Quais características em conjunto remetem exclusivamente ao simbolismo?

O simbolismo russo, uma poética do desencontro


Biagio D’Angelo1


Resumo:
O tema desse artigo é a poesia simbolista russa. Trata-se de uma poesia pouco conhecida fora dos países da Europa Central, apesar do grande esforço tradutório feito no Brasil especialmente pelo reconhecido estudioso Boris Schnaiderman. No simbolismo observamos uma poética que chamamos “do desencontro”.  Com efeito, se o símbolo parece abrir-se a uma perspectiva menos sombria, a palavra poética se dirige quase a uma pura sonoridade, um fluxo que de-semantiza o significado intrínseco para designar um som, uma sensação, um desengano.

Palavras-chave:
Poesia; simbolismo; literatura russa; poética.

Abstract:
The paper's theme is the Russian Symbolist Poetry. It is a not well known poetry, out of Central European countries, although – especially in Brazil – the important scholar Boris Schnaiderman has devoted great efforts to its diffusion. In the Symbolism, we observe a poetics that we have called “a poetics of the desencounter”. Actually, if symbol seems to open to a less obscure perspective, the poetic word aims at an almost pure sonority, a flux de-semantizing the own significance in order to designate a sound, a sensation, a deception (a “desencounter”).

Key-words:
Poetry; symbolism; Russian literature; Poetics.


A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
(Charles Baudelaire, « Correspondances ». Trad. Ivan Junqueira)

Viver do presente eu não posso,
Amo o turbamento dos meus sonhos
(Konstantin Balmont, “Vento”)


