Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?

Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?
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Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?
Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?
Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?

O que � oTRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?

Comiss�o de Direitos Humanos
C�mara dos Deputados
fevereiro de 2000


APRESENTA��O

            Uma das principais lutas travadas pela Comiss�o de Direitos Humanos da C�mara dos Deputados no �mbito internacional tem sido a campanha pela cria��o do Tribunal Penal Internacional (TPI). Em 1999 essa meta foi perseguida com a realiza��o de diferentes eventos e articula��es. Representantes da Comiss�o defenderam a aplica��o mais efetiva do princ�pio da justi�a universal por meio da cria��o de um tribunal penal permanente, capaz de se sobrepor �s jurisdi��es internas de cada pa�s. Esta nova jurisdi��o, � preciso ressaltar, n�o � estrangeira, mas internacional, da qual todo Estado-Parte � titular. Ao admitir essa jurisdi��o, n�o estaremos, portanto, sacrificando nada de nossa soberania nacional, mas complementando nossos esfor�os para a efetiva��o dos direitos humanos t�o valorizados em nossa Constitui��o.

Os tribunais tempor�rios ad hoc criados ap�s conflitos j� instaurados, como o de Nuremberg, que julgou os criminosos da II Guerra Mundial, e mais recentemente, o de Ruanda e o da Ex-Iugusl�via, para apreciar os crimes ocorridos na B�snia e Kosovo diferem-se do TPI. Este ser� permanente e com jurisdi��o para todos os pa�ses membros da ONU. Processar� e julgar� pessoas f�sicas que tenham cometido crimes graves como o de genoc�dio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agress�o.

A globaliza��o ora em curso no campo econ�mico demanda a correspondente globaliza��o no campo dos Direitos Humanos. E a efetiva��o universal dos direitos humanos requer inst�ncias jur�dicas capazes de julgar os violadores dos direitos da pessoa humana. A import�ncia deste Tribunal � manifesta principalmente num momento em que o mundo assiste ao ressurgimento de conflitos armados em decorr�ncia de quest�es �tnicas e religiosas.

Se j� existisse esta Corte Penal Internacional, o ex-general Augusto Pinochet, respons�vel por uma das ditaduras mais sanguin�rias da Am�rica Latina, seria certamente um dos r�us submetidos � jurisdi��o internacional. Em setembro de 1973, o ex-general  deu in�cio a um golpe militar contra o Chile do governo socialista Salvador Allende, que culminou na morte de 3.197 militantes de esquerda. A barb�rie durou 15 anos, sem que a justi�a chilena condenasse os culpados respons�veis pelo golpe e viola��es que se sucederam. Foi preciso que outros pa�ses tomassem a iniciativa em punir, visto que, pela jurisdi��o interna, os crimes cometidos ficariam anistiados e prescritos, dadas as conting�ncias pol�ticas do Chile.

Ao que pese a idade avan�ada e a sa�de debilitada do ex-ditador, a pris�o de Pinochet em Londres e sua extradi��o significou um passo importante para demonstrar a relev�ncia de uma justi�a internacional,  imparcial e forte, que consiga fazer os direitos humanos soprepujarem o direito interno de cada pa�s. Se a justi�a nacional n�o pune seus criminosos, h� de haver uma justi�a no plano internacional capaz de priorizar os valores da vida, liberdade e democracia. Desta forma, o Tribunal representar� um expressivo avan�o, um freio a inibir o surgimento de carrascos e ditadores e um meio de punir os que surgirem.

Obviamente, a jurisdi��o ser� incidente em casos raros, quando o pa�s demonstrar omiss�o em processar os acusados e desrespeitar a legisla��o penal e processual interna.

Em julho de 1998, na Confer�ncia Diplom�tica de Plenipotenci�rios das Na��es Unidas, em Roma, foi aprovado o Estatuto do Tribunal, o qual estabelece as condi��es de funcionamento desta jurisdi��o criminal internacional. O Estatuto define as regras e princ�pios em que o futuro Tribunal ir� funcionar. 

 O Brasil, atrav�s de seu corpo diplom�tico, mesmo antes desta confer�ncia j� participava de uma Comiss�o Preparat�ria para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional e teve atua��o destacada no processo de cria��o deste Tribunal. Podemos dizer que nossos representantes internacionais tudo fizeram para colocar em pratica o art. 7� do Ato das Disposi��es Constitucionais Transit�rias, da Constitui��o Federal, que preceitua: "O Brasil propugnar� pela forma��o de um tribunal internacional dos direitos humanos".   

            No final de 1999, a Comiss�o de Direitos Humanos da C�mara dos Deputados se fez representar, por este presidente, na terceira reuni�o da Comiss�o Preparat�ria para o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional na sede da ONU, em Nova Iorque. Convidado por uma organiza��o-n�o governamental internacional, a "Parliamentarians For Global Action", participamos desse  importante evento em que debatemos como as legisla��es nacionais devem se adaptar � nova jurisdi��o internacional. Voltamos convictos de que os �bices que t�m sido apresentados nesse sentido podem facilmente ser removidos, caso haja vontade pol�tica para fazer prevalecer os valores e princ�pios maiores, derivados da Declara��o Universal dos Direitos Humanos e claramente contemplados pela nossa Constitui��o.

            Este, ali�s, foi o entendimento geral observado na Audi�ncia P�blica realizada pela Comiss�o de Direitos Humanos em 2 de fevereiro de 2000. Representantes dos organismos de Estado ligados aos direitos humanos, bem como os parlamentares e ativistas presentes, n�o opuseram barreiras para a harmoniosa adapta��o de nosso ordenamento jur�dico � jurisdi��o da nova corte internacional.

