Como é possível se estabelecer uma outra globalização menos perversa

Nobel da Geografia

03/05/2021 17:34

Como é possível se estabelecer uma outra globalização menos perversa
Milton Santos em 1994, após receber 'Nobel da Geografia' | Foto de Marcos Issa/Agência O GLOBO


Um dos maiores pensadores da geografia no mundo, Milton Santos defendia que esse campo de conhecimento deveria estudar o território juntamente com suas transformações sociais. Não há como pensar a geografia de um local sem refletir sobre como a vida se move naquele espaço. Autor de dezenas de livros e professor com passagem por centros acadêmicos de renome, o baiano, que estaria completando 95 anos nesta segunda-feira, foi o primeiro estudioso fora o universo anglo-saxão a receber o Prêmio Vautrin Lud, uma espécie de Nobel da geografia.

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Milton Almeida dos Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, na Chapada Diamantina. Ele se formou em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e trabalhou como jornalista no diário "A Tarde", sempre mantendo seu interesse pela geografia. Deu aulas na UFBA e foi presidente da Comissão de Planejamento Econômico na Bahia, mas foi preso em 1964, após o golpe militar. Na época, já defendia ideias progressistas consideradas subversivas pela ditadura. Ao sair da cadeia, após um início de derrame cerebral, ele decidiu se exilar.

Durante quase 13 anos fora do país, Santos lecionou em espaços como a Universidade de Paris-Sorbonee, Universidade de Toronto e a Universidade Columbia. Ao regressar para o Brasil, em 1977, ele foi professor da UFRJ e da USP, onde atuou até se aposentar. Ao longo de sua carreira, o geógrafo foi crítico da globalização "perversa" que só beneficiava os poderosos e dizia que as grandes transformações devem partir da base da sociedade. Por tudo isso, tornou-se um pilar teórico dos movimentos sociais de esquerda.

No dia de seu aniversário, o Blog do Acervo compartilha uma entrevista concedida pelo acadêmico ao GLOBO e publicada no dia 12 de setembro de 2000, menos de um ano antes de sua morte, aos 75 anos, ocorrida em São Paulo no dia 24 de junho de 2001, devido a complicações geradas por um câncer na próstata. Nesta entrevista, o geógrafo critica o ensino de faculdades brasileiras e discute a necessidade de uma outra globalização, centrada no ser humano, "e não no dinheiro".

Como é possível se estabelecer uma outra globalização menos perversa
Milton Santos em imagem de 2000, aos 75 anos de idade | Foto de divulgação

Qual a sua avaliação do ensino universitário?

Existem faculdades produtoras e consumidoras. Nas primeiras, os alunos escrevem, renovam as idéias, lêem bons autores, aprendem. Nas outras, consomem e consomem mal, de forma insuficiente e indigesta. Não sei até que ponto o ensino é comandado por regras das faculdades de educação. Preocupam-se mais com as regras do que com o conteúdo. Isso é genuíno? Professores preocupados em seguir normas dos educacionistas?

E a educação no Brasil? Quais as conseqüências do abismo educacional que há entre as classes sociais?

Num país onde a educação tem níveis tão diferentes de qualidade e crianças não têm acesso à escola, você não vê o ministro (Paulo Renato de Souza) discutir o problema a fundo. Ele fala em números, em crescimento, esse tipo de coisa. Não é isso que queremos. Hoje a tendência é a sociedade donhecimento, onde o exercício eficaz da cida- dania depende da instrução or ientada.

O senhor escreveu mais de 40 livros. O mais recente discute a globalização e o seu título, "Por uma outra globalização", já revela o tom de crítica?

A globalização como está aí é um fenômeno perverso e tento mostrar que é possível fazer de outro modo. É perverso porque beneficia poucas pessoas e maltrata a maioria da Humanidade. Essa história de globalização, aldeia global, cidadão do mundo... é tudo vocabulário enganoso. Há confusão entre o uso atual das condições da globalização pelas empresas, pelos Estados, e as reais oportunidades que no futuro podem estar abertas para todos. Querem beneficiar algumas empresas e alguns Estados. A globalização como imagino é um ideal a ser buscado e que precisa ser alcançado para o bem da Humanidade.

Como o senhor imagina a globalização?

É uma forma de vida onde o homem volta a ser o centro da história e não o dinheiro. Para mim, a definição de globalização é um mundo para toda a Humanidade, onde as posses materiais não fossem tão instituídas, onde não houvesse nem fome, nem doença, nem injustiça. Onde a vida fosse bonita.

Como é possível se estabelecer uma outra globalização menos perversa
O geógrafo no documentário 'Encontro com Milton Santos', de Silvio Tendler | Divulgação

O senhor enxerga alguma transformação no Brasil neste fim de século?