Acomodar ou reduzir um movimento ou uma corrente literária – aquilo que chamamos, por conveniência, com os termos de “-ismo” – é uma operação arbitrária e, com freqüência, discutível. Porém, no caso do simbolismo russo estamos frente a uma exceção. Georges Nivat, um dos maiores pesquisadores de literatura russa, e especialmente, do simbolismo, afirma que ele foi “a principal escola artística (não apenas poética) do século XX na Rússia, sendo todo o resto, em certo sentido, desvio ou posteridade” (1989, p. 75).
Se, ao contrário da experiência das literaturas européias ocidentais, o decadentismo foi uma experiência estética posterior ao simbolismo, no caso russo, ele precedeu o simbolismo, sob forma de um egocentrismo desenfreado que teve no poeta Fiodor Sologúb o representante mais emblemático, muito próximo das atitudes de Gabriele D’Annunzio e Joris-Karl Huysmans.
Todavia, a grande novidade – se assim podemos chamá-la – do simbolismo russo foi a renascença de uma forte experiência religiosa que determinou a famosa definição de Nikolai Berdiaiev de uma poesia do “século de prata” (seriébrannyi vek). Essa busca filosófico-religiosa, característica do simbolismo russo, e que teve em figuras controvertidas e polimorfas como Innokenti Ánnenski, Konstantin Balmont e Valieri Briussov alguns dos poetas mais relevantes, se metamorfoseou numa terceira fase quase apocalíptica. A experiência religiosa se transformou, com efeito, em messianismo e catastrofismo; a poesia pura começou a beirar o nacionalismo mais perigoso; o advento da revolução de Outubro foi acolhido como o novo advento messiânico; a sofisticação da lírica se uniu ao zeitgeist dos poetas malditos franceses que se esforçavam para fazer coincidir as penas e os incômodos da vida real com os excessos e os fascínios indisfarçáveis de uma existência provocativamente inventada.
Nenhuma escola ou movimento ou corrente literária foi tão comentada quanto o simbolismo. Os próprios poetas tornaram-se maîtres-à-penser do período. Basta pensar no importante artigo de 1903 “O simbolismo como concepção do mundo” (Simvolizm kak miroponimanie), de Andrei Biély, ou as intervenções de Aleksandr Blok, Viatcheslav Ivánov e, em certo sentido, também Dmitri Mierejkovski. Escreve Georges Nivat: “Transformando a crítica e a teoria literária em uma língua poética, o simbolismo elimina pouco a pouco os limites entre a criação e a reflexão sobre a criação (...) e tende à elaboração de um texto só e único, em que reine a refração” (1989, p. 87).
A poesia simbolista russa oscila entre o devaneio do sonho – como vimos na epígrafe de Balmont, que resume toda uma concepção do Ser, que proclama vitorioso um torpor contra uma realidade intolerável – e entre uma poética noturna, feita de mortes, bruxas, pesadelos, sadismos e masoquismos. Trata-se de um tom mórbido que passará, em alguns autores, para uma filosofia negativa e pessimista, como no mesmo Balmont. Em Sologub, por exemplo, a realidade é fonte de mal. A natureza, herança de um romantismo anglo-saxônico em que a Morte é o único ponto de certeza, mostra o seu lado de madrasta cruel e sanguinária. Ao mesmo tempo, se a vida é tão monstruosa e cinicamente percebida, ela é também espera de uma novidade, talvez de uma revolução, em que a feiúra assume as categorias de Beleza, numa espécie de imitação de Baudelaire. Com uma diferença enorme: se o simbolismo – ou as “correspondências” – de Baudelaire tinha como pressuposto um idealismo de fundo, filosófico, poético, o simbolismo russo possui um leque de aspirações talvez mais amplo e concreto: trata-se, de fato, de um simbolismo mais realista, mítico, religioso – sem religiões dogmáticas – dionisíaco, e, em outros termos, comunional (sobornost é o termo recorrente nos panfletos explicativos dos teóricos simbolistas).
A teoria principal do simbolismo religioso russo consiste no fato de que toda a realidade aspira a uma unidade identificada com a visão feminina da “Sofia” – conforme as idéias filosóficas de Vladimir Solovióv: o mundo caminha até a sabedoria última de Deus, que se manifesta com Cristo em sua divina-humanidade.
Contudo, a teoria de Solovióv, que muito fascinou os poetas simbolistas, sobretudo, por exemplo, o Viatcheslav Ivánov de Cor ardens, uma coletânea de poesias inesquecíveis e arcaizantes, não ficou exclusivamente mística, mas se amalgamou com uma tendência irônica que terá no “palhaço” e no “profeta” os seus tropos preferidos (Balaganchik, “A barraquinha da feira”, de Aleksandr Blok é um belo exemplo dessa atmosfera).
Este simbolismo possui uma unidade própria, fundamental: “ele deu vida a uma soberba poesia erótica e mística, criando em Rússia aquela poesia cortês que Rússia nunca teve, nem aquela Idade Média, quando os trovadores (lidos atentamente por Blok) criaram no Ocidente o amor cortês, nem no pré-Renascimento, quando Dante e Petrarca canonizaram o gênero” (1989, pp. 89-90). Os Versos sobre a Belíssima Dama, de Aleksandr Blok são, nesse sentido, um obra extraordinária, que imita a lírica medieval e renova eroticamente o amor e a mulher poética numa liturgia laica e insana. À Ljubov Dmitrievna Mendeleieva, a belíssima mulher de Blok, vista como a reencarnação terrestre da Nossa Senhora, se pode acrescentar a Esposa do Cântico dos Cânticos, “La Belle Dame sans merci”, de Alain Chartier, invocada também por John Keats, e novamente a figura virginal de Nossa Senhora, em um delírio de imagens teológicas e ambíguas que a poesia russa não tinha conhecido antes.

No templo de naves escuras,
Celebro um rito singelo.
Aguardo a Dama Formosura
À luz dos velários vermelhos.

À sombra das colunas altas,
Vacilo aos portais que se abrem.
E me contempla iluminada
Ela, seu sonho, sua imagem.

Acostumei-me a esta casula
Da majestosa Esposa Eterna.
Pelas cornijas vão em fuga
Delírios, sorrisos e lendas.

São meigos os círios, Sagrada!
Doce o teu rosto resplendente!
Não ouço nem som, nem palavra,
Mas sei, Dileta – estás presente.