            Em 7 de fevereiro de 2000 o Brasil assinou o tratado referente ao estatuto de Roma. Em breve, o Congresso Nacional dever� apreciar a futura ratifica��o. Estaremos dando um passo hist�rico decisivo na evolu��o dos Direitos Humanos.

Deputado Nilm�rio Miranda
Presidente da Comiss�o de Direitos Humanos

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PARA UMA MELHOR COMPREENS�O DO PAPEL DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

            O leitor ter�, a seguir, tr�s artigos extremamente instrutivos, cada qual com uma abordagem espec�fica, �teis para uma melhor compreens�o do papel a ser exercido pelo Tribunal Penal Internacional. O hist�rico dos debates que culminaram na estrutura��o da proposta do Estatuto do TPI, suas bases jur�dicas e suas fun��es, bem como a not�vel participa��o brasileira nas reuni�es preparat�rias est�o a� relatados com confiabilidade por algumas das principais autoridades no assunto.

            A Dra. Sylvia H. F. Steiner � desembargadora federal, especialista em Direito Penal pela UnB e mestre em Direito Internacional pela USP, al�m de membro do Instituto Brasileiro de Ci�ncias Criminais e da Associa��o Ju�zes para a Democracia.

            O professor Tarciso Dal Maso Jardim � especialista em Direito Internacional. Ele participou, como observador representante do Movimento Nacional de Direitos Humanos, da Confer�ncia Diplom�tica das Na��es Unidas, em Roma, em 1998, quando foi aprovado o Estatuto do Tribunal.

            O professor Ant�nio Paulo Cahapuz de Medeiros, por sua vez, � consultor jur�dico do Minist�rio das Rela��es Exteriores e doutor em Direito Internacional pela USP. Ele chefiou as delega��es brasileiras �s Reuni�es da Comiss�o Preparat�ria do Tribunal Penal Internacional.

            A Comiss�o de Direitos Humanos solicitou aos tr�s professores artigos que resumem palestras por eles pronunciadas em audi�ncia p�blica acerca do tema, os quais transcrevemos a seguir.

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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E A CONSTITUI��O BRASILEIRA
Ant�nio Paulo Cachapuz de Medeiros

                                    O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional � uma conven��o multilateral, celebrada com o prop�sito de  constituir um tribunal internacional, dotado de personalidade jur�dica pr�pria, com sede na Haia.

            O Estatuto comp�e-se de pre�mbulo e treze partes (I-estabelecimento do Tribunal; II-compet�ncia, admissibilidade e direito aplic�vel; III-princ�pios gerais de Direito Penal; IV-composi��o e administra��o do Tribunal; V-inqu�rito e a��o penal; VI-processo; VII-penas; VIII-recurso e revis�o; IX-coopera��o internacional e aux�lio judici�rio; X-execu��o da pena; XI-Assembl�ia dos Estados Partes; XII-financiamento; XIII-cl�usulas finais), com um total de 128 artigos.

                        O pre�mbulo proclama a determina��o dos Estados em criar um Tribunal Penal Internacional, com car�ter permanente e independente, complementar das jurisdi��es penais nacionais,  que exer�a compet�ncia sobre indiv�duos, no que respeita aos crimes mais graves que afetem o conjunto da comunidade internacional.

                        Esses crimes, que n�o prescrevem, s�o os seguintes: crime de genoc�dio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agress�o. O Tribunal s� ter� compet�ncia relativamente aos referidos crimes cometidos ap�s a entrada em vigor do Estatuto. Se um Estado se tornar Parte no Estatuto depois da sua entrada em vigor, o Tribunal s� poder� exercer a sua compet�ncia em rela��o aos crimes cometidos depois da entrada em vigor do Estatuto nesse Estado.

                        Segundo o Estatuto, o Tribunal ser� pessoa de Direito Internacional e ter� a capacidade jur�dica necess�ria ao desempenho de suas fun��es e � realiza��o de seus objetivos. Seu v�nculo �s Na��es Unidas se dar� mediante um acordo, a ser aprovado pela Assembl�ia dos Estados Partes no Estatuto  e assinado pelo Presidente do Tribunal em nome deste.

                        Inicialmente, o Tribunal Penal Internacional ser� integrado por 18 ju�zes, n�mero que poder� ser aumentado ou diminu�do por proposta do Presidente, mediante aprova��o da Assembl�ia dos Estados Partes. � esta tamb�m que eleger� os ju�zes, de nacionalidades diferentes, para um mandato de nove anos, vedada a reelei��o. No primeiro escrut�nio, um ter�o dos ju�zes ser� eleito para mandato de tr�s anos, um ter�o para mandato de seis e um ter�o para mandato de nove anos. Um juiz eleito para mandato de tr�s anos ou para prover vaga em per�odo igual ou inferior a tr�s anos, poder� ser reeleito para mandato completo de nove anos. Os ju�zes ser�o independentes no desempenho de suas fun��es.

                        O Tribunal ser� composto pelos seguintes �rg�os: a) A Presid�ncia; b) Uma Se��o de Recursos, uma Se��o de Primeira Inst�ncia e uma Se��o de Quest�es Preliminares; c) o Gabinete do Promotor; d) a Secretaria.

                        Destaca-se na composi��o do Tribunal a figura do Promotor, que ser� eleito em escrut�nio secreto por maioria absoluta de votos pela Assembl�ia dos Estados Partes, para mandato de nove anos, vedada a reelei��o. Caber� ao Promotor recolher comunica��es e qualquer outro tipo de informa��o, devidamente corroborada, sobre crimes da compet�ncia do Tribunal, a fim de os examinar, investigar e de exercer a a��o penal junto ao Tribunal. Cumprir� suas fun��es com toda a imparcialidade e liberdade de consci�ncia, assim como os juizes.

                        Os Estados Partes no Estatuto dever�o cooperar plenamente como Tribunal na investiga��o e no julgamento de crimes de sua compet�ncia, bem como assegurar-se de que seu Direito Interno preveja procedimentos aplic�veis a todas as formas de coopera��o especificadas no Estatuto.

