Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

Resumos

O mais divulgado modelo iconográfico mariano da época contemporânea, presente em quase todos os templos católicos do mundo, nasceu em Portugal na sequência das Aparições de Fátima de 1917. Não teria o conhecido desenvolvimento sem que no processo cultual interviesse a disciplina escultórica que logo em 1920 faria cristalizar, através do escopro de um santeiro, a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. O estudo do tipo, do arquétipo e dos subtipos da Virgem de Fátima, primeiramente produzidos em oficinais trabalhos de santeiros e, em fase posterior, interpretados por artistas, permite entender os contornos do nascimento de uma realidade imagética, isto é, de uma iconografia ex nihilo e o seu, necessariamente, tardio desenvolvimento estético.

The most widespread iconographic Marian model in modern times, present in almost every Catholic church around the world, was created in Portugal in the wake of the Apparitions at Fátima in 1917. This development would not have taken place without sculptural intervention in the process of worship that would soon crystallize in 1920, through the chiselling of the image-maker, into the image of Our Lady of the Rosary of Fátima. The study of the type, the archetype and the subtypes of the Virgin of Fátima, first produced in the workshops of the image-makers and, at a later stage, interpreted by artists, enables us to understand the contours of the birth of an imagetic reality, i.e., an iconography ‘ex nihilo’ and its necessarily slow aesthetic development.

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1O mais divulgado modelo iconográfico mariano da época contemporânea, presente em quase todos os templos católicos do mundo, nasceu em Portugal na sequência das Aparições de Fátima de 1917. Não teria o conhecido desenvolvimento sem que no processo cultual interviesse a disciplina escultórica que logo em 1920 faria cristalizar, através do escopro de um santeiro, a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. O estudo do tipo, do arquétipo e dos subtipos da Virgem de Fátima, primeiramente produzidos em oficinais trabalhos de santeiros e, em fase posterior, interpretados por artistas, permite entender os contornos do nascimento de uma realidade imagética, isto é, de uma iconografia ex nihilo e o seu, necessariamente, tardio desenvolvimento estético.

  • 1 Já antes existira uma pagela da Virgem Maria, mas não temos certeza se com ela se quis fazer figura (...)
  • 2 Confronte-se a publicação das duas versões deste documento em Documentação Crítica de Fátima. III (...)
  • 3 Acerca desta e doutras fotocomposições deveras interessantes para o desenvolvimento iconográfico (...)
  • 4 Numa das versões deste quadro aparecem apenas duas meninas e o tronco da árvore. Veja-se a fonte (...)

2Embora a imagem de Nossa Senhora de Fátima se desenvolva, obviamente, a partir das aparições de 1917, o rigor da cronologia faz recuar a primeira evocação figurativa de Nossa Senhora de Fátima ao século XVIII, porquanto não terminara ainda o ciclo das aparições e já na Cova da Iria se experimentava a necessidade de cristalizar em suporte material, como “recordação da Fátima”, uma encenação das aparições na qual se fazia aparecer a imagem da Virgem Maria1. Não havendo ainda modelo iconográfico para a pagela ali distribuída nesse dia2, procurou-se uma imagem mariana, contudo bem distinta da que viria a ser o ícone de Fátima. Procurou-se na catedral de Leiria, ao retábulo do topo do transepto, do lado do evangelho. Foi, portanto, uma Imaculada Conceição, de finais de Setecentos ou inícios da centúria seguinte, que serviu para a fotocomposição3 distribuída naquele dia com a titulatura de “Nossa Senhora da Paz (Regina Pacis, ora pro nobis)”. Com a parte superior dessa escultura, envolta numa coroa de nuvens, à maneira de glória de anjos ou de vera mandorla, quis-se figurar a Virgem aparecida a três crianças4 que, de joelhos, de mãos postas e de cabeça levantada, se inscreveram no fundo do quadro em relação psicológica com o rosto da Imaculada, o qual, fazendo-se sublinha da criteriosa escolha, nem de propósito, se inclina sobre eles.

  • 5 Documentação Crítica de Fátima. I – Interrogatórios aos Videntes – 1917, Fátima, Santuário de Fát (...)
  • 6 Frederico da Silva Serôdio, Santos, Gilberto Fernandes dos, em Enciclopédia de Fátima (1892-1964)(...)
  • 7 Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano 2 (1918-1920), (...)
  • 8 DCF III-2, doc. 404, p. 108.

3Porém, e ainda que a Aparição não exigisse que a disciplina escultórica interviesse na criação de Fátima (antes a arquitectónica: “façam aqui uma capelinha”5), em 1919 há diligências para que se muna o espaço miraculado com uma imagem que viesse a presidir ao culto ali desenvolvido. É em Agosto de 1919 que Gilberto Fernandes dos Santos (1892-1964)6 vai “a Lisboa para comprar a Imagem de N. Senhora para colocar na pequena Capela existente no logar da Fátima”7. Nada encontrando “que servisse”, o devoto teve de a “mandar fazer aos Snrs. Fanzeres em Braga”8, cidade que era – e continua a ser – a grande montra da produção escultórica saint-sulpliciana tão ao uso da piedade de Oitocentos.

  • 9 Jesué Pinharanda Gomes, Formigão, Manuel Nunes (1883-1958), em Enciclopédia de Fátima…, pp. 232-2 (...)
  • 10 Carta de Gilberto Fernandes dos Santos para Manuel Nunes Formigão, datada de Torres Novas, de 191 (...)
  • 11 Carta de Celina Gameiro a Lúcia, datada de Torres Novas, 1919.08.08, DCF III-2, p. 102.

4A mesma fonte de que nos temos munido informa ainda de outro interveniente no processo – Manuel Nunes Formigão (1883-1958)9 –, embora não possamos ter cabal avaliação acerca do grau de intervenção deste sacerdote, um dos maiores conhecedores das descrições dos videntes (pois a ele se devem vários dos interrogatórios que levaram ao estudo canónico do fenómeno), no resultado escultórico final. Mesmo “á pressa”, o padre Manuel Nunes Formigão estivera em Braga e ali havia “deixado um papelito” com anotações10 que, como ninguém, estava à altura de transmitir, como se reconhece também numa outra missiva que, dirigida à vidente Lúcia, alude à imagem: a escultura “[...] foi mandada fazer segundo as indicações que déstes ao Snr. Dr. Formigão de Santarem”11.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

1. Escultura de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (Capelinha das Aparições, Fátima), José Ferreira Thedim, 1920 (primeira fotografia da escultura de Nossa Senhora de Fátima, anterior a 1920.04.26, publicada em Documentação Crítica de Fátima III-2, doc. 481).

  • 12 DCF III-2, doc. 497, p. 301.
  • 13 Veja-se sobre esta matéria o importante contributo das seguintes obras: Sérgio de Oliveira e SÁ, (...)

5A imagem que Gilberto dos Santos mandou fazer, oferecida “para colocar na pequena capela”12, teve, por conseguinte, intervenientes vários entre os quais, os mais directos, como vemos, são, para além do encomendante, Manuel Nunes Formigão, Américo Fânzeres, dono da casa onde foi feita a encomenda, e, obviamente, o escultor a quem este último incumbiria o trabalho de escultura, um entre os vários santeiros que, através de modelos escolhidos por catálogo, elaborou tantas imagens que presidiram ao culto católico de finais de Oitocentos e da centúria de Novecentos13.

  • 14 Sobre este autor leia-se a resenha biográfica [Thedim, José Ferreira (1898-1971)] assinada por Ma (...)

6Como em tantos outros casos, a importância de um modelo foi fundamental e, desde a descoberta do historiador Bernardo Xavier Coutinho, sabemos que a imagem foi derivada de uma outra inclusa no catálogo da Casa Estrela, do Porto, com o número 47. Como demonstrou o mesmo historiador da arte, a escultura cuja fotografia se incluía naquele catálogo seria o protótipo da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Com efeito, é ali que José Ferreira Thedim (1892-1971)14 irá procurar as formas antigas para fazer aparecer novas formas em ordem a dar molde a uma nova iconografia. Pode falar-se, com toda a propriedade dos conceitos, num verdadeiro arquétipo, pois nessa Nossa Senhora da Lapa (como se designa a escultura do catálogo) estão as raízes de uma nova imagem que, pelas exigências dos encomendantes, teria de ser adaptada à história do lugar a que se destinava como objecto cultual.

  • 15 Averiguação que se deve a Luciano Coelho Cristino; veja-se À procura de Nossa Senhora da Lapa, em (...)
  • 16 Inscrição na base de policromia marmoreada da escultura de Nossa Senhora da Lapa, da igreja de La (...)
  • 17 Numa carta de Gonçalo de Almeida Garrett para Manuel Nunes Formigão, que não conhecia o arquétipo (...)
  • 18 Não desenvolveremos todas estas temáticas que tencionamos tratar de forma mais aprofundada na dis (...)

7A imagem do catálogo de 1910 é a que se encontra na igreja de Labruja de Ponte de Lima (diocese de Viana do Castelo)15, assinada e datada, com efeito, com “A. A. Estrella Esculp Porto 1908”16. Com as alterações ao figurino, teve-se em mente criar um modelo que correspondesse às descrições e, por essa razão, houve necessidade de não incluir na iconografia de Fátima o Menino que se encontrava aos pés da Senhora da Lapa, os anjos que lhe habitavam a nuvem, a mantilha que esta tinha sobre a cabeça. Alguns elementos, porém, foram mantidos, como são o formato das mangas e a complexa maneira de vestir que inclui uma sobretúnica entre o vestido e o manto17. A alvura das vestes, a serenidade delicodoce do rosto e alguns elementos ornamentais como são as estrelas do vestido (uma na zona da cintura e outra na parte inferior da veste), um cordão dourado com uma borla na extremidade e um terço no braço direito foram acrescentados em ordem à individualização do modelo que se requeria novo e representativo da recente titulatura18.

  • 19 Confronte-se Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano 3 (...)
  • 20 Processo Canónico Diocesano – Relatório Oficial, publicado em DCF II, doc. 9, p. 215.

8Juntamente com a imagem que seria a oficial, seguia uma esculturinha mais pequena, “de 0,30 d’alto”, a primeira imagem doméstica de Nossa Senhora de Fátima19. No relatório redigido por Manuel Nunes Formigão diz-se, com efeito, que “é rara a igreja nos domínios da República que não tenha um altar ou ao menos uma imagem de Nossa Senhora de Fátima”20. Ao lermos um texto de 1930, bem sentimos a percepção de como evoluíra o culto da Virgem de Fátima. O culto não se propaga sem a presença de imagens, o que prova, na verdade, como durante as décadas de vinte e de trinta houve uma proliferação imensa de esculturas devocionais que povoavam as igrejas, capelas e oratórios do país e de várias partes do mundo.

  • 21 Há, como é sabido, correntes historiográficas que defendem que o ‘estádio’ barroco acontece em ca (...)
  • 22 Leia-se o que diz Sérgio Sá, Santeiros da Maia…, pp. 69-79.
  • 23 Outra característica virá ainda a marcar esta iconografia, como é a de o rosto da imagem exibir u (...)

9Avaliadas as imagens que nessa época foram colocadas nos altares, pode perceber-se como elas tiveram uma evolução plástica no sentido de se tornarem mais barrocas, isto é, de se verem mais avultadas na volumetria, nos panejamentos. Sendo uma tendência que a alguns críticos e historiadores da arte tem parecido natural em qualquer estilo artístico21, esta tendência encontrava-se mesmo na senda do gosto dos santeiros que eram hábeis trabalhadores da madeira, conhecendo bem os mecanismos que lhes permitiam tirar pregas bem lançadas, reproduzir drapeados de ínfimos franzidos, talhar plissados como ninguém22. Assim se notam sinuosos recortes em imagens de Nossa Senhora de Fátima, como os que se podem observar nas esculturas que se encontram ao culto na igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, na igreja de Nossa Senhora das Mercês, na mesma cidade, na igreja da Santíssima Trindade do Porto, na catedral de Bragança, na paroquial de Valega (Ovar), na paroquial de Espinho, na Ordem Terceira do Porto, entre outras23.

  • 24 Carta de Maria Lúcia de Jesus, r. S. D., para D. José Alves Correia da Silva, datada de Tuy, 1937 (...)

10Embora não tenha sido a única razão, pois – sobremodo num dos tipos de que adiante falaremos – haverá razões relacionadas com o próprio desenvolvimento da mensagem de Fátima, a alteração de modelo também se deverá a uma intenção de mudança formal. Efectivamente, os testemunhos escritos que da vidente Lúcia sobre esta matéria se conservam levam a concluir que existiu uma decepção relativamente ao considerado exagero de pregas e decoração que se ia apondo na imagem de Nossa Senhora de Fátima. Lúcia, em carta datada dos inícios de Dezembro de 1937, diz: “nas estampas de Nossa Senhora que tenho visto, paresse ter dois mantos”. E acrescenta, em claro decreto iconográfico: “paresse-me que se eu soubesse pintar, ainda que não seria capáz de pinta-la como Ela é, porque sei que isso é impossivel, assim como impossivel me é dize-lo ou descreve-lo, no intanto para fazer a pintura o mais parcida possivel poria somente uma tunica o mais simples e branca possivel e o manto caindo desde a cabeça até ao fundo da tunica, e como não poderia pintar a luz e a beleza que a adornava, suprimia todos os enfeites á excessão d’um fiinho dourado à volta do manto. Este sobresaia como se fosse um raio de sol brilhando mais intensamente”. Tendo noção da dificuldade da linguagem, terminava, sobre este assunto: “a comparação fica muito aquem da realidade, mas é o milhor que me sei explicar”24.

  • 25 Esta fotografia foi publicada por Sebastião Martins dos Reis, Síntese Crítica de Fátima. Incidênc (...)
  • 26 Usamos as palavras com que Sebastião Martins dos Reis legenda as referidas fotografias no seu apê (...)

11Passará ainda uma década até que a depuração do modelo seja efectivamente cristalizada. Os novos modelos que deste sentir surgiriam datam de 1948, mas já antes se haviam iniciado ensaios em ordem a uma nova iconografia ou, talvez mais bem explicado, em ordem a uma correcção da iconografia que se estava a desenvolver. Existe notícia desses ensaios que, inclusivamente, usavam técnicas diversificadas de fixação da imagem como são o antigo método de pose para o pintor de cavalete, como, até, os modernos meios fotográficos para registarem a que se queria vera efígie da Aparição: data de 1945 uma fotografia que pereniza, precisamente, a religiosa doroteia, “indicando como se lhe manifestou o Coração Imaculado de Maria”25; data da mesma época uma série de outras fotografias onde se vê “Maria Vitória Valera Palmero, uma das duas alunas de Tuy, [...] preparada, pela Irmã Lúcia, e com vestidos arranjados também por esta, para servir de modelo para a imagem da Virgem Peregrina” e esta mesma aluna servindo de “modelo do Coração Imaculado de Maria”26.

  • 27 Veja-se, sobre esta importante personalidade dos estudos de Fátima, o que diz José Geraldes Freir (...)
  • 28 Legenda da fotografia n.º [91].