(Do ciclo Versos sobre a Bela Dama, 1902)
(Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

É uma poesia platônica revestida de modernidade, uma ponte para o Infinito que supera a tragédia do cotidiano, sublimando-a em um universo inexistente e fantasioso. O símbolo, assim realizado, isto é, teologicamente, é sempre um vínculo que a casta poética sabe utilizar para alcançar o além da consciência individual, ultrapassando assim as fronteiras reduzidas do visível e do presente. A palavra poética assume, desta forma, a capacidade de ser sortilégio, a miraculosa verificação que aproxima o Poeta do mundo supra-sensível. Nasce, assim, uma fraternidade poética que engloba também pintores como Vrúbel’ e músicos como Skriabin. Em todos eles, reinava a consciência de que, como dizia Biély, a arte era a via mais breve para a religião, onde a palavra “religião” era sistematizada etimologicamente: uma relação correspondente entre o mundo terreno e o celeste.
“Aleksandr Blok – escreve Regina Zilberman, ao comentar o poema que abre os Versos sobre a Bela Dama – lida com figuras surreais, de cunho onírico, que liberam o texto poético do cotidiano e das situações rotineiras” (1999, p. 156). Ela tem razão em observar que o único ponto de convergência dessa rarefação espiritualista fica sempre o sujeito lírico, que se desdobra em uma reflexão e refração narcísica perigosa e fechada. Interessante, também, a esse propósito, ver uma comparação com o poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens:

Também Alphonsus de Guimaraens esmerou-se no estabelecimento desse ambiente de coloração religiosa, em que se celebra um ritual, tendo por objeto de culto uma figura feminina.  O tema, que poderia escorregar para o erótico, neutraliza a sexualidade por intermédio da descrição do espaço, fechado e sombrio, iluminado tão-somente por velas, mais de uma vez citadas. O amor pela mulher torna-se adoração de um ideal distante, presente, mas inalcançável, logo, puro e virginal (1999, p. 157)

Resulta, sem dúvida, curiosa essa proximidade entre o simbolismo russo e o simbolismo brasileiro. Não se trata apenas de um zeitgeist, como dissemos em precedência, o que isolaria a comparação a um mero processo instintivo ou casual. Ao contrário, trata-se de um processo estudado pela teoria da literatura comparada. Tânia Carvalhal sintetiza a relação estreita e profícua entre o conceito de comunidade interliterária, proposto pelo comparatista eslovaco Dionyz Durišin, e uma renovada perspectiva da intertextualidade que não se atem exclusivamente ao diálogo semântico-textual:

A ampliação e mesmo complementação das propostas de Even Zohar, contidas em Papers for Historical Poetics (1978/1981), que reúne estudos dos anos 1970, pode ser dada pelos estudiosos de Bratislava, liderados por Dionýz Durišin, que desenvolveram a noção de “comunidades interliterárias”, visando ao estabelecimento de um sistema teórico e metodológico coerente para as relações literárias. As investigações de Durišin e de seus colaboradores não querem apenas identificar os conjuntos históricos das literaturas e das unidades literárias, históricas e analógicas do passado, como conjuntos supranacionais, mas intentam definir conceitos e categorias que possibilitem interpretar melhor as relações que asseguram sua conformação e continuidade. A constituição dessas comunidades interliterárias é de natureza múltipla, condicionada por fatores variados, que podem ser geográficos políticos, lingüísticos, de proximidade de parentesco ou mesmo de analogia de procedimentos artísticos. Além disso, “as comunidades interliterárias não existem nem se desenvolvem isoladamente, mas através de uma interação variável com seu contexto”. Por isso, cada literatura nacional pode tornar-se, ao longo de seu desenvolvimento histórico, um componente de várias comunidades interliterárias, não se constituindo essas em sistemas fechados ou invariáveis. Essa proposta teórica nos permite reavaliar noções como a da literatura nacional, examinando-a em suas articulações com outras literaturas (2003, pp. 83-85).