                        O Tribunal decidir� sobre a n�o admissibilidade de um caso, se este for objeto de inqu�rito ou de processo no Estado que tiver jurisdi��o sobre o mesmo, salvo se este n�o estiver disposto a levar a cabo a investiga��o ou o processo ou n�o tiver capacidade para o fazer; ou se o caso tiver sido objeto de inqu�rito pelo Estado que tiver jurisdi��o sobre o mesmo e este decidiu n�o continuar a a��o penal contra a pessoa em causa, a menos que esta decis�o resulte do fato de que esse Estado n�o est� disposto a levar a cabo o processo ou da sua incapacidade para o fazer; ou a pessoa em causa tiver sido j� julgada pelo comportamento a que se refere a den�ncia; ou o caso n�o for suficientemente grave que justifique a ado��o de outras medidas pelo Tribunal.

                        Para determinar se um Estado demonstra ou n�o vontade de agir em um determinado caso, o Tribunal verifica se o processo foi instaurado ou est� pendente, ou se a decis�o nacional foi adotada com o prop�sito de subtrair a pessoa em causa � sua responsabilidade penal por crimes da compet�ncia do Tribunal; se houve demora injustificada no processo que, dadas as circunst�ncias, seja incompat�vel com a inten��o de fazer comparecer a pessoa em causa ao Tribunal; ou, se o processo n�o foi ou n�o est� sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, mas de uma maneira que, dadas as circunst�ncias, seja incompat�vel com a inten��o de fazer comparecer a pessoa em causa ao Tribunal.

                        Acima de tudo, a fim de determinar a admissibilidade de um caso, o Tribunal verifica se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administra��o nacional da Justi�a ou indisponibilidade desta, n�o est� em condi��es de fazer comparecer em ju�zo o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necess�rios, ou n�o est�, por outros motivos, em condi��es de concluir o processo.

                        O Estatuto confere ao Conselho de Seguran�a das Na��es Unidas a faculdade de solicitar ao Tribunal, mediante resolu��o aprovada nos termos do disposto no Cap�tulo VII da Carta da ONU, que n�o inicie ou que suspenda, por um prazo n�o superior a doze meses, o inqu�rito ou o processo que tiver sido iniciado. O pedido pode ser renovado por per�odos iguais e o Tribunal fica obrigado a n�o iniciar o inqu�rito ou a suspender o processo.

                        Existir� uma Assembl�ia dos Estados Partes, que se reunir� na sede do Tribunal ou na sede da ONU uma vez por ano, ou, extraordinariamente, sempre que as circunst�ncias o exigirem. Cada Estado Parte ter� um voto na Assembl�ia. Suas fun��es concentram-se no estabelecimento de linhas de orienta��o geral no que toca � administra��o do Tribunal e no exame e aprova��o do or�amento do mesmo.

                        As despesas do Tribunal ser�o financiadas pelas quotas dos Estados Partes e pelos fundos provenientes da ONU.

                        O Estatuto veda expressamente a possibilidade de sua ratifica��o com reservas.

                        Est� aberto � assinatura de todos os Estados na sede da ONU, em Nova York, at� 31 de dezembro de 2000.

                        Entrar� em vigor no primeiro dia do m�s seguinte ao termo de um prazo de 60 dias ap�s a data do dep�sito do sexag�simo instrumento de ratifica��o, de aceita��o, de aprova��o ou de ades�o junto ao Secret�rio-Geral das Na��es Unidas.

                        Sete anos ap�s a entrada em vigor do Estatuto, o Secret�rio-Geral das Na��es Unidas convocar� uma Confer�ncia de Revis�o, para examinar eventuais altera��es ao texto.

                        Est�o ainda pendentes de aprova��o os �elementos dos crimes�, que ajudar�o o Tribunal a interpretar e aplicar as regras do Estatuto que tipificam os crimes; as �regras de processo e prova�; e a defini��o do �crime de agress�o�. Os �elementos dos crimes� e as �regras de processo e prova� ser�o objeto de aprova��o por maioria de dois ter�os da Assembl�ia dos Estados Partes. Por isso, continua em atividade a PrepCom, visando preparar esses componentes essenciais ao funcionamento do Tribunal.

                        A cria��o de um tribunal internacional permanente para processar e julgar indiv�duos acusados de cometer graves crimes que constituam infra��es ao pr�prio Direito Internacional � genoc�dio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agress�o � constitui antiga aspira��o da sociedade internacional.

                        Os atentados hediondos praticados contra a dignidade do ser humano durante a Segunda Guerra Mundial exigiram que fossem institu�dos os tribunais de Nurembergue e de T�quio. Recentemente, o Conselho de Seguran�a das Na��es Unidas, com a participa��o e o voto favor�vel do Brasil, impulsionou a cria��o de mais dois tribunais criminais tempor�rios: um para julgar as atrocidades praticadas no territ�rio da antiga Iugosl�via e outro para julgar crimes de id�ntica gravidade cometidos em Ruanda.

                        N�o obstante a consci�ncia coletiva de que atos monstruosos contra a humanidade merecem a devida puni��o, os tribunais acima mencionados n�o ficaram imunes � cr�ticas contundentes em virtude de seu car�ter tempor�rio. Referindo-se ao Direito Internacional Penal, Celso de Albuquerque Mello assevera no seu Curso de Direito Internacional P�blico: �� de se salientar que este Direito � extremamente fraco devido � aus�ncia de uma justi�a internacional penal�.[1]

                        O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional pretende suprir essa lacuna apontada pelos maiores expoentes da doutrina do Direito Internacional.