12A confirmação do que deixamos explicado pode ser colhida na forma como Sebastião Martins dos Reis (1913-1984)27 opera a legenda desta última fotografia referida, escrevendo que foi a própria vidente a sentir o anseio de formalizar o modelo: “Desejosa de ficar com um modelo, o mais perfeito possível, do modo como a Senhora lhe tinha aparecido, – ‘sem tantos balandraus’, como A representavam…, – a Vidente foi, com a aluna, à quinta de uma senhora, em Tuy, em 1945, tirar esta fotografia, depois de em casa, muito particularmente, ter feito de modelo para este mesmo modelo, – cujo tecido, de ‘mousseline’ alvíssima, a própria Irmã Lúcia foi autorizada a ir comprar, em pessoa…”28.

  • 29 Veja-se, no catálogo supracitado Mestre Guilherme Ferreira Thedim…, o fac-símile de uma carta ond (...)
  • 30 Desenhos de Henriqueta Malheiro, Museu do Santuário de Fátima, Reserva.
  • 31 Dois dos primeiros são paginados com numeração romana (I, II) e um encontra-se assinado e datado (...)

13Para além dos meios fotográficos, existem preciosos apontamentos que podem ser tomados como os esboços do que viria a ser esta nova iconografia do “Coração Imaculado de Maria de Fátima”, como virá a ser conhecido entre os fabricantes destas imagens29. Os desenhos que se conservam30, quatro em papel de gramagem superior e três outros em papel de fina gramagem, constituem, pelo lápis da religiosa Henriqueta Malheiro, doroteia colega de Lúcia, a primeva fonte para analisar o pensamento imagético que se encontra subliminar ao modelo iconográfico31.

  • 32 Margem inferior esquerda, escrito de baixo para cima, sensivelmente a meio da referida margem.

14Num deles pode ler-se quer um desabafo da pintora (“esta foi a primeira que tirei pela propria Ir. Dôres em menos de uma hora! (no Sardão, em 946)”), quer uma aprovação-correcção da própria Irmã Lúcia que passamos a transcrever: “Gosto mais desta: a Mão esquerda um nadinha mais fichada: o braço direito menos para fora e a mãos com uma enclinaçãosinha mais de fichada. Era preciso suprimir o cabelo que cai sobre os ombros e pescoço”32.

  • 33 Esta frase encontra-se replicada mais abaixo, desta feita pelo punho da irmã desenhadora que, pro (...)

15A grafia da vidente pode ainda ser notada num dos vegetais, precisamente a assinalar o lugar onde faltava a estrela que, desde os anos vinte, vinha fazendo parte da iconografia tradicional da Senhora de Fátima: “aqui uma estrela”33.

16Este esboço terá ido parar à mão de um escultor, provavelmente, José Ferreira Thedim, pelo menos isso se depreende da anotação colocada no canto inferior esquerdo deste mesmo desenho: “Vae p.a verificar e vão todas p.a entre todas escolher e mostra-las ao esculptor que seberá melhor do que eu fazer as modificações porque estão habituados”.

17Também à Irmã Lúcia o desenho foi enviado, a julgar pela anotação registada no verso do segundo desenho, que, tal como o primeiro, se encontra assinado e datado com “Sr. Malh XI-1946”: “P.ª a Ir. Dores/ Remete Ir. de Jesus Malheiro”.

  • 34 Veja-se acerca deste espólio arquivístico, bem assim do do Cónego Sebastião Martins dos Reis, os (...)

18Na verdade, não sabemos com plenitude se os desenhos tiveram o destino indiciado por estas frases, pois não se encontra totalmente estudada a reunião deste espólio que, segundo nota de Sebastião Martins dos Reis, parece ter sido agrupado pela Madre Maria José Martins, superiora do Instituto de Santa Doroteia a que pertencera Lúcia até 194834.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

2. Estudo para a pintura do Imaculado Coração de Maria, de Maria Henriqueta de Jesus Malheiro, 1946 (Museu do Santuário de Fátima, fotografia do Arquivo do Santuário de Fátima).

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

3. Pagela que reproduz a escultura do Imaculado Coração de Maria do Carmelo de Santa Teresa de Coimbra (Museu do Santuário de Fátima, Colecção de Estampas, espólio de Avelino Martins da Costa).

  • 35 Esta tela, de 35,5 x 48 cm, tem no verso a frase latina da carta aos Hebreus (5,7) “Com [‘sic’, p (...)
  • 36 Memórias. Sinais. Afectos…; veja-se o n.º 3 do catálogo, pp. 48 e 49. Também o que anota José Ger (...)

19Os desenhos ora evocados serviram, depois, de inspiração a Madre Malheiro em ordem à execução de óleos como o que se guarda no Museu do Santuário, integrando o mesmo espólio dos desenhos, com data de 194635, ou como o que pertence à Associação dos Servitas de Nossa Senhora de Fátima, datado de 194936.

20Estes ensaios levaram ao aparecimento do que, em linguagem do saber iconográfico, poderemos considerar de subtipo iconográfico, particularidade da iconografia de Fátima que a torna numa das mais interessantes da época contemporânea. Assim aparece o subtipo Virgem Peregrina e Imaculado Coração de Maria.

  • 37 De tal sorte assim é que não foi fácil a cristalização do nome quando relacionado com Fátima, com (...)
  • 38 Luciano Cristino, Virgem Peregrina, em Enciclopédia de Fátima, pp. 605-609. Com efeito, a primeir (...)

21Se o primeiro destes nomes não teve antecedentes na história da arte, pelo menos como designativo de uma iconografia, o segundo, como é sabido, era já uma temática abordada pela imaginária cultual, pelo menos desde o século XVII e com grande expansão, sobretudo, ao longo dos dias de Oitocentos37. A primeira iconografia adopta o nome da condição inerente à “iniciativa de levar em peregrinação para fora do santuário a própria imagem da Capelinha”38.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

4. Escultura da Virgem Peregrina, de José Ferreira Thedim, 1947, actualmente na Basílica do Rosário do Santuário de Fátima (fotografia do Arquivo do Santuário de Fátima).

  • 39 Para sermos sucintos na argumentação basta lembrarmos os versos do canto oficial de Fátima: «Falo (...)

22Poderemos cotejar o texto ao qual anteriormente chamávamos de decreto iconográfico da Irmã Lúcia com as novas imagens de Nossa Senhora de Fátima e vemos como, de facto, houve preocupação de depurar a imagem em ordem à simplicidade formal que se coadunará, inclusivamente, com a defendida austeridade no vestir que da mensagem de Fátima emana39.

  • 40 Manfred Lurker, no Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos, São Paulo, Paulos, 1993, p. 68, lem (...)
  • 41 Antunes Borges no estudo Como surgiu a primeira imagem do Imaculado Coração de Maria, em Fátima 5 (...)

23A novidade do modelo do Coração Imaculado de Maria de Fátima é sobretudo a de se estabelecer por base a imagem da Senhora de Fátima, já remodelada das complexas vestimentas que a transformou no modelo de Virgem Peregrina. Mas na figura do coração propriamente dito surgem modificações que nos parecem relevantes em relação aos modelos vindos, sobretudo, do século XIX40. Enquanto estes se vêem acompanhados, não raro, por uma pequena espada e por uma cinta de espinhos ou, também possível, de lírios, o coração nascido de Fátima aparece, como os tradicionais, coroado por uma chama de fogo, mas cingido sempre por uma coroa de espinhos. O símbolo torna-se ainda mais diverso quanto a forma que apresenta se afastar da consagrada pela iconografia relativa aos antigos tipos do Sagrado Coração de Maria. Se nestes o coração se encontrava apertado pela referida cinta, o de Fátima encontra-se libertado, metido no campo traçado pelo círculo composto, nas palavras de Lúcia, por um “tojo” de espinhos41. Embora pareça um pormenor com parcial importância, a mudança de que aqui fazemos nota é substancial, porque dá uma maior expressividade ao coração, colocando-o como que ostentado pela cercadura de espinhos. Trata-se assim de um ostensório, com as consequências iconográficas e doutrinárias que lhe advêm desta formulação plástica.

  • 42 Uma das mais célebres esculturas do Imaculado Coração de Maria, inaugurada em 1958 e colocada no (...)

24O coração da Virgem Maria, antes enquadrado pelas mãos da Virgem, aparece agora também cercado pelo “tojo” de que fala Lúcia. As mãos de Maria libertam-se mais e não o indicam, como outrora; antes se colocam em interacção com o mundo: desenham-se, a direita, apontada ao alto e, a esquerda, dirigida ao mundo. Assim repetirão o modelo os que, mais artesãos ou mais artistas, se debruçam sobre esta nova imagem de Nossa Senhora de Fátima, criada a partir das indicações da vidente42.

As composições plásticas dos artistas

25Já em data bem anterior à conclusão de todos estes ciclos iconográficos, a imagem de Nossa Senhora de Fátima havia sido objecto de atenção de artistas de maior monta. Embora já antes Gerardus van Krieken (1864-1933), autor do projecto da basílica, se tivesse detido sobre o ícone da Virgem de Fátima, o mais célebre episódio nesta história acontece logo nos finais da década de vinte, quando António Teixeira Lopes esculpe a Senhora aparecida em Fátima.

  • 43 Acerca deste templo, riscado por Luiz Cunha, veja-se o que dizemos em Arte Sacra em Fátima…, pp. (...)

26Os diversos escopros e pincéis deram origem a formulações plásticas distintas, conforme a sensibilidade estética e as correntes artísticas em que se integram os autores. Comum a todos é a omnipresente tentativa de fugir ao cânone estabelecido e repetidamente talhado pelos santeiros. Essa atitude, obviamente relacionada com o tempo da contemporaneidade artística, levou a que determinado modelo possa ter tido menos aceitação por parte da comunidade de cultuadores para a qual determinada imagem fora criada, situação que se verificou, desde logo, a partir daquela especial imagem de Teixeira Lopes e que teve, por exemplo, no caso do convento dos dominicanos de Fátima um epílogo deveras interessante cuja rejeição levou inclusivamente à retirada da escultura da peanha que ela havia ocupado desde o dia da dedicação da igreja, em 196543.

  • 44 Cremos que esta visão terá também uma quota-parte de responsabilidade pelo infortúnio cultual que (...)
  • 45 Lembremos que, quando falamos de um culto tão perseguido e com tanta adesão popular, uma década é (...)
  • 46 Leia-se a crítica severa que se escreve em Lírios. Revista antoniana de cultura, Lisboa, composiç (...)

27Almejar encontrar as razões do descontentamento com a imagem criada pelo artista mostra-se sempre tarefa que atrai os que analisam o tema e é incorrer na, porventura, pouco salutar tentação de operar um exercício comparativo entre a imagem da Virgem de Fátima de 1920, de José Ferreira Thedim, e a dos artistas que daquele tema se ocuparam44. Cremos que o infortúnio passou, certamente, quer pelo desprezo da silhueta tradicional45, quer pelo desrespeito pelos sinais iconográficos que os crentes se habituavam a ver na Senhora de Fátima. Com efeito, Teixeira Lopes criou uma escultura deveras diferente da composição dos anos vinte. A estrela da iconografia, em vez de figurar no vestido, foi colocada sobre a cabeça e o rosário também não tinha as contas canonicamente contadas46.

  • 47 Veja-se estudo mais pormenorizado sobre a escultura da Casa França em Memórias. Sinais. Afectos…, (...)

28A imagem contribuiu, no entanto, para modificações na maneira de esculpir a Virgem de Fátima, porquanto mesmo os imaginários usaram de maior liberdade ao estabelecer o perfil da Senhora de Fátima, nomeadamente no que respeita à curvatura do corpo reclinado sobre o espaço psicológico dos pastorinhos, habitado, no caso da escultura cultual, pelos fiéis. São exemplo disso várias esculturas de Albano França, que se agigantam com bastante nitidez, designadamente a da igreja dos Mártires de 194147.

  • 48 Ainda assim, a própria escultura de Teixeira Lopes não escapou à crítica de uma ambiência saint-s (...)
  • 49 Assim o temos escrito; veja-se o ponto 3 do artigo Arte (Arquitectura, escultura, pintura, artes (...)
  • 50 A magna carta através da qual o bispo de Leiria declara dignas de crédito as aparições de Fátima, (...)
  • 51 Veio contra ela o referido artigo da revista Lírios, já citado, e também o que escreve Abel Salaz (...)
  • 52 Depois de publicado no Comércio do Porto, o texto foi incluído, com o título A Virgem de Teixeira (...)
  • 53 Agradecemos ao Rev.mo Senhor Cón. Dr. Luciano Coelho Cristino a informação acerca destes sonetos (...)

29Teixeira Lopes não respeita, no entanto, o ar estereotipado que a escultura de Thedim, na esteira da estatuária religiosa saint-sulpliciana, ostenta48. A escultura de Teixeira Lopes, que marcaria para sempre esta dicotomia entre arte erudita e arte popular49, entronca, assim o defendemos, numa vontade de elevar a arte em Fátima e as datas da sua concepção levam a considerá-la a primeira imagem destinada ao santuário no período após a oficialização do culto que data de 193050. Apesar das críticas que terá sofrido51, ou até por causa delas, houve quem a defendesse, desde os mais conhecidos escritores do tempo, como Júlio Dantas52, até aos mais anónimos. Digna de registo é a apreciação em verso que Maria Feio lhe tece, na pagela que, não obstante, continua a publicar no rosto a escultura de Ferreira Thedim. Os sonetos, segundo a própria, “feitos em expontanea inspiração no dia 13 de Julho de 1931, na Foz do Douro, após a visita ao atelier de Teixeira Lopes” mereceriam detença maior, porquanto caracterizam a escultura como “A Maravilhosa Imagem” e, inclusivamente, “A Nova Aparição”53, porquanto falam de uma “maravilha de escultura” (“obra-prima de escultura”) de “sobre-humana e excelsa formosura”, caracterizando, ainda, o “bloco de madeira” de “alado vulto”, não se coibindo, até, de a apelidar de “milagre do céu”. Nas palavras da poetisa, a escultura é “uma sublime e Nova Aparição” que se aproxima do que consideraríamos o conceito de arte cultual: “cinzelar da Arte em Oração”.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

5. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (reitoria do Santuário de Fátima), de António Teixeira Lopes, 1931 (fotografia do Arquivo do Santuário de Fátima).

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6. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja de Nossa Senhora de Fátima, Lisboa), de Leopoldo de Almeida, 1938 (fotografia de Alexandre Salgueiro).

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7. Vitral de Nossa Senhora de Fátima (igreja de Nossa Senhora de Fátima, Lisboa), de José de Almada Negreiros, 1938 (fotografia de Alexandre Salgueiro).

  • 54 Sem querermos desenvolver este tema, indicamos apenas duas fontes para que possa explorar-se: vej (...)

30Ainda na mesma década de trinta aparecerá o tema trabalhado por outros artistas de renome. Para a igreja de Nossa Senhora de Fátima de Lisboa, sob projecto de Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957), será encomendada a escultura titular do templo a Leopoldo de Almeida. Este escultor fará a imagem da Virgem de Fátima através de uma esguia coluna de alvo mármore, a qual, anos mais tarde, viria a ostentar uma coroa fechada de metal. A modelação que o autor imprimiu à obra produziu uma Senhora de Fátima de severidade formal, porventura condizente com a descrição dos videntes que asseverava que a Aparição se manifestara séria, não sorrindo54. Esta característica, no entanto, confere à escultura uma dignidade de linhas que se impõem ao crente que não a rejeitou como imagem de oração. Não fora a ausência da estrela e da borla, a iconografia teria sido plenamente respeitada, nomeadamente no que concerne à posição das mãos, juntas, de molde a que o manto possa ser enquadrado pela forma dos braços que, pelo menos do lado esquerdo, exerce a justificação do pregueado. Em vez de um terço do rosário, Leopoldo de Almeida prefere colocar um rosário completo a pender da escultura da Virgem. O drapejado visível de alto a baixo da escultura não contraria a austeridade que o autor consegue com esta peça totalmente branca, construída da alvura natural do mármore que, não obstante ser uma matéria fria, não afastou a devoção dos fiéis, paroquianos da capital lisboeta.