A comparação com as literaturas européias ocidentais é ainda mais evidente e produziu inúmeros textos teórico-críticos que têm fundamentado as divergências, mas também, os pontos em comum, entre as poéticas simbolistas russa e francesa, especialmente.
Na experiência russa é possível, com efeito, observar também um simbolismo blasfemo e wildiano, em que o demônio está sempre presente, devastando corpos e mentes, mas também um simbolismo com uma veia altamente metafísica – quase um regresso às idéias filosóficas medievais – e um matiz melancólico, de incerteza às vezes infantil. Poder-se-ia dizer que o dandy inglês ou francês sofreu, na Rússia, uma metamorfose original e utópica: ele tornou-se profeta e juiz de seu tempo.
Nesse sentido, os poetas simbolistas russos tentarão realizar o sonho utopista de enumerar – numa biblioteca colossal, digna do famoso conto de Borges – todo o saber da humanidade, particularmente, aquele saber que forma e fundamenta uma filosofia total das culturas, melhor se relacionada com o universo do ocultismo. Com efeito, para os simbolistas, a poesia tem que ter a missão e a tarefa de revelar (mas sempre para poucos eleitos) uma magia provocada pelo poeta-xamã. Esse poeta funciona como mensageiro “hermético” que une o homem com o mundo superior, das essências, das idéias ainda não completamente reveladas. Dai se desprende uma famosa afirmação de Viatcheslav Ivánov sobre o símbolo, entendido como material metafísico por excelência: o símbolo – segundo Ivánov – é e deve transformar-se em mito, passando da “realibus ad realiora”, das coisas reais às coisas mais reais. Nisso se tornou o projeto simbolista da poesia do “século de prata”.

***

Quando Aleksandr Blok morreu, “puro cisne”, como escreverá Anna Akhmátova, com pouco mais que quarenta anos, também os poetas mais detratores dirão que a poesia russa tinha perdido a sua voz mais genuinamente mística. Marina Tsvetáieva que re-escreveu, à sua maneira, de Blok um ciclo inspirado a Carmen, reinventa o símbolo poético incluído no próprio sobrenome “Blok”:

  Versos a Blok

  Na mão – um pássaro que cala,
Teu nome – pedra de gelo na fala.
Um movimento de lábios, só.
Teu nome – quatro sons.
Uma bola em vôo apanhada,
Um guizo na boca, de prata.

Um seixo, atirado num lago calmo,
Soluça assim, como te clamo.
Ao leve tropel do casco noturno
Alto teu nome responde.
E o gatilho a estalar soturno
Lembra-o, em nossa fonte.

Teu nome – ah, não consigo!
Teu nome – um beijo no ouvido.
No gelo morno de pálpebras rígidas,
Da neve é o beijo no mundo.
É um gole de fonte, azul e frigido.
Em teu nome, o sono é profundo.2
(15 de abril de 1916)

A lírica de Blok se caracteriza pelo paradoxo da presença de elementos dissonantes e a confusão quase surrealista de imagens que se repetem como as máscaras, a tempestade de neve, as ruas desertas, as prostitutas, os palhaços, os sósias – mistério da eternidade e da repetibilidade do Ser – e, finalmente, a trivialidade à qual o herói lírico sente-se atraído poderosamente.
Blok poderia ser confundido com um poeta ingênuo, adolescente, estetizante, cujos dramas são resolvidos pela hipóstase poética da Belíssima Dama, figura divina, Eterno feminino e ponte carnal que sublima a realidade banal e insulsa. Pelo contrário, os poetas, que seguiram – como Akhmátova e Tsvetáieva, já mencionadas – e que apreciaram Blok nas qualidades de um cantor original e moderno, souberam reconhecer nele uma poética que poderíamos definir do “desencontro”: o desejo de harmonia, de completude, da perfeição se mescla, em uma posição dicotômica, com o onírico, com a percepção de uma realidade cruel e sofrida, uma dês-harmonia que representa o aspecto mais inovador da poética blokiana. Essa dês-harmonia liga a experiência estética de Blok à grande tradição filosófica da poesia russa do Romantismo, especialmente Fiodor Tiutchev: nela – isto é, nessa dês-harmonia –  consiste a busca incessante de um além que resgate as misérias da existência terrena e o desejo nostálgico de uma união pessoal, tanto física quanto psíquica, que nem a Belíssima Dama conseguiu outorgar ao Poeta. Essa combinação quase surrealista – entre o bêbado e o equilibrista, poderíamos dizer, tomando emprestado as letras de João Bosco – é visível numa pequena composição que todos os russos conhecem de cor:

Noite. Fanal. Rua. Farmácia.
Uma luz estúpida e baça.
Ainda que vivas outra vida,
Tudo é igual. Não há saída.

