Aspectos importantes do modo de vida das comunidades tradicionais brasileiras

Quem estuda a sucessão de fatos que foi construindo o Brasil não encontra muitas histórias de como se deu a ocupação do país para além dos projetos de colonização oficiais. Invisíveis aos olhos da maioria e muitas vezes desconsideradas pelo Estado, muitas comunidades criaram modos de vida próprios, enraizados em territórios que foram transformando e construindo.

Neste especial, a Repórter Brasil retrata oito comunidades tradicionais diferentes. Durante muito tempo, elas se beneficiaram de certa invisibilidade e usaram estratégias silenciosas de relacionamento com o resto da sociedade para permanecerem nos locais que ocupavam. Hoje gritam a sua existência. Dar nomes aos seus modos de vida é um jeito de combater o avanço de invasores sobre suas terras e sobre suas águas.

Ao mergulhar nesse universo, encontramos histórias de violência, ameaças e conflitos, diante da expansão da fronteira agropecuária, da especulação imobiliária e de projetos geridos pelo governo. Elas são uma pequena amostra de milhares de comunidades espalhadas pelo país – e de suas lutas para serem o que são.

Para sobreviver, elas dependem da nossa rica diversidade de biomas: da Caatinga ao Cerrado, das florestas de Araucárias à Amazônia, dos mares aos rios. Os territórios que ocupam são alguns dos locais mais preservados do Brasil.

Juntas, estão formando articulações para compartilharem conflitos e estabelecerem estratégias coletivas de resistência, aprendendo com as experiências dos povos indígenas e quilombolas.

Muitas vezes, a palavra tradicional é associada a práticas do passado. Mas, ao percorrer a trajetória de uma pequena amostra dessas comunidades, este especial conta uma parte muito viva da nossa história, e que segue em construção.

“Os povos indígenas são os primeiros do Brasil, considerados os donos da terra e fazem parte do arcabouço dos povos tradicionais. A partir da colonização, outros povos vão sendo agregados. Em 1574, tem o registro da entrada do primeiro cigano", narra Kátia Favilla, antropóloga especialista no assunto e secretária-executiva da Rede Cerrado.

“A gente tem um processo, então, já de uns 400 anos de formação de povos e comunidades tradicionais, que não é um processo finalizado”, completa.

São pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, apanhadores de flores sempre-vivas, caatingueiros, extrativistas, para citar alguns (veja lista completa ao fim da reportagem). Todos considerados culturalmente diferenciados, capazes de se reconhecerem entre si.

Essas comunidades fazem uso dos recursos naturais, não apenas para seu sustento, mas também para reprodução cultural, social e religiosa, define Cristina Adams, uma das coordenadoras do livro “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil – contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”.

Nessa reportagem, você vai ver:

Parceria com a natureza

Cada uma das comunidades tem uma prática de sistema tradicional de uso, que, de forma generalizada, é conhecida como Sistema Agrícola de Produção (Sat).

“Essas práticas são muito importantes no modo como esses povos se autoidentificam. Muitas dessas comunidades tradicionais se identificam pelas práticas econômicas que são estruturantes do seu modo de vida”, explica Ana Tereza da Silva, professora do Mestrado Profissional em Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UNB).

Contudo nem todos os povos mantêm apenas um modo de produção. Uma comunidade pesqueira, por exemplo, pode também realizar o extrativismo sustentável, exemplifica Ana. Ou, como acrescenta Kátia, uma comunidade extrativista pode ter uma pequena roça.

Ainda assim, o Sat é fundamental para a manutenção dos povos em seus territórios.

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Reportagem do Globo Rural de 2021 mostra quilombo que produz rapadura artesanal e aumenta renda com projeto Pró-Semiárido.

Para Ana, essas populações não veem o agro como um negócio. A terra é considerada uma mãe e há uma relação de reciprocidade com a natureza.

Nesta troca, a natureza fornece “alimento, um lugar saudável para habitar, para ter água. E eles se responsabilizam em cuidar dela, a tirar dela apenas o suficiente para viver bem e a respeitar os tempos de auto-organização, de regeneração da própria natureza”, diz.

Na prática, essas populações dependem, muitas vezes, de uma agricultura e tecnologia simples e intensiva mão de obra, ainda que, dentro do território, a densidade populacional seja baixa, descreve Cristina.

Além de terem pouco impacto ambiental, suas atividades contribuem para a manutenção e para a geração de biodiversidade, tanto da natureza quanto da “agrobiodiversidade”, ou seja, de variedade de espécies dentro da atividade agrícola, fundamental para a segurança alimentar.

Chega até sua mesa

As produções dessas populações não ficam apenas para a subsistência. Elas já foram abrangidas por algumas políticas públicas, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), voltado para ajudá-las a escoar os cultivos para as escolas próximas às comunidades.

Atualmente, as feiras locais são importantes para que esses alimentos sejam comercializados.