  • 55 Entre outras denominações da Virgem, surgem Nossa Senhora do Carmo, Rainha dos Apóstolos, Nossa S (...)
  • 56 Na mesma personagem, Almada consegue transmitir estas duas dimensões, colocando-o a sustentar um (...)
  • 57 Permitimo-nos usar, na descrição deste vitral, as mesmas palavras que inserimos no catálogo da ex (...)

31Ainda no mesmo espaço sagrado, o tema da Virgem de Fátima aparece tratado por Almada Negreiros, numa das frestas com vitrais deste autor. Situada no lado da epístola, a Virgem de Fátima aparece entre o programa iconográfico mariano que o autor criou para o templo55. Na composição esguia que o recorte da abertura da janela – uma retícula na vertical – lhe determina, Almada constrói o desenho da evocação da Senhora de Fátima em vários registos, guardando o do meio para a silhueta da Senhora de Fátima tratada nas cores branca, azul e rósea, de mãos postas em oração das quais lhe pende um rosário que quase toca os pés assentes na nuvem que paira sobre a verdejante azinheira junto da qual, de joelhos, se concentram as crianças videntes. Estas colocam as mãos à imitação da Virgem e viram o rosto ao alto para percepcionarem a visão. Francisco encontra-se representado de frente e as videntes Lúcia e Jacinta permanecem de costas, em primeiro plano. José de Almada Negreiros, conhecendo a história das aparições, sabe que as crianças disseram terem visto não só uma Senhora, mas também um anjo e, por isso, figura-o no registo acima do da Senhora de Fátima, o que confere ao vitral um discurso fílmico, porquanto este anjo aparece, na narrativa pictórica, antes da figuração da aparição mariana. Em sintonia com os relatos de Lúcia, o anjo aparece como custódio da Eucaristia, mas ao mesmo tempo como seu adorador56. No registo mais ao cimo, surge uma outra personagem alada que cremos ser a tradução icónica da Mensagem de Fátima, cristalizada no díptico “Penitência-Oração”, pois o anjo encontra-se figurado de joelhos, de mãos postas e com a veste roxa, a cor litúrgica dos tempos penitenciais57.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

8. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (capela do Palácio Nacional de Queluz), Raul Xavier (reprodução de uma estampa do Museu do Santuário de Fátima, Colecção de Estampas).

32Ainda no exterior da igreja de Fátima, no ângulo superior esquerdo da fachada, encontra-se uma escultura pétrea da titular do templo, de autoria de António da Costa (1899--1970), discípulo de Simões de Almeida, que exibe um dos mais estilizados rosários das esculturas de Nossa Senhora de Fátima, pendendo de forma centrada relativamente às vestes da estátua. A zona inferior do manto faz lembrar um pouco a escultura do interior da igreja, do escopro de Leopoldo de Almeida, pela sucessão de planos que a sua orla cria, mas o rosto da estátua exterior surge muito menos austero. As mãos encontram-se ostensivamente postas em oração, à altura do peito, abrindo uma concavidade na zona de vazio. Observada de lado, percebe-se uma ligeira curvatura formada pelas pernas, opção que ajuda a criar um movimento no traçado escultórico.

  • 58 A data consta de uma estampa da colecção do Santuário de Fátima que reproduzimos neste estudo. À (...)
  • 59 Esta esfera relaciona-se com a iconografia mais específica do subtipo que designamos por Virgem P (...)

33Embora a simplificação do modelo que deriva da escultura da Capelinha das Aparições se revele, entre os autores eruditos, vincada tendência, também vemos exemplos em que esse modelo não aparece assim tão simplificado. Raul Xavier (1894-1964), na escultura de Nossa Senhora de Fátima do Palácio de Queluz, efectua um vulto bem apegado à barroquizante tradição que a imagem da Virgem de Fátima estava a sofrer por parte das oficinas nortenhas. Na peça de Queluz, de 194258, não cometendo exageros formais que a pudessem conotar com obra de santeiro, Xavier não se afasta do modelo do Santuário de Fátima, antes o enfatiza através de formas mais acentuadamente escavadas, o que confere à escultura um movimento muito vivo. Segue, como dizemos, o figurino da Senhora da Capelinha das Aparições, mas modela, em jogo de cheios e vazios, as vestes que esculpe com pormenor, não esquecendo as sobremangas e, até, o fio, neste caso, já com uma esfera pendente59.

  • 60 Escultura próxima desta é a que o autor possuía em sua casa, em Paris. Veja-se uma reprodução inc (...)

34Este mesmo motivo da esfera suspensa a pender do fio da Senhora de Fátima aparece outrossim na obra de Ernesto Canto da Maia (1890-1981), pertencente ao Museu do Caramulo60. Datada de 1946, a escultura, em barro cozido e deixado na cor natural, denota uma interessante variante como é a de o fio ostentar não uma bola mas outra forma que radica na espiritualidade de Fátima. O autor, não figurando a típica primeva borla, pois já se deveria encontrar informado das alterações iconográficas dos anos 40, coloca a pender do fio um coração que ali aparece como se fosse uma medalha de adorno pessoal. O escultor transforma, assim, a bola – que antigamente era uma borla – em coração, que é o elemento mais recente da iconografia de Fátima. Não lhe coloca, porém, os espinhos nem as chamas típicas da imagética cordimariana e faz dele um adorno da Senhora de Fátima. O vestido faz já eco da simplificação operada na década de 40, nomeadamente no franzido da cintura, mas o plissado tem muito mais movimento que as esculturas da chamada Virgem Peregrina ou da imagem denominada Imaculado Coração de Maria saídas dos escopros dos santeiros. A posição da escultura parece encarnar um corpo que acaba de poisar sobre uma superfície rugosa: para isso contribui tanto a colocação dos pés, estando o direito mais adiantado e o esquerdo atrás e mais alto, bem assim a maneira como as mãos esculpidas na vertical e direccionadas ao chão abrem o manto. Este assume uma das fórmulas exploradas também por Maria Amélia Carvalheira da Silva que é a de, na zona da cabeça, se transformar em capuz, à maneira do abrigo de uma pastora.

35Efectivamente, assim acontece em várias esculturas de Nossa Senhora de Fátima de Carvalheira da Silva, desde logo na que a escultora criou para a igreja de São João de Brito, em Alvalade (Lisboa), para a capela do Seminário do Verbo Divino, em Fátima, ou para o monumento da Aparição de Agosto, nos Valinhos, também em Fátima.

  • 61 A criação da escultura para a igreja de Santo Eugénio resulta da adesão do embaixador português, (...)
  • 62 O que dizemos sobre esta escultura pode aplicar-se à que, do mesmo autor, se encontra na capela d (...)

36Anteriores a estas são as esculturas que Leopoldo de Almeida fez para a capela de Nossa Senhora de Fátima na igreja de Santo Eugénio, em Roma, e para a capela do Seminário de Cristo Rei, Olivais (Lisboa). A escultura da igreja romana61 toma uma volumetria bem mais desenvolvida que a escultura da paroquial de Fátima que anteriormente descrevíamos. Feita para ser suspensa numa parede que suporta pintura mural, a escultura exibe com bastante clareza uma ambiguidade formal com o tema da Assunção da Virgem. A silhueta piramidal é marcada pela movimentação do manto bastante ondulado na zona inferior, recortando-se de forma quase simétrica de molde a enquadrar as contas em forma de rosário que se enrola nas mãos, a estrela do fundo do vestido e os pés que se distendem quase em linha recta em direcção ao solo. Embora a sugestão se refira à Senhora que desce do Céu à Terra, a forma dos pés que, como dissemos, veremos nalgumas das esculturas de Maria Amélia Carvalheira da Silva mostra-se sinal de aproximação à iconografia da Assunção. Embora a cronologia já lhe permitisse operar uma imagem de Fátima segundo o modelo da Virgem Peregrina, Leopoldo de Almeida prefere continuar a guiar-se pelas vestes da primitiva imagem da Capela das Aparições e, deste modo, não prescinde da sobretúnica e das mangas largas que esculpe na sua imagem para a igreja em honra de Santo Eugénio62. A cabeça figura ligeiramente inclinada para a frente, como voltará a repetir na escultura do Seminário dos Olivais, com a diferença de que na da igreja de Santo Eugénio a escultura se inclina apenas para diante de forma frontal.

  • 63 Retomamos a análise que incluímos em Memórias. Sinais. Afectos, n.º 467.

37Para a imagem de Nossa Senhora de Fátima do Seminário dos Olivais, templo em que também participou Almada Negreiros, Leopoldo de Almeida parece ter construído uma solução de compromisso, embora isto não signifique despretensiosa cópia, mas antes erudita linhagem entre as criações do mesmo tema. Não obstante o volume das vestes, designadamente da parte inferior do manto do trabalho escultórico, o escopro de Leopoldo de Almeida ditou para a capela do Seminário dos Olivais uma imagem de Nossa Senhora de Fátima novamente esguia. A comparação surge inevitável com a que o autor esculpiu para a paroquial igreja de Fátima. A dos Olivais revela-se tão serena como a dos anos 30, mas mostra-se, e sem que a adjectivação seja inconciliável, menos severa, apresentando maciez no movimento tão delicado como se ondeasse ao sabor de uma brisa, mas muito presente: pode afirmar-se que as vestes surgem, simultaneamente, diáfanas e corpóreas. Retomando, nesta peça, a inclinação do rosto para a frente, tal atitude auferiu novos valores, porquanto a cabeça surge também ligeiramente inclinada à direita, conseguindo com esta opção tornar-se mais próxima e intuitivamente mais interpeladora. Das mãos postas, sem que as palmas se encontrem coincidentes, pende um rosário sobreposto às sobremangas e ao restante drapejado, sempre leve, da sobretúnica. Os pés, descalços, assentam directamente na base da escultura, da mesma peça pétrea. Longe de lhe avolumar, em pirâmide, as vestes, como aconteceu no modelo que o autor criou para a capela de Nossa Senhora de Fátima de Santo Eugénio, o tema da Senhora de Fátima tornou a colher inspiração na escultura da igreja de Lisboa com aquele nome, não a tratando como coluna escultórica, mas, em novo exercício de escultura, citando-a63.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

9. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja de São João de Brito, Lisboa), Maria Amélia Carvalheira da Silva (fotografia de Alexandre Salgueiro).

  • 64 Acerca destas últimas remetemos para as considerações que fizemos no estudo “Em Fátima rezei por (...)
  • 65 Neste contexto merece a pena lembrar o que escreve Clara Menéres sobre esta autora que “era muito (...)

38Maria Amélia Carvalheira da Silva (1904-1998) trabalhou, como já referimos, inúmeras vezes o tema de Fátima, quer para esculturas cultuais, quer para pequenas peças devocionais64. Uma das suas obras mais interessantes é a da igreja de São João de Brito, em Lisboa, não apenas pelas colossais dimensões que apresenta – cerca de 2,30 metros de altura – mas também pela sobriedade com que o tema é tratado. Ainda que num ou noutro ponto, normalmente ligado a uma dulcificação das temáticas, as esculturas de Carvalheira surpreendam, não poderemos esperar que esta autora rompa com a tradicional iconografia da Virgem de Fátima65. Ao invés, parece-nos que a tenta assumir com muita fidelidade, nunca descuidando os atributos clássicos da Mãe de Deus aparecida em Fátima: a estrela, o rosário, a brancura das vestes. Não surge infrequente a opção tomada para a escultura de São João de Brito de colorir as vestes de branco-creme, não maculando o símbolo da alvura, mas, antes, aproximando a imagem dos fiéis, tornando-a menos fria na intensidade lumínica: a mesma solução adoptará em modelos que passa ao barro cozido, como se vê na escultura da casa das Irmãs da Apresentação de Maria, em Fátima, ou na da casa de Retiros Bom Pastor, na Buraca (Lisboa), que reproduzem um modelo criado, respectivamente, para a Capela do Verbo Divino, em Fátima, e para a paroquial de São José de Coimbra, a primeira de 1956 e esta última de 1961.

39Na peça da igreja de São João de Brito, que faz contraponto com a escultura do Sagrado Coração de Jesus, da mesma autora, vê-se uma enorme massa moldada, onde se vislumbra grande simplificação das vestes que, no entanto, se fazem bem espessas, como se se constituíssem por panos mais toscos. A estrela pontifica na parte inferior do vestido e, mais acima, encontra-se a cruz do terço que pende do braço direito da Virgem, tal como acontecera no início com a escultura de José Ferreira Thedim que se quis tornar modelo físico das descrições dos videntes. A cabeça inclinada para a frente ajuda a criar um diálogo com o observador, ao mesmo tempo que confere à Senhora esculpida uma atmosfera de reverência.

  • 66 Conforme é sabido, a aparição de Agosto não ocorreu no dia 13, mas seis dias depois, nos Valinhos (...)
  • 67 Esta escultura situa-se no altar lateral, lado do Evangelho, fazendo ‘pendant’ com uma escultura (...)

40No ano seguinte, Maria Amélia Carvalheira da Silva assina mais algumas obras representativas da Senhora de Fátima, precisamente para a terra das Aparições. Data, efectivamente, de 1956 a escultura que, no lugar dos Valinhos, comemora a aparição de 19 de Agosto de 191766. Nesta obra, Carvalheira da Silva não se mostra tão escrupulosa no respeito da posição do terço, e dos dedos da escultura faz pender um largo rosário, disposto mais ou menos a meio das mãos orantes. O manto, também de grossa espessura, envolve o rosto da escultura à maneira de capuz, como se vê outrossim na obra que assinou dedicada a fazer figura de Nossa Senhora do Verbo Divino, para o altar do lado do Evangelho da capela do Seminário da Sociedade do Verbo Divino67. O manto que a escultura do monumento da Aparição de Agosto segura com os braços e que, ao fundo, cai em degraus forma um campo de exposição muito interessante na zona do rosto, transformando-se numa espécie de ostensório. Os pés assentam numa nuvem ludicamente estilizada, através de enrolamentos de grandes proporções, e mostram-se, como os que já analisámos, conotáveis com a iconografia da Assunção da Virgem.