                        Uma das principais qualidades do Estatuto reside na afirma��o do princ�pio da responsabilidade penal de indiv�duos pela pr�tica de delitos contra o Direito Internacional. Situar o indiv�duo como  sujeito de direitos e deveres no plano internacional constitui id�ia corrente desde os tempos em que Hugo Grotius lan�ou as bases do moderno Direito das Gentes. O grande jurista holand�s divergiu da no��o corrente no s�culo passado � com vertentes ainda vivas na atualidade � de que o Direito Internacional deve restringir-se a disciplinar as rela��es entre os Estados. A evolu��o acelerada da prote��o internacional dos Direitos Humanos ap�s a Segunda Guerra Mundial conduziu a profundas altera��es sobre o papel do indiv�duo no cen�rio internacional, enfatizando , primeiramente, os direitos, e, a seguir, os deveres individuais. Destarte, a id�ia de que os indiv�duos devem ser responsabilizados no plano internacional em virtude de crimes contra o pr�prio Direito das Gentes n�o � nova. O Estatuto de Roma agrega, por�m, um contexto surpreendente.  Pela primeira vez �s defini��es dos crimes, um tratado internacional acrescenta princ�pios gerais de Direito Penal e claras regras de Processo Criminal.  Esse acr�scimo supre lacuna das Conven��es de Genebra de 1949, sempre criticadas por terem dado muito pouca aten��o �s normas substantivas e adjetivas da Ci�ncia Jur�dica Penal.

                        Na Confer�ncia de Roma, realizada entre 15 de junho e 17 de julho de 1998, que resultou na ado��o do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, a delega��o brasileira foi chefiada pelo Embaixador Gilberto Sab�ia, com ampla experi�ncia em negocia��es multilaterais.

                        Segundo Roy S. Lee, pesquisador imparcial, que recentemente publicou a extensa obra �The International Criminal Court � The Making of the Rome Statute� (The Hague: Kluwer, 1999), o Brasil �permanentemente expressou seu firme apoio ao estabelecimento da nova jurisdi��o. Durante a Confer�ncia, coordenou dois grupos informais de negocia��es sobre t�picos relevantes para o futuro funcionamento do tribunal. Um desses grupos dedicou-se aos poderes do Promotor, particularmente aos poderes �ex-officio�. O outro grupo examinou a quest�o capital das armas arroladas na defini��o de crimes de guerra�.[2]

                        Ao final da Confer�ncia, o Brasil somou-se aos 120 Estados que votaram a favor da ado��o do Estatuto  de  Roma  ( houve 7 votos contr�rios e 21 absten��es).

                        Nas palavras do Subsecret�rio-Geral de Assuntos Pol�ticos do Itamaraty, Embaixador Ivan Cannabrava, em depoimento � Comiss�o de Rela��es Exteriores e Defesa Nacional da C�mara dos Deputados, no dia 20 de maio do corrente ano, �no entendimento do Governo brasileiro, o texto aprovado cont�m os elementos necess�rios ao estabelecimento de uma Corte penal eficiente, imparcial e independente�.

                        Pelo �ngulo do ordenamento constitucional brasileiro, os pontos contidos no Estatuto de Roma que merecem considera��o, com vistas a afastar qualquer hip�tese de incompatibilidade com o texto da Lei Suprema de 1988, s�o os seguintes: entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional; pena de pris�o perp�tua; imunidades em geral e relativas ao foro por prerrogativa de fun��o.

                        Segundo o art. 58 do Estatuto de Roma, ap�s iniciada uma investiga��o e se o Promotor requerer, poder� ser expedido um mandado de pris�o pela C�mara de Quest�es Preliminares, sempre que esta estiver convencida de que existe base razo�vel para acreditar que o acusado tenha efetivamente cometido um crime sob a jurisdi��o do Tribunal e a pris�o for necess�ria para que o acusado compare�a em ju�zo. Com base no mandado de pris�o da C�mara de Quest�es Preliminares, o Tribunal poder� requerer ao Estado Parte no Estatuto ou a pris�o provis�ria do acusado ou a pris�o e entrega do acusado.

                        � essencial para que se garanta a efetiva administra��o da Justi�a Penal Internacional que esta tenha a faculdade de determinar que os acusados da pr�tica dos crimes reprimidos pelo Estatuto sejam colocados � disposi��o do Tribunal. Seria in�til o esfor�o de criar o Tribunal Penal Internacional caso n�o se conferisse ao mesmo o poder de determinar que os acusados sejam compelidos a comparecer em ju�zo.

                        O Estatuto de Roma fixou um regime de coopera��o entre os Estados Partes e o Tribunal Penal Internacional, fundamental para a viabilidade e o �xito da institui��o. Os Estados Partes est�o obrigados a cooperar plenamente com o Tribunal na investiga��o e no julgamento dos crimes previstos no Estatuto. Integra este dever de coopera��o a obriga��o de prender e entregar os acusados ao Tribunal. Para assegurar que o Direito Interno facilite a capacidade do Estado para atender �s solicita��es do Tribunal, o Estatuto requer que os Estados Partes garantam que no Direito Interno existam procedimentos aplic�veis a todas as formas de coopera��o especificadas no Estatuto (art. 88, IX). Os Estados devem ser capazes de proporcionar ao Tribunal uma coopera��o expedita, sujeita a menos formalidades do que usualmente se aplica � coopera��o judici�ria entre Estados.

                        Importante sublinhar que o Tribunal Penal Internacional n�o ser� uma jurisdi��o estrangeira, mas uma jurisdi��o internacional, de cuja constru��o o Brasil participa, e ter�, portanto, um v�nculo muito mais estreito com a Justi�a nacional.