Morres – e tudo recomeça,
E se repete a mesma peça:
Noite – rugas de gelo no canal.
Farmácia. Rua. Fanal.

(Do ciclo Dança de morte, 1912)

Efim Etkind, um dos maiores especialistas de poética e versificação russa, escreve que no breve lapso de quinze anos, Blok conseguiu “criar um novo sistema poético, de excepcional força e originalidade, que se apresenta, ao mesmo tempo, unitário e fragmentário. Unitário, porque os seus fatores principais ficam invariáveis ao largo dos quinze anos; fragmentário, porque a obra de Blok se divide em vários períodos que pareceriam negar-se reciprocamente” (1989, p. 159). Etkind continua: “O princípio unitário sobre que se fundamenta a poética de Blok se reduz à afirmação da existência de dois mundos: por meio da obra poética, dedicada ao que está próximo, transparece o que está distante” (1989, p. 160). Sinteticamente, essa é uma ulterior definição da poética simbolista, em que resulta evidente que a divisão fortemente dicotômica dos universos espiritual e terreno faz perder qualquer rastro de matéria, de objetualidade, de densidade corporal. O espírito é tão dominante e paira tão sufocante, que também em certas líricas onde o símbolo parece abrir-se a uma perspectiva menos sombria, a palavra poética quase se dirige à pura sonoridade, um fluxo que de-semantiza o significado intrínseco para designar um som, uma sensação, um desengano.

Fábrica

No prédio há janelas citrinas.
E à noite – quando cai a noite,
Rangem aldravas pensativas,
Homens aproximam-se afoitos.

E os portões fechados, severos;
Do muro – do alto do muro,
Alguém imóvel, alguém negro
Numera os homens sem barulho.

Eu, dos meus cimos, tudo ouço:
Ele os chama, com voz de aço,
Costas curvas, sofrido esforço,
O povo aglomerado embaixo.

Eles hão de entrar à porfia,
Hão de pôr às costas o fardo.
Riso nas janelas citrinas:
Tapearam os pobres-diabos.
(1903)
(Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)


A poética do desencontro caracteriza, portanto, a nosso ver, a perspectiva simbolista russa, e talvez não só da poesia russa. Queremos dizer, nesse sentido, que os pressupostos simbolistas – ligados a uma poética de superação das barreiras do cotidiano trivial por meio de uma “entrada” metafísica (ad realiora, como vimos) – fracassam frente ao tempo e às circunstâncias que decretaram a falência da utopia simbolista. Se, por exemplo, em Blok, como propõe Etkind, “o léxico e o estilo se baseiam na distinção entre material e espiritual”, e que “a tarefa do poeta consiste na superação do limite da linguagem, isto é, no conduzir a linguagem fora dos confins da realidade” (1989, p. 163), a poesia simbolista, enfatizando a diferença entre o fenomênico e o noumênico, separa definitivamente a possibilidade de acesso ao mundo superior. O mundo das idéias fica numa paradoxal e utópica contradição. A metáfora se dilui e a linguagem que está adormecida – como diria Viktor Zhirmunski – “se transforma em uma realidade poética” (1977, p. 206). E, poderíamos ousar: só numa realidade poética. Claro que não é pouca coisa. Porém, a autonomia da palavra poética e da linguagem simbolista desembocará, por isso, em uma excessiva simbolização de fatos e eventos nacionais extraordinários, pecando, às vezes, de ideologização e de deslumbramento adolescêncial, como no caso da revolução leninista. Só grandes poetas como o Aleksandr Blok de Os Doze (1918) souberam “não evitar as contradições lógicas com o significado real, material das palavras” para logo “sublinhar a discordância e criar a impressão do irracional, do surreal, do fantástico” (Zhirmunski, 1977, p. 213).
“A vida é vazia, louca e sem fundo”, escreve Blok nos “Passos do Comendador”, uma lírica que retoma, com veemência, o tema da morte e da ausência de sentido a partir do mito de Dom Juan. Quando o simbolismo não tem receio de indagar nos espaços escuros interiores, como é o caso do romance de Andrei Biély, São Petersburgo (1916), em que o símbolo representa uma realidade corroída pela dúvida existencial, então é aí que ele pode ser ainda lido modernamente, filosoficamente, sem sofrer o passo do tempo.

