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Parece que se o homem não tivesse pecado, mesmo assim Deus teria se encarnado:
- Com efeito, se a causa permanece, também permanece o efeito. Ora, como Agostinho diz, “muitas outras coisas devem ser pensadas da encarnação de Cristo”, além da libertação do pecado, da qual se falou. Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado, Deus teria e encarnado.
- Além disso, é próprio da onipotência do poder divino levar à perfeição suas obras e manifestar-se por algum efeito infinito. Mas nenhuma simples criatura pode ser chamada de efeito infinito sendo finita por essência. Com efeito, somente na obra da encarnação parece sobretudo manifestar-se o efeito do poder divino, na medida em que realidades infinitamente distantes se unem, pelo fato de homem ser Deus. Nessa obra o universo também atinge sua máxima perfeição no sentido de que a última das criaturas, o homem, se une ao primeiro princípio, a saber, Deus. Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado Deus teria se encarnado.
- Ademais, pelo pecado a natureza humana não se tornou mais capaz de receber a graça. Ora, depois do pecado tornou-se capaz da graça da união, que é a maior de todas. Portanto, mesmo que o homem não pecasse, a natureza humana teria sido capaz dessa graça. E Deus não teria tirado da natureza humana um bem do qual era capaz. Logo, mesmo que o homem não tivesse pecado Deus se teria encarnado.
- Ademais, a predestinação de Deus é eterna. Ora, na Carta aos Romanos (1,4), se diz de Cristo que foi “estabelecido Filho de Deus com poder”. Logo, mesmo antes do pecado era necessário que o Filho de Deus se encarnasse para que fosse cumprida a predestinação de Deus.
- Ademais, o mistério da encarnação foi revelado ao primeiro homem, o que é evidente por ter ele dito: “Eis, desta vez, o osso dos meus ossos, etc….,” (Gn 2, 23) o que o Apóstolo, na Carta aos Efésios, chama “o grande sacramento no Cristo e na Igreja” (5, 32). Ora, o homem não podia conhecer com antecedência sua queda, nem o anjo, como o demonstra Agostinho. Logo, mesmo que o homem não pecasse Deus teria se encarnado.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, comentando o que diz o Evangelho de Lucas: “Com efeito, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (19, 10), diz Agostinho, “se o homem não pecasse o Filho do Homem não teria vindo”. E onde se lê na primeira Carta a Timóteo: “Cristo veio a esse mundo para salvar os pecadores” (1, 15), a Glosa diz: “Não houve outra causa para a vinda do Cristo Senhor senão para salvar os pecadores. Tira as doenças, tira as feridas, e não há necessidade de remédio”.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
- Todos os outros motivos da encarnação que foram enumerados pertencem ao remédio do pecado. Se o homem não tivesse pecado, teria sido penetrado pela luz da divina sabedoria e dotado por Deus com a retidão da justiça para conhecer todas as coisas necessárias. Mas como o homem, tendo abandonado a Deus, decaiu ao nível das realidades corpóreas, foi conveniente que Deus, encarnando-se, lhe mostrasse por meio de coisas corporais o remédio da salvação. Por isso, Agostinho, comentando o texto de João: “O Verbo se fez carne”, diz: “A carne te cegara, a carne te cura; porque Cristo veio para apagar com a carne os vícios da carne”.
- O poder divino infinito mostra-se já pelo modo de produção das coisas a partir do nada. Para a perfeição do universo basta que a criatura seja ordenada para Deus como para seu fim, segundo sua natureza. Mas, que a criatura se uma a Deus em unidade de pessoa está além dos limites da perfeição da natureza.
- Na natureza humana podemos encontrar uma dupla capacidade. Uma, segundo a ordem da potência natural. Essa é sempre satisfeita por Deus, que dá a cada coisa o que é requerido por sua potência natural. Outra, segundo a ordem da potência divina, a cuja vontade toda criatura obedece. A esta capacidade se refere a objeção. Mas Deus não satisfaz plenamente essa capacidade da natureza, pois, caso contrário, não poderia fazer na criatura senão o que de fato faz: o que é falso, como se demonstrou na I Parte.
Nada impede que a natureza humana seja elevada, depois do pecado, a algo mais sublime; Deus permite que se faça o mal para daí tirar um bem maior. Eis por que está escrito na Carta aos Romanos: “Onde abundou o pecado superabundou a graça” (5, 20). E na bênção do Círio Pascal se diz: “Ó feliz culpa que mereceu ter tal e tão grande Redentor!”.
- A predestinação supõe a presciência das coisas futuras. E assim como Deus predestina a salvação de certo homem a ser cumprida pela oração de outros, assim também predestinou a obra da encarnação para remédio do pecado humano.
- Nada impede que a alguém se revele o efeito sem que seja revelada a causa. O mistério da encarnação pôde ser revelado ao primeiro homem sem que ele conhecesse antecipadamente sua causa; nem sempre o que conhece o efeito conhece também a causa.
Suma Teológica III, q.1, a.3