O Brasil, que é um país desgraçadamente mais aberto à globalização perversa, mostra uma nova Humanidade se instalando apesar dos obstáculos. Está se criando um caminho onde os políticos e os homens de poder econômico serão obrigados a mudar. Nos projetos de melhoria das condições dos pobres, que são por enquanto hipócritas, daqui a pouco teremos uma impossibilidade de que permaneçam dessa forma estrutural que mantém as desigualdades e acelera a produção de pobreza no país.

E onde estão os indicadores disso?

Na História da Humanidade as grandes mudanças não aparecem com indicadores claros porque nosso pensamento tem dificuldade para acolher o novo. Isso leva algum tempo. Mas o Brasil está se transformando. Há uma precipitação de movimentos sociais, muitos sem forma, sem representatividade e sem acolhimento nos partidos, mas que estão aí, forçando formidáveis mudanças numa luta contra a pobreza e a indiferença dos que mandam.

Qual a opinião do senhor sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?

O MST é acusado de estar fora do modelo porque pretende perpetuar o ativismo, atua de uma forma que não querem que atue. Aí você tem algumas manifestações violentas, que são resultado da própria degradação social, e você tem o MST apontado de uma forma negativa.

Os passos do MST são acompanhados de perto pelo Governo...

Mas é claro! Na verdade, há o medo de que a sociedade descubra outras formas de ações políticas. Se houver uma contaminação, o prolongamento do engodo vai se tornar mais difícil.

O senhor acredita que isso possa acontecer? Há consciência na população disso?

Estamos chegando cada vez mais perto disso. Mas as grandes mudanças devem ocorrer na base da sociedade. E tenho que dizer isso porque perco a cabeça quando penso que o Governo está tão preocupado em pagar suas dívidas e que, se pagar, não teremos mais escolas, mais hospitais. É uma questão de estabelecer prioridades.

Na era da Internet e da comunicação digital, estar ligado ao mundo virtual é como uma religião para a juventude. Isso é benéfico ou não?

A técnica é muito sedutora porque permite saber o que o mundo é, multiplicar o conhecimento, reduzir as distâncias, enfim, ampliar os horizontes. Isso em tese. Porque o uso social da técnica não pode ser um dado absoluto. A técnica é valorizada pelo conteúdo social. Por isso os Estados Unidos estão descobrindo um emburrecimento galopante da juventude que se deve aos computadores. Essa intoxicação técnica sem o sabor filosófico, a busca de uma mística, esse é o problema.

Os jovens que ingressam hoje na faculdade de geografia têm a visão exata do que é a área?

Há um fosso muito grande entre a geografia que se ensina no ginásio e no colégio e a da universidade. Mas esse choque é bom porque obriga à reflexão, ao esforço, à pesquisa. O que me preocupa é que o ensino fundamental tem dificuldade de absorver todos os progressos da geografia. É fácil entender a disciplina: temos de um lado o planeta e do outro a Humanidade. Os dois evoluem juntos e a geografia estuda essa relação. A geografia busca mostrar a história que se faz sobre o planeta, o país, a região, levando em conta o meio no qual vive o homem. Mas fazem a coisa tão simplória que se torna aborrecida.

O que está por trás dessa visão errada da geografia?

Acho que as editoras também são muito responsáveis por produzir textos vergonhosos. Elas expulsam dos livros o que parece complexo porque acham que os meninos são estúpidos para entender e oferecem uma simplificação. Eu não consigo acreditar nesse julgamento da inteligência humana. Não recomendam a leitura de grandes autores, não propõem problemas. Hoje encontro colegas que dizem que escrevo difícil e garotos que lêem meus textos têm dificuldade. A questão é como você orienta o seu esforço. Essa idéia de que os meninos não são capazes de discutir coisas complexas é oca, porque o mundo é complexo.

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    Como é possível estabelecer uma globalização menos perversa?

    O mundo como possibilidade: uma outra globalização. As bases materiais do período atual são, dentre outras, a unicidade da técnica, a convergência dos momentos e o conhecimento do planeta. É nessas bases técnicas que o grande capital se apoia para construir a globalização perversa.

    É possível uma outra globalização?

    A crise de saúde não levou à “desglobalização” desejada por alguns, mas a ultra-globalização agora está sendo travada por Estados que querem recuperar parte de sua soberania industrial, segundo economistas entrevistados pela AFP.

    Por que a globalização pode ser perversa?

    Essa globalização, iniciada na década de 1970, é uma globalização perversa porque o mundo tornou-se um inferno para a grande maioria das pessoas, a pobreza foi transformada em sistema e a concentração de riqueza, com a produção de ultra-ricos, não tem paralelo em qualquer momento da história do capitalismo.

    Como é a globalização como perversidade?

    Quando o capitalismo parece se impor como “império mundial”, desvela-se sua verdadeira perversidade, intitulada “globalização”, que é um processo histórico que coloca inúmeras possibilidades de realização humana ao criar verdadeiros indivíduos histórico-mundiais, libertando-os dos preconceitos locais e regionais.