41É muito curioso o exercício de comparação que com esta escultura se pode operar relativamente à Senhora de Fátima criada pelo escultor António Duarte (1912-1998) para a catedral de Nampula, em Moçambique. Na pedra de ançã, António Duarte faz, no mesmo ano, uma escultura idêntica à de Carvalheira, o que prova que a iconografia da Senhora de Fátima, por ser de tal modo vincada, pôde fazer com que os artistas obtivessem resultados similares. Com efeito, assim aconteceu neste caso específico, o que se revela curioso, dada a grande diferença plástica existente entre um e outro escultor. As esculturas de Carvalheira e de Duarte aproximam-se na brancura da pedra, no recurso ao manto largo, no uso do rosário, na utilização da estrela e na forma de colocação dos pés, postos quase em linha vertical. A obra de António Duarte surge mais intelectual, cheia de linhas artificialmente desenhadas que parecem resultar de régua e compasso, o que não assegura, contudo, que tal escultura se torne superior à criação de Carvalheira. Como esta, também o manto se afasta do rosto, criando um espaço de exposição que, no caso da escultura de Nampula, alberga também as mãos postas, cujas palmas se desenharam afastadas uma da outra. A nuvem da escultura de Duarte tem uma estilização bem diversa da de Carvalheira e condiz com os panejamentos mais finos que começam na zona do rosto, mais à maneira de lenço e menos de capuz.

42No mesmo ano de 1956, Maria Amélia Carvalheira da Silva apôs o seu nome a outra escultura de mármore, feita para um dos altares laterais da capela do Verbo Divino, em Fátima. Esta peça virá depois a ser reproduzida na capela das Irmãs da Apresentação de Maria (também na terra das Aparições) em terracota policromada, com as mesmas cores que já víramos na da igreja de São João de Brito. Aliás, o próprio modelo que aqui se toma bem pode considerar-se o mesmo, embora muito reduzido no tamanho: sobre uma túnica totalmente lisa que rente ao pescoço exibe um pequeno talhe, surge o manto, bastante afastado do rosto, de modo a conferir-lhe ênfase. Este não se encontra apanhado pelos antebraços, mas cai na vertical, produzindo ligeiro ondeado no fundo da escultura. Sobre a manga larga do braço direito, aparece enfiado um terço, cuja cruz, onde se esculpiu um pequeno Cristo, chega quase até à estrela de sete pontas insculpida no fundo do manto. A nuvem e os pés da Virgem apresentam-se de acordo com a já analisada escultura dos Valinhos.

  • 68 Tivemos oportunidade de consultar a documentação paroquial relativa a esta escultura. Maria Améli (...)
  • 69 Veja-se Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 466, p. 157.
  • 70 Na escultura de barro policromado a estrela encontra-se insculpida.

43Encontramos desta mesma autora outras formas de esculpir a Senhora de Fátima, da qual destacamos a que Carvalheira operou, a expensas do prelado da diocese eminiense, D. Ernesto Sena de Oliveira (bispo de Coimbra entre 1948 e 1967), para a paróquia de São José da cidade mondeguina68. A escultura desta igreja é em pedra calcária e não tem policromia, ao contrário dos modelos que a partir dela a autora reproduz e que são por si tratados com cromatismos de tons pastéis em combinação com dourados mates, conferindo à peça uma atmosfera quente e afectiva, como é o caso da referida escultura da capela da Casa de Retiros Bom Pastor (Buraca, Lisboa)69. Do ponto de vista iconográfico, denota-se uma procura de novos modelos para a figuração da Senhora de Fátima: tratando-se de uma escultura da época pós-coroação da imagem da Capelinha das Aparições, Maria Amélia Carvalheira da Silva vai adicionar-lhe a coroa que, a partir de 1946, passará a fazer parte integrante da imagem de Fátima. Assim, a escultora colocou uma coroa aberta sobre o manto da imagem que, no lado esquerdo de quem observa, cai por detrás do braço. As mãos, ainda que sugiram nascer da posição mais comummente observada nas imagens da Senhora de Fátima, não se juntam ao centro pelas palmas, mas viram-se ao observador. Pouco mais abaixo, vêem-se as contas de um rosário distribuídas também pelo antebraço da escultura, terminando numa cruz sobre a qual Carvalheira da Silva fez questão de representar o crucificado, na vizinhança da estrela de cinco pontas que se distingue no vestido que cai até à base da peça70.

  • 71 Operámos esta análise no catálogo da exposição Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 465, p. 156. Pela (...)

44Anteriores a esta obra são os trabalhos escultóricos de Salvador Barata Feyo para a Capela de Santa Bárbara, em Barrocal do Douro, na Barragem do Picote. Para além de um importante crucificado e de uma imagem de Santa Bárbara, este autor esculpe, em 1958, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, precisamente a fazer paralelo com a representativa do orago da capela. O professor de escultura da Escola de Belas-Artes do Porto criou uma imagem da Senhora de Fátima constituída por um contido cepo habilmente desbastado, em diálogo com a referida escultura de Santa Bárbara, como aquela, também formada por uma esguia coluna de lenho. Com goiva e formão a produzirem corte certeiro, o autor, através de Manuel Nogueira (entalhador), consegue a imagem da Senhora de Fátima segundo a fisionomia simplificada que, normalmente, este tema apresenta quando é versado por artistas: o tratamento das mangas é sintético e a roupagem é um pouco mais movimentada, mas sem se desvincular da contenção, na zona meã da escultura. Apesar de o talhe das mãos e braços se mostrar vigoroso, não se nota, mesmo nesta área da escultura, a fuga à simplificação geral operada nas vestes, opção que, contudo, não impediu o escultor de traçar um manto que, quando comparado com o trabalho escultórico da parte inferior da peça, se apresenta, sobre a cabeça, de espessura bem robusta e esquematicamente delineado de uma força plástica notória. Toda a roupagem da escultura, onde se notam apenas as linhas de recorte, ajuda à ambiência grave que a composição ostenta; porém, a austeridade é aligeirada pelo tom do lenho deixado na aparência natural. Embora se torne discreto, o terço que, nascido das mãos postas, o autor plasmou junto ao corpo esculpido é um interessante elemento no troço de maior intensidade plástica da obra71.

  • 72 A oferta ficou grafada na própria peça do seguinte modo: “O DONATÁRIO ESC./ ÁLVARO DE BRÉE/ FEZ N (...)
  • 73 Parece-nos ser este o maior problema da azinheira nas esculturas da Virgem Peregrina e do Imacula (...)
  • 74 Ao contrário da escultura de Leopoldo de Almeida da paroquial de Fátima, em Lisboa, esta escultur (...)

45Também esguia, mas de trato muito mais doce, é a escultura que Álvaro de Brée oferece à igreja de São Domingos de Lisboa72. A sua escultura, de cerca de 2,85 metros de altura, surge na alvura do mármore a contrastar com a metálica coroa aberta que possui sobre a cabeça. É uma das esculturas da Virgem de Fátima mais bem conseguidas, porquanto não dispensa qualquer dos elementos iconográficos, mas os enquadra de uma forma plena de originalidade. Resolve a questão da azinheira reduzindo-a, ou guindando-a, a atributo iconográfico, não a trabalhando como elemento cénico73. Coloca-a na base da estátua, onde também regista o escudo nacional, precisamente sob a azinheira, provavelmente a significar ser a terra daquela árvore eleita pela Virgem. É também na copa da pequena azinheira que coloca o símbolo iconográfico da estrela, neste caso de dez pontas. Brée deixa dois discretos recantos laterais ao tronco da árvore para assinar e datar a obra. É assim formada a base da escultura que ocupa cerca de um terço da composição total. Para cima, desenvolve-se um drapeado esguio, pleno de angulosidades, que, não obstante, nunca ferem, porque dispostas de forma simétrica e muito grácil. As mãos, coladas uma à outra à altura do peito, são esguias como toda a coluna esculpida. Delas pendem duas largas mangas e delas saem as abas do manto que, lateralmente, se abrem nas já referidas ondulações angulosas. O manto é formado sobre os ombros da Senhora e não sobre a cabeça, como é mais tradicional. Sobre esta encontra-se uma mantilha ou véu disposto em citação formal à silhueta do manto. Embora o escultor alinhasse a maioria das contas do terço sem a divisão dos padre-nossos pela mediana vertical da escultura, elas partem do braço direito, o que pode revelar uma documentada autoridade do escultor74.

  • 75 Cremos que a ambiência construtiva de todo o templo ajuda ao enquadramento, pois a linguagem mode (...)

46A década de 60 fora, com efeito, pródiga na representação da Virgem de Fátima por diferentes escultores que para ela encontraram soluções plásticas diversas. Quase todas as imagens tiveram intenções cultuais, como a de Irene Vilar, da igreja da Senhora da Hora, em Matosinhos, a de Luísa Leite, da igreja do convento dominicano de Fátima, ou a de Luiz Cunha na igreja paroquial de Nossa Senhora de Fátima, de Aveiro. Não sendo fácil avaliar com precisão o poder que as esculturas têm sobre a devoção dos fiéis de uma determinada comunidade, sobretudo porque não se encontra documentação que o demonstre, talvez seja simples concluir que no templo de Aveiro a escultura tenha sido bem acolhida, pois não há outra imagem da Senhora de Fátima e, como já referimos, esta igreja é dedicada a Nossa Senhora de Fátima75. Na igreja de Matosinhos, a escultura sofreu um avivamento da policromia, o que pode também levar a concluir que os fiéis pudessem preferi-la um pouco mais expressiva (no seu entendimento, claro está…) e não tivessem entendido a opção da escultora. No entanto, nem uma nem outra foram objecto de retirada do espaço cultual, o que sucedera na igreja dos padres dominicanos de Fátima com a escultura de Luísa Leite, porventura a mais audaciosa escultura da Virgem de Fátima que se terá criado. São três peças de grande qualidade artística que merecem a detença que lhes dedicamos.

  • 76 Veja-se o que sobre esta peça dizemos em Arte Sacra em Fátima…, p. 152.
  • 77 Tivemos oportunidade de analisar um destes, criado em 1993 para monumento público em Alcochete, n (...)

47Esculpida em 1963 para a Igreja da Senhora da Hora de Matosinhos, a Senhora de Fátima de Irene Vilar integra um grupo de outras imagens que a autora assinou para veneração dos fiéis naquele templo. O estudioso, à distância de quatro décadas, terá de abstrair-se da coloração que, a posteriori e sem conhecimento da autora, lhe foi adicionada pois a policromia da peça era muito menos acentuada, antes dotada de suavidade condizente com as formas delineadas que ostenta. Apesar da repintura, a peça consegue manifestar uma composição cujas linhas de força se mostram reveladoras da sinuosidade do mistério que a escultora quis transmitir, sobretudo nas linhas do manto que se agiganta, sem que com isso a escultura perca expressão de etérea leveza. Este tipo de silhueta é muito comum em Irene Vilar, sobremodo em esculturas que se relacionam com a Mensagem de Fátima, como poderemos observar no anjo que a escultora idealizou para o Poço do Arneiro, em Aljustrel76, e nos modelos que fez do Coração Imaculado de Maria, bem diversos da iconografia original77. Com efeito, uma sinuosidade de linhas que se aproximam de enevoadas formas aparece nestes trabalhos escultóricos como exibidora de uma atmosfera de misteriosa aparição que bem se coaduna com o tema de Fátima. Das mãos postas da imagem, que se mostra, ao mesmo tempo, anunciadora de uma mensagem e, outrossim, curvada perante essa mesma mensagem, pende um longo rosário que, na parte inferior, se faz acompanhante da linha do manto. Mais abaixo, encontra-se um dos elementos iconográficos da imagem de Fátima, a estrela, símbolo que a documentada autora não dispensa na sua peça.

  • 78 Efectivamente, já se vêem nesta imagem caminhos artísticos relacionados com a arte computacional (...)

48Data de 1968 a escultura patrona do templo de Aveiro, projectado pelo arquitecto Luiz Cunha, que também assinou a imagem que ora tomamos. A escultura de vulto pleno, em madeira recortada e sobreposta em lâminas segundo uma quase lúdica construção volumétrica, assume, em modernidade de linhas, a vetusta figuração da Senhora de Fátima conforme os seus mais antigos traços. Com efeito, ainda que a plástica geral da peça a afaste da devocional escultura da Capelinha das Aparições, o autor não lhe modificou a silhueta e, não fora a técnica, não teríamos substanciais diferenças ao nível da iconografia que da imagem de 1920 saía das mãos de José Ferreira Thedim. Luiz Cunha nem sequer lhe adicionou a coroa de rainha que a escultura da Cova da Iria viria a ostentar a partir de 1946. Antes lhe colocou uma auréola, adorno típico que os anos vinte e trinta adicionaram à escultura de Nossa Senhora de Fátima. Num jogo de madeiras em avanços e recuos, vêem-se, assim, as mangas e sobremangas das vestes da escultura, a nuvem sobre a qual assenta a imagem e o terço pendente do braço direito, como os santeiros dos anos vinte faziam questão de representar aquela específica invocação mariana. O estilo ousado, atendendo a que se trata da imagem titular de uma igreja paroquial (projectada pelo mesmo autor da escultura), inscreve-se na incessante procura de formas para a arte sacra por parte deste arquitecto78.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

10. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja de Nossa Senhora do Rosário, Convento de São Domingos, Fátima), de Luísa Leite, 1965 (fotografia de Marco Daniel Duarte).

49Como dissemos, parece-nos que estas obras, não obstante se mostrarem perscrutadoras de novas linguagens para um tema cultual, tiveram o mínimo de aceitação por parte da comunidade que em torno delas se reunia. Não acontecera assim, todavia, com a que de seguida analisaremos.

  • 79 Tomaremos a análise que já operámos em Arte Sacra em Fátima…, pp. 134-135.
  • 80 Trata-se de uma peça de santeiro, tipicamente derivada da repetição do modelo iconográfico matriz (...)

50A imagem da criação de Luísa Marinho Leite feita em 1965 para figurar na mísula disponibilizada por Luiz Cunha, arquitecto da igreja de Nossa Senhora do Rosário do Convento dos Padres Dominicanos, será bom exemplo para aferir a dificuldade de diálogo entre o escultor criador e o usufrutuário de uma criação sacra destinada à devoção79. Não se tendo estabelecido este diálogo, a imagem será colocada de parte, retirada do ambiente para a qual fora criada. Tal apartamento não se baseia, contudo, numa atitude iconoclasta, pois a devoção precisa de assentar na imagem; no lugar daquela aparecerá uma outra imagem, bem menos artística, mas de cariz devocional inegável80.

51Ainda que possamos, porventura em exercitação académica estéril, indagar culpas e culpados por tais situações (de onde nos viriam à lembrança, à guisa de resposta, entre outros, os divórcios entre a arte contemporânea e a Igreja e vice-versa e a pouca formação artística da maioria dos agentes eclesiais), mais nos interessa perceber o que, em concreto, a escultura criada por Luísa Marinho Leite (1936-) possui de arte sacra e, obviamente, os motivos que levaram a que a escultura fosse retirada de um espaço cultual.

52Ao analisarmos a escultura de per si, percebemos que há nela características que a tornam distante dos fiéis. Desde logo, epidermicamente falando, a frieza do material, que, porventura, se afigura em honestidade exagerada no contexto de uma escultura com objectivo devocional. Com efeito, a escultura apresenta-se na cor metálica fosca que a afasta das imagens que habitam o quotidiano dos fiéis, feito de cores e não de um cinzento metálico. Produzirá uma frieza no observador que nela queira encontrar verosimilhança com a vida humana e, não será difícil depreendê-lo, será, aos olhos do rezador, pouco quente e emocional. Em face destas características, dificilmente os cultuadores da Virgem de Fátima considerarão esta imagem como ícone visível da realidade invisível.

  • 81 A situação geográfica no enorme espaço do templo, ainda que lhe dê lugar destacado, não terá um e (...)