***
Se, com Blok, desaparece “o último poeta do século XIX e o primeiro do século XX” (Etkind, 1989, p. 169), com Andrei Biély estamos frente a um dos mais extraordinários “gêiseres de palavras” (1989, p. 131) de toda a literatura russa, como o definiu Georges Nivat.
As visões simbolistas de Biély são ambíguas. Sua musicalidade é crepuscular e nostálgica, cheia de imperfeições, eclipses, ausências, aliterações, repetições, vórtices de sons, ritmos e dores.

Canção para guitarra

Eu
Estou nas palavras
Tão morbidamente
Mudo:
Minhas sentenças são
Máscaras.
E –
Falo
A vós todos –
– Falo
Fábulas, -
– Porque –
Assim me foi designado,
A razão -
Não a entendo; -
– Porque –
Há tempos tudo se foi no escuro,
Porque – tudo é igual:
Quer eu
Saiba ou não saiba.
Porque só há tédio em toda parte,
Porque a fábula é de esmeralda,
Onde -
Tudo é outro.
Porque há esta avidez dos borrifos
Do prazer;
Porque a difícil
Existência
Para todos
– Tem um só desenlace.
Porque –
– Em suma, -
– Para que
Este inferno?
Porque –
– Para todos
Há um só fim.
E me rompe este riso
Do
Destino
De todos –
– E –
– De
Mim.
(1922) (Tradução de Augusto de Campos)

Burla

No
Vale
Uma vez
Em sonho

Ante
Vós
Eu, -

Velho
Tolo, -

A
Tocar
Mandolina.

Vós
Ouvíeis
Atento.

E –
- O Antigo Zodíaco.

Um dia
Surraram-me
E
Me
Expulsaram
Do
Circo

Em
Farrapos
E
Em
Sangue,
A clamar –
- Por Deus!
- Deus!
- Deus!

E
Pelo –

- Amor universal.

Vós
Por acaso
Encontrastes
O palhaço
Cantante.

Parastes
Para escutar
O canto.

Vós –
Observastes

O barrete
De bufão.

Vós –
Dissestes
Convicto:

- “Este
É o caminho
Da iniciação...”

Vós –
Em sonho
Mirastes

O –
- Zodíaco.
(1915) (Tradução de Augusto de Campos)

A palavra

Na febre de som
Do sopro
A trave é flama-fala.

Lá fugindo da laringe,
A terra exala.

Expiram
As almas
Das palavras não-compostas.

Deposita-se a crosta
Dos mundos que nos portam.

Sobre o mundo formado
Paira a profundidade
Das palavras proferíveis.

Profundamente ora
A palavra das palavras, Sarça viva.

E do futuro
Paraíso
Alça-se a serra adunca

Por onde em chamas, consumido,
Não passarei: nunca.
(1917) (Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)