                        Segundo o art. 89, 1, do Estatuto, os Estados Partes cumprir�o os pedidos de pris�o e entrega segundo os procedimentos do Estatuto e do Direito Interno. Por conseguinte, os procedimentos nacionais para pris�o de indiv�duos continuar�o sendo aplicados, mas eventuais princ�pios e normas sobre privil�gios referentes a cargos oficiais e de n�o-extradi��o de nacionais n�o ser�o causas que desculpem a falta de coopera��o dos Estados Partes.

                        Por isso, o Estatuto distingue claramente entre extradi��o de um Estado para outro e entrega de um Estado para o Tribunal.

                        A diferen�a fundamental consiste em ser o Tribunal uma institui��o criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de uma forma justa, independente e imparcial. Na condi��o de �rg�o internacional, que visa realizar o bem-estar da sociedade mundial, porque reprime crimes contra o pr�prio Direito Internacional, a entrega ao Tribunal n�o pode ser comparada � extradi��o.

                        Ademais, uma das principais causas da n�o-extradi��o de nacionais � a id�ia de que n�o haver� imparcialidade na Justi�a estrangeira � n�o se aplica ao Tribunal Penal Internacional, porque neste os crimes est�o nitidamente cominados no Estatuto, suas normas processuais s�o as mais avan�adas do Mundo e qualquer tend�ncia a politizar o processo ser� controlada por garantias rigorosas.

                        Logo, a previs�o de entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional, estabelecida no Estatuto de Roma, n�o fere, salvo melhor ju�zo, o artigo 5�, LII, da Constitui��o da Rep�blica, que prescreve que �nenhum brasileiro ser� extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturaliza��o, ou de comprovado envolvimento em tr�fico il�cito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei�.

                        J� o artigo 77 do Estatuto de Roma prev� a pena de pris�o perp�tua quando justificada pela �extrema gravidade do crime e as circunst�ncias pessoais do condenado�, enquanto o artigo 5�, XLVII, �b�, da Constitui��o da Rep�blica, estabelece que n�o haver� penas de car�ter perp�tuo.

                        A Constitui��o p�tria prev� at� mesmo a pena de morte em caso de �guerra declarada� (art. 5�, XLVII, �a�), mas pro�be a pena de car�ter perp�tuo.

                        Contudo, na vig�ncia da Constitui��o de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem deferido extradi��es, sem ressalva, para Estados onde est� prevista a pena de pris�o perp�tua para os crimes imputados aos extraditandos. Entende o pret�rio excelso que a esfera da nossa lei penal � interna. Se somos benevolentes com �nossos delinq�entes�, isso s� diz bem com os sentimentos dos brasileiros. N�o podemos impor o mesmo tipo de �benevol�ncia� aos Pa�ses estrangeiros.

                        A proibi��o constitucional da pena de car�ter perp�tuo restringe apenas o legislador interno brasileiro. N�o constrange nem legisladores estrangeiros, nem aqueles que labutam na edifica��o do sistema jur�dico internacional.

                        No momento hist�rico em que foi promulgada a Constitui��o brasileira vigente (1988) n�o existia o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998). N�o poderia, pois, o constituinte ter se debru�ado sobre a quest�o da pena de pris�o perp�tua aplicada por tribunal internacional. Mas a Constitui��o foi s�bia, porque sustentou o princ�pio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Rep�blica brasileira ( art. 1�, III) e propugnou pela forma��o de um �tribunal internacional de direitos humanos� ( ADCT, art. 7�).

                        Parece-me, pois, convincente a tese que sustenta que a colis�o entre o Estatuto de Roma e a Constitui��o da Rep�blica, no que diz respeito � pena de pris�o perp�tua, � aparente, n�o s� porque aquele visa a refor�ar o princ�pio da dignidade da pessoa humana, mas porque a proibi��o prescrita pela Lei Maior  � dirigida ao legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jur�dica p�tria, e n�o aos crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos por jurisdi��o internacional.

                        A quest�o, ainda assim, � pol�mica, merecendo maiores e mais profundas reflex�es. Embora o Estatuto de Roma n�o admita a possibilidade de ser ratificado com reservas, poder-se-ia estudar a elabora��o de uma declara��o interpretativa a ser efetuada por ocasi�o da ratifica��o.

                        Finalmente, as imunidades em geral e as prerrogativas de foro por exerc�cio de fun��o s�o os pontos que talvez menos pol�mica despertem. Crimes de guerra, contra a humanidade, genoc�dio, agress�o - constituem delitos quase sempre praticados � sombra de autoridades que segundo o ordenamento interno de seus Pa�ses desfrutam de prerrogativa de foro ou de imunidades.

Poderia um genocida alegar prerrogativa de foro porque exercia uma fun��o p�blica ? Certamente n�o, na �tica do Direito Internacional.


[1] Mello, Celso de Albuquerque. Curso de Direito Internacional P�blico. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. 10 ed. 2� vol. p. 766.

[2] p. 577-78.

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O Tribunal Penal Internacional e sua Import�ncia para os Direitos Humanos
Tarciso Dal Maso Jardim

A cria��o do Tribunal Penal Internacional � TPI: marco diplom�tico

              O TPI foi criado na �Confer�ncia Diplom�tica de Plenipotenci�rios das Na��es Unidas sobre o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional�, realizada na cidade de Roma, entre os dias 15 de junho a 17 de julho de 1998. Precisamente, essa cria��o ocorreu no �ltimo dia da Confer�ncia, mediante a aprova��o do Estatuto do Tribunal (�Rome Statute of the International Criminal Court�, doravante Estatuto), que possui a natureza jur�dica de tratado e entrar� em vigor ap�s sessenta Estados manifestarem o consentimento em vincularem-se ao TPI (art. 126 do Estatuto), de acordo com suas normas de compet�ncia interna para a celebra��o de tratados.