53Adicionado à aparência pouco devocional, a imagem de Luísa Leite padecerá ainda de um outro importante elemento que concorre para a questionação da sua utilidade: a falta de referenciais iconográficos levará a que a identificação da imagem não seja imediata. Com efeito, numa crítica rigorosa ao resultado da escultura, poder-se-á apontar que a autora incorreu em verdadeiros descuidos iconográficos: ignora a coroa da Virgem de Fátima que, desde Maio de 1946, passou a integrar a completude icónica da Senhora de Fátima; não faz trajar a Senhora de Fátima com as roupagens típicas, não lhe colocando nem a borla (ou bola), nem a estrela no vestido; não alude à cor branca que, incondicionalmente, se encontra aliada à imagem da Virgem de Fátima81.

  • 82 Não poderemos descontextualizar a situação artística do convento de Fátima de alguns outros espaç (...)

54Porém, por paradoxal que esta aferição possa parecer, são alguns dos indicativos que tomávamos como alicerçadores da recusa da escultura da Virgem de Fátima enquanto objecto cultal que lhe abonarão o justo epíteto de arte sacra. Esculpida num contexto de mutações profundas na maneira de entender a arte sacra em Portugal, a Virgem de Fátima de Luísa Leite procura afastar-se dos cânones delicodoces das imagens dos santeiros de arte religiosa. Subjacente a esta escolha, encontrar-se-á uma profunda reflexão vivida por vários artistas e por vários encarregados eclesiásticos; entre estes, sem dúvida, o arquitecto Luiz Cunha e, de um modo geral, os responsáveis pela Ordem Dominicana82.

55Se por um lado a depuração formal das medidas da escultura leva a uma frieza, por outra parte, percebemos que a obra não se afasta, deste ponto de vista formal, da típica formulação da maioria das imagens devocionais. Como estas, o vulto da Senhora de Fátima não transgride o espaço, não extravasa a silhueta da modelação escultórica. As suas mãos encontram-se, com pouco destaque, coladas ao corpo e assumem a posição orante da tradicional iconografia da Virgem com as mãos postas em reza. Apenas as abre um pouco para as colocar como significadoras de protecção, o que poderia ajudar o fiel a encontrar-se à sombra do arco descrito pela posição das mãos.

56Julgando a imagética da Virgem de Fátima suficientemente adquirida e divulgada, a autora considerava chegado o momento de depurar aqueles sinais plásticos através de uma estilizadora erudição. Relegando a indumentária iconográfica, a escultora percebeu a importância das linhas corpóreas desenhadas pelo ícone da escultura de Fátima; retirou o acrescento de 1946 (a coroa preciosa) e não modelou na imagem que criou qualquer pormenor decorativo. Apenas sugere esse pormenor numa rugosidade de qualidades texturais. No entanto, apresenta delicadeza no rosto da escultura, egocentricamente trabalhado: isto é, na peça modelada, apenas e só o rosto teve direito a fino tratamento. Tal opção da escultora deverá levar a reflectir sobre a importância daquele rosto, pois só ele teve tratamento de excepção. Pensamos que este preciso semblante da Senhora de Fátima modelado pela escultora portuense será dos que mais se aproxima da mensagem da Cova da Iria, pois mostra-se (e/ou oculta-se) ao mesmo tempo como rosto misterioso, velado. Não obstante uma inegável serenidade que dele emana, o rosto da Virgem, como a mensagem da Cova da Iria, será cabalmente insondável e perturbadoramente inquietante. Salvaguardadas as distâncias estéticas, atrevemo-nos a comparar a imagem da igreja do convento de São Domingos com a que João de Sousa Araújo pintou, pelas mesmas datas (1967), na grande tela do retábulo-mor da basílica do santuário, de onde se percebe, ou melhor, se intui, uma mensagem que, na indefinição de linhas visivelmente nubladas, a ninguém deixará de produzir perturbação.

  • 83 A intemporalidade de uma imagem que exibe formas comuns às que eram usadas por povos da Antiguida (...)

57Esta formulação da imagem escultórica da Senhora de Fátima exibe uma noção de intemporalidade e de transtemporalidade. Aparece como habitando fora do tempo e, por isso, gozará do privilégio de perpassar diversidades cronológicas. O paradoxo continuará a existir no afirmar que a imagem retirada de um espaço cultual, porque não compreendida, será, no futuro, admirada e contemplada como uma tentativa de tornar erudita uma iconografia que já não terá de ser descrita, mas apenas sugerida83.

  • 84 Lembremo-nos que Luiz Cunha, o arquitecto do templo, é mestre nos cânones de enfatização do altar (...)
  • 85 Como deixámos explicado no estudo elaborado para a abertura da exposição “Salve Rainha, Mãe de Mi (...)

58No fundo, aquela imagem é mais uma coluna ou pilar de betão, com valores plásticos que a luz ajuda a potenciar, mas que se anula entre tantas linhas de betão da mesma cor. Esta anulação da escultura torna-a, ao mesmo tempo, presente e ausente: a escultura da Virgem anula-se em ordem a privilegiar o altar que surge como peça central de toda a composição arquitectónica84. O fiel do terceiro milénio poderá encontrar aqui uma das maiores razões para equacionar a escultura de Luísa Leite no âmbito da arte sacra, pois esta característica faz dela uma verdadeira escultura para o “culto” e, menos, para a “devoção”85.

  • 86 Informações colhidas por Luciano Coelho Cristino em colóquio com o artista. Desse colóquio, o dir (...)
  • 87 Vemos verosimilhança nesta indicação porquanto, à época, o templo maior do santuário não tinha um (...)

59Um pouco anterior a esta obra é a escultura de Domingos Soares Branco, datada de 1960, e presentemente colocada no arranjo exterior do centro Pastoral Paulo VI, numa rotunda relvada. Segundo o autor, a escultura terá sido encomendada para um dos mais importantes espaços do santuário, a basílica do Rosário: a “estátua, de mármore branco de Estremoz, foi executada por José Raimundo, de Pêro Pinheiro, e esteve prevista para ser colocada por detrás do altar-mor da basílica do Santuário, para poder ser elevada por um dispositivo mecânico adequado”86. Tal não sucedeu e, segundo o escultor, “a imagem esteve 16 anos em Pêro Pinheiro”. A escultura foi, depois, colocada junto à estrada do Santuário, daí lhe advindo o nome por que era conhecida entre os frequentadores da Cova da Iria: “Nossa Senhora Caminheira”87.

60A escultura de Soares Branco que, reiteramos, cumpriria muito bem a função cultual na basílica do santuário foi colocada no exterior, passando, deste modo, a ter de comportar outra função: a de monumento evocativo. É uma escultura que trata a silhueta da Virgem de Fátima segundo linhas de verticalidade, característica realçada pelo omnipresente plissado que o vestido ostenta e que confere ao tronco esculpido uma ritmada textura. A Senhora de Fátima inclina a cabeça no eixo vertical que também serve de guia às contas do rosário esculpidas pela frente das mãos postas. O autor não dispensa a estrela que escolhe desenhar com oito pontas pouco acima da borda do vestido. Se a nuvem sobre a qual os pés descansam se apresenta com tratamento arcaizante, a azinheira surge esculpida de forma delicadamente naturalista, em sugestão e não mostrada de forma exaustiva, apenas composta por delgados ramos que sobem do solo.

61A este grupo dos anos 60 pertence também a representação pictórica que João de Sousa Araújo fez para a basílica de Fátima que, não sendo uma escultura, é pano de fundo das celebrações daquele espaço. Não se trata da representação isolada da Senhora de Fátima, mas antes de uma alegoria, onde a figura central é, efectivamente, a Virgem das Aparições. Sendo uma pintura, é natural que se preste a uma narratologia mais alargada, o que efectivamente acontece. Na densidade das cores nebulosas, o quadro do grande retábulo da basílica do Santuário de Fátima apresenta a mensagem de Fátima com a profundidade de quem nela reflectiu e com ela está familiarizado. Mais do que narrativa, a obra é demonstradora da fenomenologia de Fátima e condensadora da história das Aparições e dos acontecimentos relacionados com o santuário.

  • 88 A ambiência deste quadro tem prolongamento em quatro outras telas, em forma de semitondos, coloca (...)

62Em espaço contíguo vislumbram-se, ou melhor, intuem-se, várias personagens, entre as quais se destaca a silhueta feminina, mais esboçada que desenhada, representadora da Virgem aparecida em Fátima. Não se furtando à iconografia tradicional da Senhora de Fátima, Sousa Araújo, ao desenhá-la de um modo diáfano, aproxima-a da escultura de Teixeira Lopes, não em inspiração directa, mas em consonância com as restantes figurações existentes no painel, também elas diáfanas e vaporizadas como normalmente são as figurações da galeria artística deste autor: deste modo se codificaram os três videntes Lúcia, Francisco e Jacinta, o anjo, as alegorias da oração e da graça e os papas Pio XII, João XXIII e Paulo VI. Mais alguns anjos ajudam a preencher o fundo da cena: uns sobem e outros descem degraus de espiritual significação, em lembrança da veterotestamentária escada de Jacob, conforme representam, respectivamente, as preces dos homens (orações) e os favores de Deus para com a Humanidade (graças)88.

  • 89 Esta última expressão encontra-se a finalizar a legenda publicada na badana da sobrecapa da Encic (...)

63Do ponto de vista plástico, o quadro faz reminiscência de arquétipos relacionados com o maneirismo do grande El Greco, mais nas formas esbatidas que nas cores soturnas das telas de Fátima. Mas, com efeito, as linhas delicadamente esticadas ao alto operam lembrança daquele mestre das páginas da história da arte e apelam a uma interioridade não quieta de interrogações sobre a mensagem e mistérios expostos: os anjos ao fundo que também se fazem figuração da Oração, da Penitência e da Reparação pedidas pela Senhora de Fátima; o anjo anunciador destas realidades, que se faz custódio da Eucaristia aos videntes, e o magistério eclesial representado pelos seus mais altos dignitários, a começar pelo bispo da diocese de Leiria que aceita como dignas de crédito as Aparições (junto às crianças «videntes) e pelos sumos pontífices relacionados com a história do santuário e do culto mariano de Fátima (Pio XII a entregar a coroa à Virgem, João XXIII que se fez peregrino de Fátima, anos antes de iniciar o seu pontificado, e Paulo VI com a Rosa de Ouro). Por detrás dos três pontífices, João de Sousa Araújo pintou a silhueta da cúpula de São Pedro do Vaticano que representará “a Igreja que acolhe e promove o culto de Nossa Senhora de Fátima”89.

  • 90 Existe uma escultura, de pequenas dimensões, deste autor num dos espaços do Convento de São Domin (...)
  • 91 E não apenas o Santuário de Fátima, como o Movimento da Mensagem de Fátima, que lhe solicitou a b (...)

64Outros artistas trabalharam o tema Senhora de Fátima, como Carlos Escobar90, Emília Nadal (sobretudo, mas não só, em inúmeros cartazes e outras solicitações gráficas que o Santuário de Fátima fez a esta pintora)91, o pintor Nuno de Siqueira (1924-) na Estação do Metropolitano de Olivais, em Lisboa, ou Laureano Ribatua, na igreja de Santo António das Antas. Neste último caso, embora a designação da escultura seja Nossa Senhora do Rosário e o referido título não aluda especificamente a Fátima, trata-se indubitavelmente da iconografia de uma Senhora de Fátima à qual não falta uma silhueta contida, as mãos postas de onde pende um rosário e até a coroa, em estilização moderna.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

11. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja de Nossa Senhora da Encarnação, Olhalvo), de Clara Menéres, 1984 (fotografia de Mário Fonseca).

65Terminamos este percurso que pretende evidenciar o tratamento do tema “Senhora de Fátima” por artistas com a escultura encomendada a Clara Menéres (1943-) para a paróquia de Nossa Senhora da Encarnação de Olhalvo, no Patriarcado de Lisboa. Datada de 1984, parece-nos ser um bom exemplo de como o tratamento da Virgem de Fátima é feito seguindo a iconografia, mas ao mesmo tempo afastando-se dela e colocando elementos que também revelam acerca da autora.

  • 92 Veja-se, na p. 643, de História da Arte Portuguesa, direcção de Paulo Pereira, Lisboa, Temas e De (...)

66Ainda que a escultora prescinda da alvura típica das vestimentas da Senhora de Fátima, pintando a túnica de pérola luminoso e o manto em tons de bege mate, a imagem modelada por Clara Menéres transmite, também por causa da textura do manto e dos sulcos verticais do vestido, a serenidade inerente à da cor alva. Concorre igualmente para este equilíbrio a linha vertical que formam os elementos de carnação (rosto em oval, mãos em pirâmide, pés em equidistância), inscritos numa espécie de parábola muito esguia formada pela orla do manto. A finura do rosto, em amêndoa enfatizada pela silhueta do cabelo, contrasta com a dimensão da zona dos braços que toma grandeza semelhante à da base da escultura, à qual a autora conferiu cuidadosa atenção, não negligenciando outorgar vultuoso tratamento plástico ao tema da azinheira. A proporção emprestada a este elemento é bem condizente com a autora de obras como a emblemática “Mulher-TerraVida”92, de 1977; esta meditação sobre a importância do feminino e sobre a importância da natureza, no contexto de uma escultura cultual, ganha incomensurável valoração quando esse símbolo do feminino que é a terra se encontra associado à Mulher que, descendo do Céu, se manifesta a três crianças sobre um pavimento de verdura, na terra da Cova da Iria: a Mãe de Deus, a ‘Theotokos’, assim proclamada no Concílio de Éfeso, será para Clara Menéres transcendente coincidência da maternidade humana e divina. Ainda que percebamos a ausência de alguns elementos da tradição iconográfica que cremos ajudariam a entender a escultura por parte dos seus usufruidores, parece-nos que os artistas teriam na Senhora de Fátima tema de exploração que os levaria – assim o almejassem – a formas renovadas.

  • 93 Com efeito, já em esculturas anteriores podemos encontrar estes mesmos elementos iconográficos, a (...)

67Provavelmente, a escultura do novo templo do Santuário de Fátima, dedicado à Santíssima Trindade, inaugura um período novo na iconografia da Virgem de Fátima. Não tanto pelas suas formas compositivas que nos parecem ter já sido utilizadas, por exemplo, por Irene Vilar em esculturas congéneres, mas sobretudo pela síntese que na escultura da igreja de Fátima se encontra reunida. Benedetto Pietrogrande, embora também não tenha sido o primeiro a utilizar ao mesmo tempo o coração de Maria e o terço do rosário como atributos de uma mesma escultura da Senhora de Fátima, fá-lo numa nova era em que há plena consciência do valor artístico do tempo presente, daí resultando uma peça que, não sendo de raiz devocional, poderá, sem abdicar dos conceitos estéticos do momento, vir a transformar-se nisso93.

  • 94 Curiosamente, esta consciência de a Virgem aparecida na Cova da Iria ser a “mesma mulher que nas (...)