As palavras poéticas de Biély são mágicas, encantadas, e parecem pertencer a um antigo mundo teosófico feito para iniciados. Elas são fluidas, líquidas, misteriosas e íntimas, ao mesmo tempo. Elas representam também uma superação do simbolismo necrófilo e demasiadamente místico de Balmont e Briussov, porque querem reconstruir uma palavra viva, sem as complicações intelectualistas de Mallarmé, mas uma palavra originária, cuja essência está em se revelar (e desvelar) um mundo alheio, externo, desvinculado ao terrestre, mas ligado ao aquém. Quase um aspecto esotérico que é percebido como um processo poético que serve para a construção da realidade e da linguagem pura.
Porém, essa busca da pureza lingüística, quase infantil, em seu surgir automática e plenamente simbólica (a realibus ad realiora) não é um processo apaziguador; ao contrário, a poética do “desencontro” entre a harmonia desejada e a dês-harmonia encontrada se corrobora da dúvida sobre o próprio símbolo. O símbolo não fecha mais, na produção poética e narrativa de Biély. Ele já não remete a uma realidade que completaria o significado inicial e o desgaste a que ele foi submetido na vivência da banalidade quotidiana. O símbolo, em vez de unir (etimologicamente, símbolo é sym-ballein, proposta de uma unidade subjacente às coisas e aos fenômenos), desta vez indica sua divisão, sua diabolicidade (como se sabe, “diabo” é o contrário etimológico de símbolo). Subterraneamente, a poética de Biély é uma patologia da dúvida sobre o símbolo. É a exaltação da dês-harmonia, da corrosão da unidade, é o delírio da possessão maléfica do nada, o pesadelo de uma vida que não poderá nunca ser unida, nem por meio da poesia.
Nesse sentido, o simbolismo russo se desintegra rapidamente para passar ao acmeismo, cuja formula será o elogio da equivalência, do “A=A”. Já o leitor não encontrará jogos cerebrais, visões místicas ou eróticas, sadismos ou manias auto- destruidoras. O simbolismo, porém, não se conclui com um desaparecimento: ele continua na linguagem angustiada da poesia sucessiva, que será obrigada a dar conta do estreito relacionamento entre a política e o ser intelectual por causa dos acontecimentos que mudaram o curso dos anos vinte. Pasternak, Essiênin, Mandelstam – que são diversos entre eles e mais ou menos distantes e polêmicos com o simbolismo – não existiriam sem a herança deixada por Blok e Biély, sinal de que a “poética do desencontro” corresponde mais aos tormentos que a literatura do século XX será chamada a testemunhar.


BIBLIOGRAFIA
Campos, Augusto de – Campos, Haroldo de – Schnaiderman, Boris. Poesia russa moderna. São Paulo: Perspectiva, 2001.
Carvalhal, Tânia. O próprio e o alheio. Ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
Etkind, Efim – Nivat, Georges – Serman, Ilya – Strada, Vittorio (orgs). Storia della letteratura russa. Vol. III. Il Novecento. Dal decadentismo all’avanguardia. Torino: Einaudi, 1989.
Zhirmunski, Viktor. Teoria literaturi. Poetika. Stilistika. Izbrannie trudi. Leningrad: 1977.
Zilberman, Regina. “Uma visão da poesia russa”. In: Poesia sempre. Revista semestral de poesia, Ano 7, número 10. Rio de Janeiro, 1999, pp. 152-183. 

1. Universidade Católica de Budapeste, PPKE

2. A tradução desse poema é de Aurora F. Bernardini. Cf. Marina Tsvetáieva, Indícios flutuantes. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. XLVII-XLVIII.

Quais são as principais características do Simbolismo?

As principais características do Simbolismo são elementos místicos e transcendentais, subjetividade, musicalidade e presença de figuras de linguagem como a sinestesia. Essas características do Simbolismo se referem a linguagem e ao estilo de escrita feitas pelos escritores simbolistas.

Qual das opções abaixo expressam características do Simbolismo?

Alternativa correta: b) subjetivismo, pessimismo e misticismo. O simbolismo foi um movimento literário que surgiu no final do século XIX na França.

O que representa o Simbolismo?

Simbolismo é um substantivo masculino que significa um sistema de símbolos ou forma de expressão que utiliza símbolos para indicar fatos e ideias. Além disso, simbolismo também é o nome de um movimento literário que teve início no final do século XIX.

Quais as principais características do Simbolismo autores e obras?

O Simbolismo surgiu na França, com a publicação do livro As flores do mal (1857), de Charles Baudelaire (1821-1867). De maneira geral, possui as seguintes características: misticismo, musicalidade, rigor formal, uso de reticências, valorização do mistério, maiúscula alegorizante e sinestesia.