              Haveria alguma previs�o para o Tribunal come�ar suas atividades? Evidentemente, n�o podemos prever, mas apenas lembrar que a Conven��o de �Montego Bay�, sobre o direito do mar, tamb�m previa o quorum de sessenta Estados e levou doze anos para entrar em vigor (de 1982 a 1994). Cremos que o Estatuto do Tribunal pode entrar em vigor em um per�odo bem inferior a doze anos, principalmente pela atua��o das Organiza��es N�o-Governamentais e pelo clamor internacional diante incessantes atentados � consci�ncia da humanidade. Atualmente, seis Estados ratificaram o Estatuto e noventa e quatro j� assinaram-no (o que significa que acordaram com o texto final do mesmo e ir�o submet�-lo a procedimentos internos que objetivam o comprometimento do Estado em rela��o a esse tratado). O Brasil, no �ltimo dia 7 de fevereiro, justamente foi o nonag�simo quarto Estado a assinar.

              Com futura sede em Haia � Holanda (art. 3� do Estatuto), o Tribunal ter� personalidade jur�dica internacional, podendo exercer sua capacidade jur�dica para o exerc�cio de suas fun��es e para a manuten��o de suas finalidades (art. 4� do Estatuto), o que inclui a possibilidade de celebrar tratados com outras organiza��es internacionais ou com Estados.

2. A import�ncia do TPI

              Desde o fim da Primeira Guerra Mundial pretende-se consagrar a responsabilidade penal internacional, quando o Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo julgamento do Kaiser Wilhelm II, por ofensa � moralidade e � inviolabilidade dos tratados, e o Tratado de S�vres, jamais ratificado, previa a responsabilidade do Governo Otomano pelo massacre dos arm�nios. As raz�es para essa pretens�o n�o eram imparciais ou universais, mas unilaterais, fundadas em um crit�rio principal: s� o vencido pode ser julgado. Esse crit�rio tamb�m seria o institu�do, de maneira preliminar, pelo Acordo de Londres (�London Agreement�[1]) e pelo �Control Council Law N. 10�[2] ao estabelecerem o chamado Tribunal de Nuremberg. Com isso, evidentemente, n�o se pretende defender que n�o houvesse o julgamento de nazistas como Hermann G�ring, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Erich Raeder, entre os 24 primeiros a serem julgados (a partir de 20 de novembro de 1945, sob a �gide do �London Agreement�), ou o julgamento de m�dicos que produziam experi�ncias em campos de concentra��o, entre os outros 185 indiv�duos julgados, nos pr�ximos 12 julgamentos que seguiram (sob a �gide do �Control Council Law N. 10�). Tamb�m n�o se pretende abonar japoneses julgados pelo segundo Tribunal Militar Internacional[3] institu�do ap�s a Segunda Guerra Mundial[4]. Defende-se, ao contr�rio, a inexist�ncia de seletividade na condu��o de julgamentos e atitudes internacionais, bem como lembrar que o princ�pio da reciprocidade n�o deve ser aplicado na esfera da prote��o internacional da pessoa humana. Assim, os respons�veis pelo lan�amento de armas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki ou pela manuten��o dos �Gulags� deveriam, tamb�m, serem julgados, al�m de outros criminosos de ambos os lados.

              Um ano antes da �ltima sess�o do Tribunal do Jap�o, a Assembl�ia Geral das Na��es Unidas solicitou � CDI, mediante a resolu��o n� 177 (II), de 21 de novembro de 1947, que formulasse os princ�pios de direito internacional reconhecidos pelos instrumentos e julgamentos do Tribunal de Nuremberg, bem como preparar um �draft� de C�digo de ofensas contra a paz e seguran�a da humanidade. Em 1950 a CDI adotou a formula��o desses princ�pios, submetendo � Assembl�ia Geral, e em 1954 submeteu o projeto de C�digo, sendo esse �ltimo inviabilizado por n�o haver acordo sobre a defini��o de agress�o � resolu��o n� 897 (IX) de 4 de dezembro de 1954. O consenso sobre a defini��o de agress�o s� aconteceria vinte anos depois, com a resolu��o da Assembl�ia n� 3314 (XXIX), de 14 de dezembro de 1974, mas a viabilidade pol�tica da instala��o da responsabilidade penal s� seria realidade no final do s�culo XX, ap�s muitos relat�rios e resolu��es. Entretanto, importantes instrumentos internacionais sobre essa tem�tica foram elaborados nessa segunda metade de s�culo, como, por exemplo, a �Conven��o para a Preven��o e a San��o do Delito de Genoc�dio� (1948), as quatro Conven��es de Genebra sobre o direito humanit�rio (1949) e seus dois protocolos adicionais (1977), a �Conven��o sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa Humanidade� (1968) e os �Princ�pios de Coopera��o Internacional para Identifica��o, Deten��o, Extradi��o e Castigo dos Culp�veis de Crimes de Guerra ou de Crimes de Lesa Humanidade� (1973).

              Mas, afinal, qual a import�ncia desse longo processo de formula��o de um Tribunal Penal Internacional permanente? Em resposta � essa indaga��o, a ONG nova-iorquina �Lawyers Comittee for Human Rights� apontou seis pontos. Primeiro, acabar com a impunidade dos grandes violadores dos direitos da pessoa humana, em termos repressivos e preventivos. Segundo, proporcionar a reconcilia��o social e a tranq�ilidade e confian�a �s v�timas, suas fam�lias, e � comunidade afetada, mediante a investiga��o e o julgamento dos respons�veis pelos crimes internacionais. Terceiro, sanar poss�veis insucessos de Cortes Nacionais, que deixam impunes os criminosos, principalmente quando esses s�o autoridades pol�ticas ou militares, o que se verifica com freq��ncia em casos de crimes de guerra ou de desestrutura��o do sistema legal interno. Quarto, remediar limita��es pol�ticas e jur�dicas inerentes aos tribunais internacionais criminais ad hoc, como a instala��o em alguns casos e n�o em outros, o vi�s pol�tico das escolhas do Conselho de Seguran�a para instaura-los (al�m do questionamento de sua autoridade para tanto) e o perigo do excesso de tribunais instaurados (�tribunal fatigue�), sem consist�ncia na interpreta��o e aplica��o do direito internacional, j� que s�o criados para um situa��o espec�fica e com um corpo de juizes distinto. Quinto, criar um mecanismo com poder para condenar pessoas que ofendem gravemente os direitos humanos e o direito humanit�rio. E, por fim, o sexto ponto seria tornar o Tribunal Penal Internacional um modelo de justi�a penal e de julgamento justo, constituindo um patamar institucional (�standard-setting institution�) para a implementa��o interna ou internacional das normas de prote��o da pessoa humana[5].