68A escultura de Pietrogrande prescinde da referência à nuvem, à azinheira, à estrela e à coroa e de qualquer apontamento de policromia ou douramento. Exibe com grande força a total brancura que sai do brilho marmóreo, um terço na mão direita, conforme a descrição da imagem da Aparição feita pelos videntes, e o coração ao centro. Parece-nos ter sido pensada a partir das descrições primevas, principalmente em relação à géstica da Aparição e menos a partir da construção da imagem da Capelinha das Aparições ao longo do tempo. A liberdade de mostrar a cabeça da Virgem Maria na totalidade não belisca em nada o pendor sacro da peça, ao mesmo tempo que a torna mais jovem e próxima da Virgem dos Evangelhos, visitada pelo Anjo em Nazaré94. A Senhora de Fátima não tem um manto, mas antes um leve lenço (existente ou mesmo quase inexistente) que se confunde com o cabelo. Também este aspecto concorre para que o rosto se mostre verdadeiramente jovem, assim como o facto de a túnica, ao cimo, deixar ver parte do colo.

Imagem Nossa Senhora de Fátima desenho

12. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja da Santíssima Trindade, Santuário de Fátima), de Benedetto Pietrogrande, e pormenor da representação de Nossa

  • 95 Não desenvolvemos o tema das figurações orientalizantes da Senhora de Fátima que tem um ponto imp (...)
  • 96 De tal forma era subtil, que não tardou a acentuação da cor deste cordeiro que, depois de alguns (...)

69A opção tomada por Marko Ivan Rupnik (autor do grande mural que, composto de milhentas tesselas, no mesmo templo desenha a Jerusalém Celeste) em ordem à figuração da Virgem Maria foi bem mais tradicionalista, não obstante o conceito tradicionalista não se revele desprovido de erudição histórica, como veremos. A Senhora de Fátima traja de branco e de tons dourados, comuns a todo o painel, mas usados de forma a conferirem ao figurino mariano uma imagem de maior alvura. Encontra-se totalmente coberta por um manto que traça, à frente, à maneira das antigas figuras dos mosaicos da paleocristandade. Completamente agasalhada com as vestes que também acolhem, à maneira da iconografia da ‘Mater Misericordiae’, os dois beatos, toca no pastorinho Francisco com a mão direita, acentuando a ideia de protecção. A esquerda deve ser lida como indicadora do caminho a seguir, transformando a Virgem de Fátima em ‘Hodegetria’ (aquela que, como nos antigos ícones, indica a via a seguir)95. A imagem integra-se no contexto de uma ‘Déeisis’ constituída pela figura de João Baptista, no lado oposto, e pela imagem de um enorme cordeiro subtilmente desenhado entre o muito brilho aurífero das tesselas centrais96. A sobreposição simbólica de uma colossal cruz ao símbolo do cordeiro vem clarificar esse caminho indicado quer pela Senhora de Fátima, quer por João Baptista.

  • 97 Veja-se a documentação que a seguir se regista: “mãos erguidas e quando falava alargava os braços (...)
  • 98 Realmente é um gesto muito frequente. Dizemos algo sobre o mesmo no estudo O Vitral da Ressurreiç (...)
  • 99 Posição das figuras orantes da arte paleocristã, aqui apenas visível na mão direita da escultura. (...)
  • 100 A solução, sendo próxima da que utilizou em 1993 Irene Vilar na estátua de Alcochete (veja-se Memór (...)

70Ao contrário desta versão da Virgem de Fátima – que não ostenta rosário (este aparece nas mãos da vidente Lúcia, aqui figurada enquanto religiosa carmelita) –, a escultura de Benedetto Pietrogrande tem um vigoroso rosário, porventura a parte mais rude da escultura que, na sua geral atmosfera, se mostra bastante delicada. As mãos, que estarão relacionadas com a descrição que alude ao facto de a Senhora aparecida “abrir as mãos”97, desenham uma via ascensional típica das esculturas sagradas98: ambas as mãos viram as palmas a quem para elas olha, a esquerda dirige-se à terra e a direita ergue-se ao céu, podendo traçar-se, intuitivamente, uma linha que se inicia na sinistra e se encaminha ao alto, tendo como ápice a mão dextra que aponta e, ao mesmo tempo, intercede em gesto antigo de oração (palma virada para a frente e dedos esticados ao alto99). A fórmula de assentar os pés na base sugere movimento que é acentuado por todas as pregas, vincos e golpes de incisão que o cinzel cravou na escultura. A ligeira inclinação do vulto escultórico para a frente, esquema compositivo que deriva já, como vimos, da primitiva imagem elaborada por José Ferreira Thedim, sublinha esse movimento perceptível de todos os ângulos da peça. O manto, sobretudo na parte direita de quem observa, desprende-se do corpo da Virgem que enverga uma túnica com a cintura subida ligeiramente plissada. Sobre o peito esculpe-se um coração que parece transbordar do corpo da Virgem100.

71A fortuna desta escultura virá a ser medida através de variados aspectos, sendo um dos mais importantes a sua sorte enquanto imagem cultual e bem assim a sua sorte enquanto peça artística. Vingará como imagem de culto? Perdurará enquanto peça escultórica, criando novas formas de ideação artístico-iconográfica em torno da Virgem de Fátima? Acreditamos que Fátima, longe de se encontrar cabalmente desenhada, continuará a ser motor de iconografias ciclicamente renovadas.

  • 101 Transcrevem-se, na íntegra, os dois sonetos de Maria Feio sobre a escultura “Nossa Senhora de Fátim (...)

72Apêndice documental101

A Maravilhosa Imagem

Ante essa maravilha de escultura
A alma fica em êxtase a sentir
Emoções que não podem definir
Tão sobrehumana e excelsa formosura.

Em forma de grácil iluminura

Do bloco de madeira a emergir
É tão alado vulto o reflorir
Da Fé que no amôr cristão perdura.

E cada golpe do buril do artista
É genial centelha em que persista
Um sopro da divina inspiração.

Que a Virgem canta em nova ladainha
E
reza o poema da “Salve Rainha”
No cinzelar da Arte em Oração.

A Nova Aparição

E “Tôrre Ebúrnea”, “Estrêla Matutina”
É a celeste Imagem bem decerto
Um milagre do céu, um livro aberto
Á virtude que as almas ilumina

Nimbada em luz etérea, cristalina,
As mãos crispadas em ancioso aperto,
Ela é a Mãe que os filhos quer bem perto
Do peito envolto em gazes de neblina.

Que vem dizer-lhes, “vosso amor imploro,
Como por v
ós padeço e quanto choro,
Ó ímpios pecadores sem devoção.”

Por isso a obra prima de escultura
É
na fluidez de angélica ternura
Uma sublime e Nova Aparição.

Maria Feio

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Notas

1 Já antes existira uma pagela da Virgem Maria, mas não temos certeza se com ela se quis fazer figurar a Aparição. Realmente, no Processo Canónico Diocesano, fala-se de uma “fotografia duma imagem religiosa (Nossa Senhora)” (Processo Canónico Diocesano – Relatório Oficial, AEL, Documentos de Fátima, I-12B: Processo Canónico Diocesano – Relatório Oficial, fls. 3v-55v; veja-se Documentação Crítica de Fátima. II – Processo Canónico Diocesano (1922-1930), Fátima, Santuário de Fátima, 1999 – doravante, DCF II – , doc. 9, pp. 197 e 198).

2 Confronte-se a publicação das duas versões deste documento em Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico 1 (1917-1918), Fátima, Santuário de Fátima, 2002 (doravante, DCF III-1), doc. 43, de 1917.10.11 (‘ante’). Veja-se também a reprodução contida no catálogo Memórias. Sinais. Afectos. Nos 90 anos das Aparições de Fátima, catálogo da exposição com o mesmo nome, coordenação-geral de Carlos A. Moreira Azevedo, comissariado científico de Marco Daniel Duarte, Lisboa, 2007, p. 70.

3 Acerca desta e doutras fotocomposições deveras interessantes para o desenvolvimento iconográfico de Fátima, veja-se A. A. Borges, Para a história das fotografias dos videntes de Fátima, em Stella, ano 24, n.º 276, Ag, 1960, pp. 10-11; n.º 278, Outubro, 1960, p. 10; n.º 279, Novembro, 1960, p. 10.

4 Numa das versões deste quadro aparecem apenas duas meninas e o tronco da árvore. Veja-se a fonte documental acima citada.

5 Documentação Crítica de Fátima. I – Interrogatórios aos Videntes – 1917, Fátima, Santuário de Fátima, 1992, doc. 31, 266.

6 Frederico da Silva Serôdio, Santos, Gilberto Fernandes dos, em Enciclopédia de Fátima (1892-1964), Enciclopédia de Fátima, coord. Carlos A. Moreira Azevedo e Luciano Cristino, Estoril, Principia, 2007, pp. 511-512.

7 Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano 2 (1918-1920), Fátima, Santuário de Fátima, 2004 (doravante, DCF III-2), doc. 404, p. 108.

8 DCF III-2, doc. 404, p. 108.

9 Jesué Pinharanda Gomes, Formigão, Manuel Nunes (1883-1958), em Enciclopédia de Fátima…, pp. 232-237.

10 Carta de Gilberto Fernandes dos Santos para Manuel Nunes Formigão, datada de Torres Novas, de 1919.11.03, DCF III-2, doc. 415, p. 144.

11 Carta de Celina Gameiro a Lúcia, datada de Torres Novas, 1919.08.08, DCF III-2, p. 102.

12 DCF III-2, doc. 497, p. 301.

13 Veja-se sobre esta matéria o importante contributo das seguintes obras: Sérgio de Oliveira e SÁ, Santeiros da Maia no último ciclo da escultura cristã em Portugal, Maia, edição de Autor, 2002; Tedim, José Manuel Alves, Os santeiros da Maia, em Bracara Augusta, tomo 32, fascículos 73-74, n.º 85-86, Braga, Janeiro- -Dezembro de 1978; Mestre Guilherme Ferreira Thedim: 1900-1985. Uma oficina de escultura religiosa em Matosinhos, Matosinhos, Câmara Municipal, 2004.

14 Sobre este autor leia-se a resenha biográfica [Thedim, José Ferreira (1898-1971)] assinada por Marco Daniel Duarte em Enciclopédia de Fátima, pp. 546-549. Leia-se também o trabalho de Sérgio de Oliveira e SÁ, Santeiros da Maia…, p. 122.

15 Averiguação que se deve a Luciano Coelho Cristino; veja-se À procura de Nossa Senhora da Lapa, em Voz da Fátima, ano 88, n.º 976, 2004.01.13, p. 2; idem, Foi encontrada a Senhora da Lapa, em Voz da Fátima, ano 88, n.º 980, 2004.05.13, p. 2.

16 Inscrição na base de policromia marmoreada da escultura de Nossa Senhora da Lapa, da igreja de Labruja.

17 Numa carta de Gonçalo de Almeida Garrett para Manuel Nunes Formigão, que não conhecia o arquétipo, refere-se, com clara estranheza, ao “vestido fóra do vulgar”: “A estampa está muito bem feita, e diz-me V. Exª que ella é reprodução da Imagem, feita segundo as indicações de Lucia. Parece que a Estampa alem do vestido e manto, mostra uma especie de tunica descendo um pouco abaixo do joelho e aberta ao centro. É um vestido fóra do vulgar em Nossa Senhora” (Carta de Gonçalo de Almeida Garrett para Manuel Nunes Formigão, datada de Entre-os-Rios, 1920.07.27; DCF III-2, doc. 556, p. 407).

18 Não desenvolveremos todas estas temáticas que tencionamos tratar de forma mais aprofundada na dissertação de doutoramento que temos em mãos. Remetemos, no entanto, acerca da questão do terço, para os documentos números 481 e 486 de DCF III-2, onde encontraremos como personagem principal Gilberto Fernandes dos Santos. Algumas reflexões mais desenvolvidas já poderão ser colhidas no que escrevemos com o título Fátima, Lugar da Iconografia Mariana, em Actas do Congresso Internacional – Fátima para o Século XXI (no prelo).

19 Confronte-se Documentação Crítica de Fátima. III – Das Aparições ao Processo Canónico Diocesano 3 (1920--1922), Fátima, Santuário de Fátima, 2005, doc. 482, p. 270.

20 Processo Canónico Diocesano – Relatório Oficial, publicado em DCF II, doc. 9, p. 215.

21 Há, como é sabido, correntes historiográficas que defendem que o ‘estádio’ barroco acontece em cada estilo artístico. Veja-se por exemplo Arnold Hauser, O Conceito de Barroco, Lisboa, Veja, 1997; Erwin Panofsky, Qu’est-ce que le baroque?, em Trois Essais sur le Style, Paris, Le Promeneur, 1996; Eugénio D’Ors, O Barroco, Lisboa, Vega, 1990; Severo Sarduy, Barroco, Lisboa, Vega, 1989.

22 Leia-se o que diz Sérgio Sá, Santeiros da Maia…, pp. 69-79.

23 Outra característica virá ainda a marcar esta iconografia, como é a de o rosto da imagem exibir uma ambiência de tristura, marca tardia que, pensamos, se encontra relacionada com a imagem de Teixeira Lopes.

24 Carta de Maria Lúcia de Jesus, r. S. D., para D. José Alves Correia da Silva, datada de Tuy, 1937.12.05, pp. 2-4, AEL. Dossiê Fátima, B1-46, 1937.12.05. doc. 2585.1.

25 Esta fotografia foi publicada por Sebastião Martins dos Reis, Síntese Crítica de Fátima. Incidências e repercussões, s.l., s.n., 1967 [estampa 5, do grupo final de imagens].

26 Usamos as palavras com que Sebastião Martins dos Reis legenda as referidas fotografias no seu apêndice de imagens de Síntese Crítica de Fátima. Incidências e repercussões, supracitada: vejam-se as estampas que coloca em 90.º e 91.º lugares.

27 Veja-se, sobre esta importante personalidade dos estudos de Fátima, o que diz José Geraldes Freire no verbete Reis, Sebastião Martins dos (1913-1984), em Enciclopédia de Fátima…, pp. 450-455.

28 Legenda da fotografia n.º [91].

29 Veja-se, no catálogo supracitado Mestre Guilherme Ferreira Thedim…, o fac-símile de uma carta onde, no terceiro parágrafo, aparece esta expressão, 39.

30 Desenhos de Henriqueta Malheiro, Museu do Santuário de Fátima, Reserva.

31 Dois dos primeiros são paginados com numeração romana (I, II) e um encontra-se assinado e datado (“Sr. Malh XI1946”; “Ir. Malheiro XI-1946”).

32 Margem inferior esquerda, escrito de baixo para cima, sensivelmente a meio da referida margem.

33 Esta frase encontra-se replicada mais abaixo, desta feita pelo punho da irmã desenhadora que, provavelmente temendo que a letra de Lúcia se esbatesse, decidiu fazer uma chamada de atenção à maneira de nota de pé de página.

34 Veja-se acerca deste espólio arquivístico, bem assim do do Cónego Sebastião Martins dos Reis, os pontos 3.3 e 3.4 do verbete de Pedro Penteado, Arquivo, em Enciclopédia de Fátima…, p. 50.

