento de algum
éthos prévio ou de algum campo de normas conflituosas ou
descontínuas. Quando o “eu” busca fazer um relato de si
mesmo, pode começar consigo, mas descobrirá que esse “si
mesmo” já está implicado numa temporalidade social que
excede suas próprias capacidades de narração; na verdade,
quando o “eu” busca fazer um relato de si mesmo sem deixar
de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por
necessidade, tornar-se um teórico social.
A razão disso é que o “eu” não tem história própria que
não seja também a história de uma relação – ou conjunto de
relações – para com um conjunto de normas. Ainda que muitos
críticos contemporâneos sintam-se incomodados frente à
possibilidade de isso significar que não existe um conceito de
sujeito que possa servir como fundamento para a ação moral e
a responsabilização moral, essa conclusão não procede. Até
certo ponto, as condições sociais de seu surgimento sempre
desapossam o “eu”.6
Essa despossessão não significa que
tenhamos perdido o fundamento subjetivo da ética. Ao
contrário, ela pode bem ser a condição para a investigação
moral, a condição de surgimento da própria moral. Se o “eu”
não está de acordo com as normas morais, isso quer dizer
apenas que o sujeito deve deliberar sobre essas normas, e que
parte da deliberação vai ocasionar uma compreensão crítica de
sua gênese social e de seu significado. Nesse sentido, a
deliberação ética está intimamente ligada à operação da crítica.
E a crítica comprova que não pode seguir adiante sem
considerar como se dá a existência do sujeito deliberante e
como ele pode de fato viver ou se apropriar de um conjunto de
normas. Não se trata apenas de a ética se encontrar envolvida
na tarefa da teoria social, mas a teoria social, se tiver de
produzir resultados não violentos, deve encontrar um lugar de
vida para esse “eu”.
O surgimento do “eu” a partir da matriz das instituições
sociais pode ser explicado de diversas maneiras, e várias são
as formas de contextualizar a moral dentro de suas condições
sociais. Adorno tende a considerar que existe uma dialética
negativa em funcionamento quando as pretensões de
coletividade resultam não coletivas, quando as pretensões de
universalidade abstrata resultam não universais. A divergência
é sempre entre o universal e o particular e torna-se a condição
do questionamento moral. O universal não só diverge do
particular; essa divergência é o que o indivíduo chega a
experimentar, o que se torna para o indivíduo a experiência
inaugural da moral. Nesse sentido, a teoria de Adorno tem uma
ressonância com a de Nietzsche, que destaca a violência da
“má consciência”, a qual dá origem ao “eu” como
consequência de uma crueldade potencialmente aniquilante. O
“eu” volta-se contra si mesmo, desencadeando contra si
mesmo uma agressão moralmente condenatória, e, com isso,
inaugura-se a reflexividade. Pelo menos essa é a visão
nietzschiana da má consciência. Devo sugerir que Adorno
alude a tal visão negativa da má consciência quando sustenta
que a ética que não pode ser apropriada de “uma maneira
vital” pelos indivíduos sob as condições sociais existentes “é a
má consciência da consciência” (PMP, p. 15).
Temos de perguntar, no entanto, se o “eu” que deve se
apropriar das normas morais de uma maneira vital não é, por
sua vez, condicionado por essas mesmas normas que
estabelecem a viabilidade do sujeito. Uma coisa é dizer que o
sujeito deve ser capaz de se apropriar das normas; outra é dizer
que deve haver normas que preparam um lugar para o sujeito
dentro do campo ontológico. No primeiro caso, as normas
estão aí, a uma distância exterior, e a tarefa é encontrar uma
maneira de se apropriar delas, de assumi-las, de estabelecer
com elas uma relação vital. O quadro epistemológico
pressupõe-se nesse encontro, em que o sujeito se depara com
as normas morais e deve descobrir uma forma de lidar com
elas. Mas será que Adorno acreditava que as normas também
decidem por antecipação quem se tornará e quem não se
tornará sujeito? Considerava ele a operação das normas na
própria constituição do sujeito, na estilização de sua ontologia
e no estabelecimento de um lugar legítimo no campo da
ontologia social?
Cenas de interpelação
Começamos com uma resposta, uma pergunta que
responde a um ruído, e o fazemos no escuro –
fazer sem exatamente saber, contentar-se com a fala.
Quem está lá, ou aqui, ou quem se foi?
Thomas Keenan, Fables of Responsibility
Por ora deixarei de lado a discussão sobre Adorno, mas
retornarei a ele para falar não da relação do sujeito com a
mor...

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