              Os pontos argumentativos levantados pelo �Lawyers Comittee� s�o de extrema pertin�ncia, mas a efic�cia das argumenta��es depender� de uma s�rie de fatores, como a dificuldade de atingir a ratifica��o universal do Estatuto. Creio, independente disto, que a cria��o do TPI, mediante a participa��o equ�nime dos Estados em uma confer�ncia internacional e n�o por ato unilateral do Conselho de Seguran�a ou de vencedores de conflitos, � um marco na hist�ria do direito internacional  e da diplomacia. Trata-se, realmente, de uma oportunidade de acabar com a seletividade na determina��o de quem s�o os criminosos; de eliminar de forma definitiva o argumento de compet�ncia nacional exclusiva em mat�ria de prote��o internacional da pessoa humana; de evitar ou sancionar o terrorismo estatal em mat�ria de direitos humanos e de direito humanit�rio, geralmente aliciados por atos de poder internos, como repress�o militar ou leis de anistia; de constituir no plano internacional, na mat�ria em tela, um suporte aos m�todos de supervis�o e investiga��o e um aprimoramento dos sistemas de peti��o ou comunica��o; de representar o complemento dos sistemas regionais de direitos humanos (como o interamericano); de frear atitudes desumanas durante conflitos armados; de ser base para o princ�pio da legalidade ou simbolicamente representar o recha�o �s grandes viola��es � dignidade humana.

3. A diferen�a entre a jurisdi��o universal e a do TPI

              A jurisdi��o universal consiste, a princ�pio, na possibilidade de a jurisdi��o interna poder julgar crimes de guerra ou contra a humanidade cometidos em territ�rios alheios. Trata-se, portanto, de extraterritorialidade, que pode ser admitida em raz�o de o criminoso (ver art. 7�, II, b, do C�digo Penal brasileiro) ou as v�timas serem nacionais ou residentes (ver art. 7�, �3�, do CP), ou o local do crime possuir regime internacional (pirataria em alto mar, por exemplo, ver art. 7�, II, c, do CP), ou o crime atingir interesses nucleares do Estado (ver art. 7�, I, a, b e c, do CP) ou, por fim, se os fatos envolverem viola��es graves ao direito internacional, atingindo a consci�ncia universal (ver art. 7�, I, d, e II, a, do CP). A jurisdi��o universal seria a admiss�o desta �ltima hip�tese, independente se no crime est�o envolvidos nacionais ou interesses internos. No Brasil, o art. 7�, II, a, do CP seria express�o da jurisdi��o universal, ao admitir que est�o sujeitos � lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou conven��o, o Brasil se obrigou a reprimir.

              A jurisdi��o universal tem sido admitida desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando as cortes dos Aliados passaram a julgar os crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante o grande conflito (Austr�lia, Canad�, Israel, Reino Unido, por exemplo, julgaram muitas pessoas), sendo atualmente admitida para muitos outras situa��es. O caso recente mais c�lebre �, sem d�vida, o do general Pinochet, quando se admitiu que a tortura � um crime internacional e que a Conven��o contra a Tortura[6] conferiu jurisdi��o universal a seus Estados partes.

              Segundo a Anistia Internacional, a pr�tica da jurisdi��o universal pelos Estados seria de extrema import�ncia para preencher v�cuos deixados pelo Estatuto do TPI[7]. Lembre-se que o art. 12 do Estatuto consagrou, como condi��o pr�via ao exerc�cio da compet�ncia do TPI, a necessidade de ser parte do Estatuto (art. 12, 2, a) o Estado em cujo territ�rio, incluindo navios ou aeronaves por ele matriculados, teve lugar a conduta ou (art. 12, 2, b) o Estado a que perten�a o acusado do crime. Tais restri��es s� se aplicariam para as hip�teses de o Estado  comunicar ao Promotor uma situa��o que envolveria crimes, de compet�ncia do TPI (art. 13, a do Estatuto), ou o pr�prio Promotor instaure um inqu�rito (art. 13, c do Estatuto). Se for o Conselho de Seguran�a que comunicar ao Promotor uma situa��o, entretanto, tal ato estar� sob a �gide do cap�tulo VII da Carta das Na��es Unidas, o que significa abrang�ncia universal (n�o esque�a que tal poder possibilitou a cria��o dos tribunais ad hoc para Ruanda e Ex-Iugosl�via). Al�m disso, um Estado n�o Parte pode, mediante declara��o, aceitar a jurisdi��o do TPI para casos espec�ficos (art. 12, 3, do Estatuto).

              De qualquer forma, h� um v�cuo, pois o Conselho de Seguran�a age sob seletividade pol�tica. A proposta da Rep�blica da Cor�ia, n�o aprovada in toto na Confer�ncia de Roma, envolveria tamb�m as alternativas, como condi��o ao exerc�cio de jurisdi��o, de a v�tima ser nacional de um Estado Parte ou, ainda, se o suspeito estiver sob cust�dia em um Estado Parte. Entretanto, como tais alternativas n�o foram aprovadas, defende a Anistia Internacional a jurisdi��o universal.