35 Esta tela, de 35,5 x 48 cm, tem no verso a frase latina da carta aos Hebreus (5,7) “Com [‘sic’, por ‘cum’] clamore valida” e encontra-se assinado e datado da forma que segue: “S. H. de J. Malheiro 1946”. Mais uma prova de como o espólio que estamos analisando esteve à guarda de Sebastião Martins dos Reis ou de que, pelo menos, este teve contacto com ele é a estampa reproduzida nas páginas iniciais da sua obra Síntese Crítica de Fátima. Incidências e repercussões, s.l., s.n., 1967, com a explícita legenda “Retrato da Vidente de Fátima – Lúcia de Jesus Santos – servindo de modelo explicativo do modo como lhe apareceu o Coração Imaculado de Maria (quadro a óleo, de 1946, da discípula de Malhoa, Madre Henriqueta Malheiro, R. S. D.)”.

36 Memórias. Sinais. Afectos…; veja-se o n.º 3 do catálogo, pp. 48 e 49. Também o que anota José Geraldes Freire num artigo intitulado Uma pintura valiosa do Imaculado Coração de Maria, em O Distrito de Portalegre, 1978.10.27, p. 6.

37 De tal sorte assim é que não foi fácil a cristalização do nome quando relacionado com Fátima, como se prova pelas pagelas, correspondência e notas de encomendas dos santeiros que, não raro, se referiam a este tipo como Sagrado Coração de Maria de Fátima; veja-se, por exemplo, a pagela que integra a Colecção de Estampas e outros materiais iconográficos do Santuário de Fátima (espólio de Avelino Martins da Costa, álbum n.º 19 [folha n.º 19v] com a legenda: “SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA DE FÁTIMA. Executado sob a direcção da irmã Lúcia (Vidente) pelo escultor JOSÉ FERREIRA THEDIM S. Mamede de Coronado – Portugal”.

38 Luciano Cristino, Virgem Peregrina, em Enciclopédia de Fátima, pp. 605-609. Com efeito, a primeira imagem peregrina é a da Capelinha das Aparições, feita em 1920, mas o modelo que virá a assumir este nome é verdadeiramente uma correcção dessa mesma iconografia.

39 Para sermos sucintos na argumentação basta lembrarmos os versos do canto oficial de Fátima: «Falou contra o luxo, contra o impudor de imodestas modas de uso pecador». Sem que queiramos exagerar relativamente às vestes da escultura da Capelinha das Aparições que, obviamente, não correspondem à descrição do hino, podemos percebê-las como mais luxuosas que as que o modelo da Virgem Peregrina viria a envergar. Acerca deste hino, de autoria de Afonso Lopes Vieira, leia-se o que dizemos no estudo “Em Fátima rezei por ti”: uma abordagem aos testemunhos materiais da peregrinação, em Memórias. Sinais. Afectos, supracitado, p. 15, e a publicação do manuscrito no número 33, p. 59, do mesmo catálogo.

40 Manfred Lurker, no Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos, São Paulo, Paulos, 1993, p. 68, lembra que a figuração plástica do culto ao Imaculado Coração de Maria data do século XVII: “pelos fins do século XVII surgiram as imagens do Coração de Maria, que, em recordação da profecia do velho Simeão (‘e a ti, uma espada transpassará tua alma’), é apresentado transpassado por uma espada”. Em Portugal, a figuração antropomorfa do Coração de Maria será posterior. Datam deste século XVII umas figurações plásticas, mas conceptuais, que aludem aos corações de Jesus e de Maria, como se pode ver, por exemplo, no mosteiro de Santa Maria de Lorvão, no retábulo dos Sagrados Corações. Veja-se Nelson Correia Borges, Arte monástica em Lorvão: sombras e realidade: das origens a 1737, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, Vol. I, pp. 378-379. Por se tratar também de um lugar onde o desenvolvimento desta iconografia tem uma estação quase inaugural, leia-se o que diz Nuno Saldanha, A “Quinta Chaga” de Cristo. A Basílica das Carmelitas Descalças do Coração de Jesus à Estrela, em Monumentos, Lisboa, MAOTDR/DGEMN, n.º 16, Março de 2002, pp. 8-15, e Giuseppina Raggi, As pinturas de Pompeo Batoni: ‘Status Quaestonis’, ibidem, pp. 46-53.

41 Antunes Borges no estudo Como surgiu a primeira imagem do Imaculado Coração de Maria, em Fátima 50, ano 2, n.º 23, 1969.03.13, pp. 10-14.

42 Uma das mais célebres esculturas do Imaculado Coração de Maria, inaugurada em 1958 e colocada no nicho da torre da basílica do Santuário no ano seguinte, é obra do artista dominicano Thomas McGlynn; veja-se Thomas McGlynn, Vision of Fatima, Boston, Little, Brown and Company, 1948, e Richard A. McAlister, Thomas McGlynn. Priest and Sculptor, Providence, Providence College Press, 1981, pp. 54-83, passim.

43 Acerca deste templo, riscado por Luiz Cunha, veja-se o que dizemos em Arte Sacra em Fátima…, pp. 30-31.

44 Cremos que esta visão terá também uma quota-parte de responsabilidade pelo infortúnio cultual que a peça de Teixeira Lopes sofreu. Colocar a imagem de Teixeira Lopes como concorrente da de Ferreira Thedim não foi, decerto, a melhor opção, pois elas não se deveriam ter afigurado como incompatíveis. Estamos convencido de que o escultor não terá querido que a sua imagem ocupasse o nicho da rústica capela das aparições. Ao contrário, as datas de elaboração da escultura no ateliê de Vila Nova de Gaia compadecem-se antes com a tese de esta escultura ter sido elaborada para outro espaço cultual, talvez, provisoriamente, a chamada capela das missas e a basílica. O templo maior do santuário, com grande pé-direito, suportaria a imagem que, é bom que se destaque este facto que não tem sido evidenciado, é a primeira imagem feita após o reconhecimento oficial das aparições.

45 Lembremos que, quando falamos de um culto tão perseguido e com tanta adesão popular, uma década é um tempo em que se firma, com efeito, uma tradição muito vincada.

46 Leia-se a crítica severa que se escreve em Lírios. Revista antoniana de cultura, Lisboa, composição, impressão e gravuras de Bertrand, Irmãos Ltda., 1932, número único, pp. 11-13.

47 Veja-se estudo mais pormenorizado sobre a escultura da Casa França em Memórias. Sinais. Afectos…, p. 155. Outro exemplo pode observar-se no trono do retábulo-mor da igreja paroquial de Nossa Senhora de Fátima (paróquia de São Martinho), escultura datada de 1945 e assinada pelo mesmo autor.

48 Ainda assim, a própria escultura de Teixeira Lopes não escapou à crítica de uma ambiência saint-sulpliciana: veja-se Clara Menéres (Artes plásticas de temática religiosa, em A Igreja e a Cultura Contemporânea em Portugal. 1950-2000, coordenação de Manuel Braga da Cruz e Natália Correia Guedes, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2001) que caracteriza a escultura como uma obra “erudita e meritória, apesar de manifestar um inequívoco estilo académico e passadista, quase saint-sulpiciano”, p. 61.

49 Assim o temos escrito; veja-se o ponto 3 do artigo Arte (Arquitectura, escultura, pintura, artes decorativas) que intitulámos “A paradigmática discussão de sempre: Teixeira Lopes versus Ferreira Thedim ou a arte sacra em Fátima”, em Enciclopédia de Fátima, supracitada, pp. 64-66.

50 A magna carta através da qual o bispo de Leiria declara dignas de crédito as aparições de Fátima, intitulada Carta Pastoral sobre o culto de Nossa Senhora da Fátima, data de 13 de Outubro de 1930; veja-se DCF II, doc. 11, pp. 263-276.

51 Veio contra ela o referido artigo da revista Lírios, já citado, e também o que escreve Abel Salazar, intitulado O escultor Teixeira Lopes, no periódico O Diabo. Grande semanário de literatura e crítica, p. 1.

52 Depois de publicado no Comércio do Porto, o texto foi incluído, com o título A Virgem de Teixeira Lopes, em Voz da Fátima, n.º 173, 1937.02.13, p. 3.

53 Agradecemos ao Rev.mo Senhor Cón. Dr. Luciano Coelho Cristino a informação acerca destes sonetos que nos merecem a publicação no final deste artigo.

54 Sem querermos desenvolver este tema, indicamos apenas duas fontes para que possa explorar-se: veja-se o que se diz, acerca da fisionomia da Aparição, na carta magna de D. José Alves Correia da Silva, supracitada: “O rosto, duma beleza celeste, sobrenatural, apresentava-se sereno, grave e toldado duma leve sombra de tristeza” (p. 268 do doc. 11 da DCF II); veja-se, ainda, o que o Pe. Manuel Nunes Formigão, sob o pseudónimo de Visconde de Montelo, escreve na mesma linha em Os Episódios Maravilhosos de Fátima, Guarda, Casa Editora Empresa Veritas, 1921, p. 8: “O rosto, de uma nobreza de linhas irreprehensivel e que tinha um não sei quê de sobrenatural e divino, apresentava-se sereno e grave e como que toldado de uma leve sombra de tristeza”, p. 8. Embora as alusões ao rosto triste da Aparição nos pareçam um tema mais tardio, já no interrogatório do P. José Ferreira de Lacerda, datado de 1917.10.19, aparece uma referência ao estado psicológico (não propriamente ao rosto) da Virgem: “[...] A Senhora estava triste quando dizia isto” (DCF I, doc. 47, p. 337); contudo, o mais comum é aparecer a expressão “séria” para caracterizar o rosto da Aparição. A resposta contida no interrogatório do mesmo Pe. Manuel Nunes Formigão, datado de 1917.09.27, é clara neste aspecto: “– Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste? – Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.” (DCF I, doc. 7, p. 57).

55 Entre outras denominações da Virgem, surgem Nossa Senhora do Carmo, Rainha dos Apóstolos, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Dores.

56 Na mesma personagem, Almada consegue transmitir estas duas dimensões, colocando-o a sustentar um ostensório e, pela posição com que lhe desenha o rosto inclinado, em posição reverencial.

57 Permitimo-nos usar, na descrição deste vitral, as mesmas palavras que inserimos no catálogo da exposição Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 463.

58 A data consta de uma estampa da colecção do Santuário de Fátima que reproduzimos neste estudo. À data da exposição, já várias vezes mencionada, não se sabia o paradeiro desta escultura que, segundo a legenda da referida estampa, pertencera ao Palácio de Queluz.

59 Esta esfera relaciona-se com a iconografia mais específica do subtipo que designamos por Virgem Peregrina.

60 Escultura próxima desta é a que o autor possuía em sua casa, em Paris. Veja-se uma reprodução incluída em Fátima. Altar do Mundo, vol. I (O Culto de Nossa Senhora em Portugal), Porto, Ocidental Editora, 1953, p. 310. Nesta escultura, o terço pende do braço direito e a Virgem não ostenta qualquer fio sobre o peito.

61 A criação da escultura para a igreja de Santo Eugénio resulta da adesão do embaixador português, António Carneiro Pacheco, à iniciativa do Vaticano de, por altura do jubileu do papa Pio XII, se construir uma igreja dedicada ao santo onomástico do papa (Eugénio Pacelli). Encontra-se documentação relativa a esta encomenda no Instituto dos Arquivos Nacionais – Torre do Tombo (IAN/ANTT) que neste momento estamos a investigar; veja-se naquele artigo o fundo intitulado: Comissão Nacional da Capela de Nossa Senhora de Fátima da Igreja de Santo Eugénio, em Roma, com documentação datada entre 1942 e 1955. Acerca do entusiasmo que esta homenagem provocou no mundo católico português, nomeadamente, no mundo católico de Fátima, leia-se Fátima. Altar do Mundo, vol. II (História das Aparições), Porto, Ocidental Editora, 1953, pp. 192-194.

62 O que dizemos sobre esta escultura pode aplicar-se à que, do mesmo autor, se encontra na capela do monumento de Cristo Rei, de Almada, que se mostra semelhante a esta.

63 Retomamos a análise que incluímos em Memórias. Sinais. Afectos, n.º 467.

64 Acerca destas últimas remetemos para as considerações que fizemos no estudo “Em Fátima rezei por ti”: uma abordagem aos testemunhos materiais da peregrinação, em Memórias. Sinais. Afectos…, p. 33. Aí tivemos oportunidade de apontar, para a falta de qualidade dos objectos religiosos que os peregrinos compram em Fátima, culpas à comunidade de artistas que nunca se terá interessado pelo tema. Maria Amélia Carvalheira da Silva parece ter sido uma ilha nesta matéria. O citado catálogo reproduz algumas peças desta índole nas pp. 132-133 (n.os 382-385).

65 Neste contexto merece a pena lembrar o que escreve Clara Menéres sobre esta autora que “era muito recomendada pela hierarquia”: “o seu tipo de trabalho conciliava uma aparente modernidade com fórmulas tradicionais, num estilo que agradava ao gosto comum” (Artes plásticas de temática religiosa…, p. 71).

66 Conforme é sabido, a aparição de Agosto não ocorreu no dia 13, mas seis dias depois, nos Valinhos, perto da casa dos videntes. Neste lugar, o Santuário de Fátima mandou erigir um monumento. O arranjo arquitectónico deste monumento foi entregue ao arquitecto António Lino e a escultura foi dada a conceber a Maria Amélia Carvalheira da Silva. No monumento, um templete de planta quadrangular rematado por jogos triangulares e aberto em todas as faces, observam-se símbolos iconográficos de Fátima, como pombas, a estrela e o coração cercado de espinhos.

67 Esta escultura situa-se no altar lateral, lado do Evangelho, fazendo ‘pendant’ com uma escultura de similar volumetria representativa de São José com o Menino.

68 Tivemos oportunidade de consultar a documentação paroquial relativa a esta escultura. Maria Amélia Carvalheira da Silva trabalha para a igreja de São José de Coimbra, porque os responsáveis deste templo apreciaram muito a via-sacra que a escultora havia feito, anos antes, para a capela do Verbo Divino, em Fátima, e que apelidam de “maravilhosa obra” (Arquivo Paroquial de São José de Coimbra, Livro n.º 2. Actas da Comissão Pró-construção da igreja de S. José, acta de 1961.05.20, f. 3). Segundo se lê noutra passagem da mesma fonte, é inclusivamente “mediante indicação do Senhor Arcebispo” que a “confecção das Imagens de S. José e Nossa Senhora” é entregue a Carvalheira da Silva (ibidem, acta de 1961.11.05, f. 4v). Veja-se o trabalho de Marco Daniel Duarte, O Vitral da Ressurreição. Exegese iconográfica da última obra de Augusto Nunes Pereira, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004, nota 260, p. 170.

69 Veja-se Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 466, p. 157.

70 Na escultura de barro policromado a estrela encontra-se insculpida.

71 Operámos esta análise no catálogo da exposição Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 465, p. 156. Pela coloração e até pela síntese, este trabalho escultórico aproxima-se de um outro, a que aludiremos mais adiante, feito bastantes anos depois por Laureano Ribatua para a igreja de Santo António das Antas.

72 A oferta ficou grafada na própria peça do seguinte modo: “O DONATÁRIO ESC./ ÁLVARO DE BRÉE/ FEZ NO ANO D. 1962/ P.A A IGREJA DE/ S. DOMINGOS DE LX.A”.

73 Parece-nos ser este o maior problema da azinheira nas esculturas da Virgem Peregrina e do Imaculado Coração de Maria, nas quais se vê uma azinheira de diminutas, quase ridículas, dimensões. Outra forma era a utilização deste elemento nas esculturas dos anos 30 e 40 que a usavam como elemento cénico, mas com grande vigor escultórico: vejam-se as esculturas da paroquial de Espinho, da igreja da Trindade do Porto ou das Mercês de Lisboa.