Algumas comunidades organizadas de maneira mais coletiva, através de associações, por exemplo, conseguem expandir a venda para outros estados e para o exterior.

Kátia, antropóloga especialista no assunto, mora em Lisboa e conta que o açaí é um grande exemplo disso. Boa parte vem de comunidades tradicionais e se tornou comum na capital portuguesa.

No Brasil, o umbu, a castanha do Brasil e o pequi são exemplos de comidas que vêm desses povos e chegam até as cidades.

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De onde vem o que eu como: Mel

Reconhecimento

O primeiro passo para um grupo ser considerado tradicional é a autoidentificação, que ele se declare como tal.

Depois vem a etapa dos processos judiciais, quando são feitos laudos que comprovem a historicidade da comunidade, há quanto tempo ela ocupa determinada área, suas produções sociais, políticas e econômicas, por exemplo.

“O que faz uma comunidade se autoidentificar como tradicional, normalmente, são as ameaças”, diz Ana.

Esses povos, que sempre estiveram em suas terras, quando sentem que podem perdê-las, seja para o grande agronegócio ou para grileiros, buscam esse reconhecimento para tentar manter o seu direito de permanecer no local.

Existem situações, inclusive, em que as vidas das lideranças são ameaçadas ou tiradas por quem visa tomar essas áreas.

Em relação aos indígenas e quilombolas, esse direito à terra está resguardado pela Constituição de 1988, resultado da mobilização dos movimentos sociais.

Com isso, essas pessoas contam com órgãos federais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares. Ambas têm função institucional e constitucional de reconhecer e demarcar as terras, explica Ana.

Os demais povos têm que recorrer a outros dispositivos jurídicos, como ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Eles também podem recorrer ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e solicitar que a área se torne uma reserva de desenvolvimento sustentável, diz a professora do MESPT.

Há ainda o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CONPCT) - composto majoritariamente por representantes desses povos -, que além de fazer parte deste processo de reconhecimento, também auxilia no diálogo entre comunidades e o Estado brasileiro.

Apesar disso, Kátia diz que, atualmente, esses órgãos estão enfraquecidos e o que realmente tem defendido esses povos são os movimentos sociais, caso da Rede de Comunidades Tradicionais, formada por mais de 30 segmentos, que atua em diálogo com o governo buscando uma legislação mais representativa.

Saiba mais sobre a demarcação de terras indígenas com o vídeo:

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Joenia Wapichana comenta sobre a demarcação das terras indígenas

Busca por direitos

A terra, de acordo com as especialistas, é a maior questão para essas comunidades.

“Muitas vezes eles estão em território de interesse para grandes fazendeiros, para mineração ou para madeireiras, de modo que eles são o elo mais fraco da corrente”, explica Cristina.

De acordo com a pesquisadora, há ainda o agravante de que existem comunidades cujo território acabou sendo sobreposto por unidades de conservação, o que também pode gerar muitos conflitos e impedimentos no uso tradicional dos recursos naturais.

Isso porque, nessas situações, a população deveria ser retirada da área e indenizada, mas a escritora disse que nunca soube de um caso em que isso aconteceu.

Porém essa não é a única luta dessas pessoas, há a busca por políticas públicas. Esses povos enfrentam, por exemplo, a dificuldade para acessar créditos agrícolas e para melhoria de moradias, diz Kátia.

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Há também obstáculos para a comercialização dos produtos, com estradas em condições ruins para o escoamento ou mesmo sobrando apenas os rios para fazer isso, relata a antropóloga.

Para além do setor agrícola, há falta de acesso a educação e a saúde de qualidade.

“A modernidade chegou a elas (comunidades), mas isso não faz com que elas percam a sua ancestralidade, mas é claro que elas foram se adaptando ao mundo. Elas querem acesso, por exemplo, a educação e a universidades”, diz Kátia.

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Veja a lista de povos e comunidades tradicionais:

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Quais são os aspectos importantes do modo de vida das comunidades tradicionais brasileiras?

Povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, ...

Onde e como vivem as comunidades tradicionais?

Os povos e as comunidades tradicionais têm uma cultura ancestral e vivem no cerrado brasileiro há cerca de 12 mil anos. São a representação atual dessa sociobiodiversidade, como conhecedores e guardiões do patrimônio ecológico e cultural da região.

Como é o modo de vida tradicional?

Abrange os costumes, saberes e a forma de relação com a natureza. Segundo ele, um modo de vida tradicional é configurado pela organização básica do ambiente de convivência, consolidado historicamente pelas práticas humanas, tendo como aspectos básicos a naturalidade e a simplicidade.

Qual a importância de se preservar o modo de vida dos povos das comunidades tradicionais?

Povos e Comunidades Tradicionais vivem protegendo seus territórios e seus recursos naturais. São esses territórios e os conhecimentos de quem vive neles que subsidia a “invenção e a descoberta” de novos medicamentos, curas, cosméticos e muito mais.