74 Ao contrário da escultura de Leopoldo de Almeida da paroquial de Fátima, em Lisboa, esta escultura não terá tido fortuna cultual. Parece-nos que a não-adesão dos fiéis à escultura estará relacionada com o facto de na mesma igreja, num outro altar, se encontrar uma imagem de santeiro que desperta, por intuição, uma maior devoção popular.

75 Cremos que a ambiência construtiva de todo o templo ajuda ao enquadramento, pois a linguagem moderna subjaz a todos os pormenores daquela igreja.

76 Veja-se o que sobre esta peça dizemos em Arte Sacra em Fátima…, p. 152.

77 Tivemos oportunidade de analisar um destes, criado em 1993 para monumento público em Alcochete, no catálogo Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 470. Dentro deste contexto mereceria ainda análise a escultura de Santa Maria do Imaculado Coração que Irene Vilar operou para o Mosteiro do Coração Imaculado de Maria de Bande (Paços de Ferreira).

78 Efectivamente, já se vêem nesta imagem caminhos artísticos relacionados com a arte computacional que o autor, mais tarde, viria também a explorar; veja-se, entre outros, Luiz Cunha. Janelas para o Reino. Pintura de Temática Cristã. Windows over the Kingdom, Novembro de 2005 (catálogo da exposição com o mesmo nome, patente ao público no edifício do antigo Convento das Mónicas, Lisboa, em Novembro de 2005).

79 Tomaremos a análise que já operámos em Arte Sacra em Fátima…, pp. 134-135.

80 Trata-se de uma peça de santeiro, tipicamente derivada da repetição do modelo iconográfico matriz.

81 A situação geográfica no enorme espaço do templo, ainda que lhe dê lugar destacado, não terá um efeito diferente do da camuflagem, pois a cor das paredes do betão aparente é similar à cor do metal aparente da superfície escultórica. Obviamente, o fiel terá dificuldade em entender que não consiga ver os sinais de que precisa, pois certamente não serão estes entraves que ele procura no templo. Ao invés desta escultura, a imagem de São Domingos da mesma igreja, sob modelo de José Grade, não obstante se apresentar na mesma materialidade da cor cinzenta, não colocou entraves aos veneradores. Pensamos que o tema explicará a intocabilidade da imagem da Virgem Maria aparecida em Fátima e a admissibilidade de uma expressividade artística no tocante a uma figura corporeamente mais próxima do mundo: um santo do século XIII (sobre esta escultura, veja-se o que dizemos em Arte Sacra em Fátima…, pp. 136-137).

82 Não poderemos descontextualizar a situação artística do convento de Fátima de alguns outros espaços dominicanos em Portugal: Convento do Imaculado Coração de Maria, em Aldeia Nova (Olival, Ourém), Convento de São Domingos de Lisboa (projecto dos arquitectos João Paulo Providência Santarém e José Fernando Castro Gonçalves)…

83 A intemporalidade de uma imagem que exibe formas comuns às que eram usadas por povos da Antiguidade pré-clássica (veja-se a silhueta que tanto lembra as formas egípcias) sustenta-se na fuga à figuração humana evidente para esculpir o divino.

84 Lembremo-nos que Luiz Cunha, o arquitecto do templo, é mestre nos cânones de enfatização do altar: talvez a obra em que mais eloquentemente se observa esta questão seja a sua intervenção, não sem que despertasse acesa polémica, na capela-mor da Sé de Viseu.

85 Como deixámos explicado no estudo elaborado para a abertura da exposição “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia”, no âmbito do Congresso Internacional – Fátima para o Século XXI, a escultura de Luísa Leite retomou o seu lugar de origem nos inícios de 2008. Veja-se Fátima, lugar da iconografia mariana, em Actas do Congresso Internacional – Fátima para o Século XXI (no prelo).

86 Informações colhidas por Luciano Coelho Cristino em colóquio com o artista. Desse colóquio, o director do Serviço de Estudos e Difusão da Mensagem de Fátima registou interessantes notas que conservou em ASF [Arquivo do Santuário de Fátima]-SESDI, Branco, Domingos Soares, 1J3.2.

87 Vemos verosimilhança nesta indicação porquanto, à época, o templo maior do santuário não tinha uma escultura artística de Nossa Senhora de Fátima, como aliás não chegou a ter. As imagens que, ao longo do tempo, ali estiveram eram esculturas de santeiros, salientando-se uma peça que actualmente se encontra na capela de São José que se mostrava uma boa interpretação da Virgem Peregrina. Desde Dezembro de 2003, encontra-se, na peanha criada por Erich Corsépius, a primeira das esculturas do modelo da Virgem Peregrina, oferecida por D. José Alves Correia da Silva para essa peregrinação e coroada em 1947 pelo arcebispo de Évora (ver Voz da Fátima, 1947.06.13 e 1947.07.13) Segundo se lê numa notícia do jornal do santuário, também esta escultura começa a ter importância de relíquia e por isso se colocou em lugar de honra de modo a adquirir sacralidade, para a qual concorre também o facto de a escultura ser afastada da sua inicial função que era a de ser peregrina: “[...] a Reitoria do Santuário de Fátima entendeu que ela não deveria sair mais habitualmente, mas só por alguma circunstância extraordinária. Em Maio de 2000 foi colocada na exposição ‘Fátima Luz e Paz”, onde foi venerada por dezenas de milhares de visitantes. Passados três anos, mais precisamente no dia 8 de Dezembro de 2003, solenidade da Imaculada Conceição, a Imagem foi entronizada na Basílica do mesmo Santuário de Fátima, tendo sido colocada numa coluna junto do Altar Mor” (leia-se o texto de António Valinho, Nossa Senhora de Fátima Peregrina do Mundo, em “Voz da Fátima”, 2004.05.13, p. 1).

88 A ambiência deste quadro tem prolongamento em quatro outras telas, em forma de semitondos, colocadas nas capelas do transepto. Estas representam cenas relacionadas com a história dos videntes e com a história de Fátima (na capela tumular de Francisco, os pastorinhos e o episódio da mortificação corporal através da corda e D. José Alves Correia da Silva, o bispo de Nossa Senhora, lendo o reconhecimento eclesiástico da autenticidade das Aparições; na capela do túmulo de Jacinta, o papa em oração, segundo a visão de Jacinta e a pastorinha Jacinta com as ovelhas).

89 Esta última expressão encontra-se a finalizar a legenda publicada na badana da sobrecapa da Enciclopédia de Fátima. Nas palavras iniciais da mesma legenda a sobrecapa publica “a pintura de João de Sousa Araújo intitulada A Glorificação de Nossa Senhora de Fátima (Óleo, 1966, 3,00 x 4,00 m), actualmente no altar-mor da Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima”. Parece-nos antes tratar-se do esboço para a tela do mesmo altar-mor e não a pintura do retábulo do altar, como as dissemelhanças ao nível das asas do anjo, do coração e do rosário da Virgem, e dos pormenores de acabamento bem elucidam. Parece-nos, inclusivamente, que tal esboço tenha sido retocado de modo a avivar alguns elementos e, quiçá, até a introduzi-los, como é o caso do coração que não se encontra figurado na tela do retábulo-mor da basílica de Fátima.

90 Existe uma escultura, de pequenas dimensões, deste autor num dos espaços do Convento de São Domingos de Fátima.

91 E não apenas o Santuário de Fátima, como o Movimento da Mensagem de Fátima, que lhe solicitou a bandeira processional deste movimento assim como o lettering para papel e sobrescritos daquela Associação. Veja-se a descrição que operamos no catálogo Memórias. Sinais. Afectos…, n.º 461, p. 152.

92 Veja-se, na p. 643, de História da Arte Portuguesa, direcção de Paulo Pereira, Lisboa, Temas e Debates, 1997, terceiro volume, de Paulo Pereira, uma reprodução deste trabalho de Clara Menéres.

93 Com efeito, já em esculturas anteriores podemos encontrar estes mesmos elementos iconográficos, aos quais, no caso da imagem de Nossa Senhora de Fátima da paróquia da Senhora da Conceição do Porto, da lavra do escultor França, se somam até os elementos azinheira e pombas. Trata-se, obviamente, de uma escultura mais devocional e segundo os arquétipos das imagens de santeiros, o que mais uma vez vem demonstrar o tradicional caminho de a iconografia de Fátima chegar à arte sacra contemporânea de forma muito tardia.

94 Curiosamente, esta consciência de a Virgem aparecida na Cova da Iria ser a “mesma mulher que nas Bodas de Caná e em Fátima” intercede pela humanidade encontra-se muito vincada na Oratória comemorativa dos noventa anos das Aparições: veja-se o “libreto” Fátima, Sinal de Esperança para a Humanidade [Oratória comemorativa dos 90 anos das Aparições de Fátima], Fátima, Santuário de Fátima, 2007, p. 26: “É esta mesma mulher/ Que nas Bodas de Caná/ E em Fátima / Diz a toda a humanidade: ‘Fazei o que Jesus disser’ (Jo 2,5)”.

95 Não desenvolvemos o tema das figurações orientalizantes da Senhora de Fátima que tem um ponto importante no Ícone da Santa Mãe de Deus de Fátima, da igreja de Tsarskoe Selo (Pushkin-São Petersburgo), criado pelo ortodoxo russo Ivan Lvovich com a intervenção do Padre Aleksandr Burgos. Existe uma reprodução deste ícone no Santuário de Fátima, oferecida em Maio de 2007 (de Voz da Fátima, ano 85, n.º 1018, 2007.07.13, p. 2).

96 De tal forma era subtil, que não tardou a acentuação da cor deste cordeiro que, depois de alguns meses da inauguração, passou a vestir de branco.

97 Veja-se a documentação que a seguir se regista: “mãos erguidas e quando falava alargava os braços e mãos abertas” (DCF I, doc. 1, p. 8); “tinha as mãos erguidas” (doc. 2, p. 12); “mãos erguidas á cintura e abriam separando-as quando falava [...] umas contas brancas nas mãos seguras entre o dedo polegar e indicador” (doc. 3, p. 16); “as mãos estão postassobre o peito, com os dedos voltados para cima” (doc. 7, p. 50); “Tinha as mãos erguidas. Ás vezes tem as palmas voltadas para o céu” (doc. 11, p. 92); “[...] A Senhora apontou com o dedo para a banda onde está o sol” (doc. 16, p. 153); “Tinha as mãos postas, um pouco acima da cintura e d’ellas pendia um terço branco. Todas as vezes que fallava, separava as mãos, pouco mais ou menos, á distancia dos hombros” (doc. 31, pp. 257-258); “[...] trazia umas contas muito branquinhas penduradas nas mãos, que tinha erguidas á cintura, e que separava uma da outra, pouco mais ou menos á largura dos hombros, quando fallava á Lucia” (doc. 31, p. 269). É curioso que não se encontrem presentes as reflexões tidas pela Ir. Lúcia no respeitante ao Imaculado Coração de Maria (veja-se o que dizemos no ponto acerca dos esboços guardados nas Reservas do Museu do Santuário de Fátima), como bem se notam na posição das mãos da escultura da igreja da Senhora da Conceição do Porto.

98 Realmente é um gesto muito frequente. Dizemos algo sobre o mesmo no estudo O Vitral da Ressurreição da Igreja de São José de Coimbra. Exegese iconográfica da última obra de Augusto Nunes Pereira, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2004, p. 162, a propósito do gesto da figura de Cristo Ressuscitado.

99 Posição das figuras orantes da arte paleocristã, aqui apenas visível na mão direita da escultura. A escultura que atrás citámos de Irene Vilar, feita para uma praça de Alcochete, tem as mãos com a mesma ideia, mas inversamente colocadas: a esquerda mais ao alto e a direita dirigida ao solo e deixando cair um fino e longo rosário como se de grãos de areia se constituísse (veja-se o que dizemos em Memórias. Sinais. Afectos…, p. 161).

100 A solução, sendo próxima da que utilizou em 1993 Irene Vilar na estátua de Alcochete (veja-se Memórias. Sinais. Afectos…, p. 161), revela-se mais ostensiva, porquanto Pietrogrande faz um alto-relevo e Irene Vilar uma subtil incisão.

101 Transcrevem-se, na íntegra, os dois sonetos de Maria Feio sobre a escultura “Nossa Senhora de Fátima”, de António Teixeira Lopes, datada de 1931. Trata-se de dois textos insertos num pequeno opúsculo à maneira de pagela, de quatro páginas, com as dimensões de 7 x 12 cm. Apesar de as composições se referirem à escultura criada por Teixeira Lopes, a capa da pequena pagela tem como imagem a escultura da Capelinha das Aparições, criada por José Ferreira Thedim em 1920. Numa espécie de explicação introdutória, lê-se: ”Estes sonetos fôram feitos em expontanea inspiração no dia 13 de Julho de 1931, na Foz do Douro, após a visita ao atelier de Teixeira Lopes[,] Artista a quem ofereço a singela homenagem da mais profunda admiração. Maria Feyo”. Existe um exemplar na Biblioteca do Santuário de Fátima com a cota FCx 1931.09.

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Título2. Estudo para a pintura do Imaculado Coração de Maria, de Maria Henriqueta de Jesus Malheiro, 1946 (Museu do Santuário de Fátima, fotografia do Arquivo do Santuário de Fátima).
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Título5. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (reitoria do Santuário de Fátima), de António Teixeira Lopes, 1931 (fotografia do Arquivo do Santuário de Fátima).
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Título6. Escultura de Nossa Senhora de Fátima (igreja de Nossa Senhora de Fátima, Lisboa), de Leopoldo de Almeida, 1938 (fotografia de Alexandre Salgueiro).
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Marco Daniel Duarte, «A iconografia da Senhora de Fátima: da criação ex nihilo às composições plásticas dos artistas », Cultura, Vol. 27 | 2010, 235-270.

Referência eletrónica

Marco Daniel Duarte, «A iconografia da Senhora de Fátima: da criação ex nihilo às composições plásticas dos artistas », Cultura [Online], Vol. 27 | 2010, posto online no dia 29 maio 2013, consultado o 29 setembro 2022. URL: http://journals.openedition.org/cultura/338; DOI: https://doi.org/10.4000/cultura.338

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Onde fica a imagem original de Nossa Senhora de Fátima?

Hoje, a imagem original esculpida em 1947 está no Santuário de Fátima em Portugal e cinco réplicas idênticas viajam pelo mundo.

Quem fez a imagem de Nossa Senhora de Fátima?

José Ferreira Thedim (São Mamede do Coronado, 1892 - São Mamede do Coronado, 1971) foi um escultor português mais conhecido por ter realizado a estátua de Nossa Senhora de Fátima que se encontra na Capelinha das Aparições.

Qual é o 3º segredo de Fátima?

O terceiro segredo de Fátima inclui uma "previsão" do atentado contra João Paulo II, a 13 de Maio de 1981, de acordo com uma das interpretações possíveis do Vaticano anunciada na Cova da Iria pelo cardeal Sodano, em 2000.

O que dizer de Nossa Senhora de Fátima?

Logo, Nossa Senhora de Fátima se refere à aparição de Maria, mãe de Jesus, na cidade portuguesa de Fátima.