              Ademais, o TPI � complementar �s jurisdi��es penais nacionais (pre�mbulo e art. 1� do Estatuto). A jurisdi��o n�o retroativa[8] do TPI est� submetida, em nome da complementaridade, a requisitos de admissibilidade. Esse mecanismo concede, como � de praxe no direito internacional, a oportunidade de as cortes internas solucionarem o caso de forma satisfat�ria. As autoridades e cortes nacionais ter�o a responsabilidade prim�ria de investigar e solucionar o caso. Entretanto, se o Estado n�o for capaz ou n�o esteja disposto a levar a cabo a investiga��o ou o processo, ou teve o prop�sito de n�o responsabilizar penalmente o acusado, o TPI poder� exercer sua jurisdi��o, desde que o caso seja grave (ver art. 17 c/c 20 do Estatuto). Na verdade, como veremos, a compet�ncia material do TPI gira somente sobre crimes considerados graves.

              Incapacidade ou impossibilidade para investigar ou processar determinado caso significa, segundo o par�grafo 3� do art. 17, que o Estado n�o pode, devido ao colapso total ou substancial de seu sistema judici�rio nacional ou por indisponibilidade deste, fazer comparecer o acusado, reunir os meios de prova e os depoimentos necess�rios ou n�o est�, por outras raz�es, em condi��es de levar a cabo o processo. J� a verifica��o da vontade de agir ou n�o, em determinado caso, depende de o processo ter o prop�sito de n�o responsabilizar penalmente a pessoa em quest�o por crimes de compet�ncia do TPI (impunidade); ou de demora injustificada no processo ou de aus�ncia de independ�ncia e imparcialidade, em ambos relevando as circunst�ncias f�ticas (par�grafo 2� do art. 17).

A compet�ncia material do TPI: da pol�tica da intencionalidade a conquistas parciais das Organiza��es N�o-Governamentais

4.1. Crime de genoc�dio

              O s�culo XX transborda viol�ncias contra massas. Como pontuou Hobsbawn,

�[...] o mundo acostumou-se � expuls�o e matan�a compuls�rias em escala astron�mica, fen�menos t�o conhecidos que foi preciso inventar novas palavras para eles: �sem Estado� (�ap�trida�) ou �genoc�dio�. A Primeira Guerra Mundial levou � matan�a de um incont�vel n�mero de arm�nios pela Turquia � o n�mero mais habitual � de 1,5 milh�o �, que pode figurar como a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma popula��o. Foi seguida depois pela mais conhecida matan�a nazista de cerca de 5 milh�es de judeus [..]�[9]

              Independente dos n�meros, que ainda permanecem em discuss�o, a destrui��o �tnica apavorou a humanidade. N�o � por acaso que o genoc�dio foi uma das principais preocupa��es ap�s a Segunda Guerra Mundial, sendo tal animus convertido em instrumento internacional em 9 de dezembro de 1948: a �Conven��o para a Preven��o e a San��o do Delito de Genoc�dio�[10]. Essa Conven��o, em seu Art. 2�, identifica o genoc�dio em qualquer ato, em tempo de paz ou de guerra[11], com a inten��o de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, �tnico, racial ou religioso, tal como o assassinato ou dano grave � integridade f�sica ou mental de membros do grupo; subjuga��o intencional do grupo a condi��es de exist�ncia que lhe ocasione a destrui��o f�sica total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e a transfer�ncia for�ada de crian�as do grupo para outro grupo.

              No estudo de especialistas sobre a implementa��o de instrumentos como a Conven��o Internacional sobre a Elimina��o e a Puni��o do Crime do Apartheid, incluindo a id�ia de estabelecer um tribunal internacional[12], divide-se os instrumentos conexos com essa Conven��o de 1973 em duas categorias. A primeira composta por instrumentos que declaram direitos humanos espec�ficos sob a �gide do direito internacional dos direitos humanos, como a Declara��o Universal dos Direito do Homem, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Pol�ticos e a Conven��o Internacional sobre a Elimina��o de Todas as Formas de Discrimina��o Racial. A segunda categoria englobaria conven��es que implicariam  criminalizar viola��es de direitos humanos nos direitos internos, investigar os violadores ou alternativamente prever a extradi��o; inclusive algumas considerando condutas como crime sob o direito internacional. Nessa �ltima categoria seriam exemplos as Conven��es de Genebra sobre o direito humanit�rio e a Conven��o de 1948 sobre o genoc�dio. Entretanto, as semelhan�as entre a Conven��o sobre o Apartheid de 73 e a do Genoc�dio de 48 n�o se concentram somente no fato de pertencerem a mesma categoria, segundo os �experts�, mas tamb�m por vaticinarem a cria��o de um tribunal penal internacional nos artigos V e VI respectivamente.

              Antes da Confer�ncia de Roma, apesar de um grande n�mero de delega��es apoiarem o conceito da Conven��o de 1948, houve a cr�tica de que essa tipifica��o era limitada. Primeiro, por n�o incluir a prote��o de grupos sociais e pol�ticos, ou de grupos destacados de um grupo, em que n�o h� homogeneidade (por exemplo, as elites culturais), embora houvesse o reconhecimento da conex�o dessa extens�o conceitual com Crimes de Lesa Humanidade. Outra sugest�o seria esclarecer, como elemento de caracteriza��o, a inten��o espec�fica de quem planeja ou decide da inten��o gen�rica ou conhecimento de quem comete atos de genoc�dio, pois a dificuldade da prova sobre esses elementos de intencionalidade concederia argumento a dirigentes ou a quem obedece ordens. Ent�o foi sugerido, de um lado, que �a inten��o de destruir um grupo, total ou parcialmente�, fosse considerada como sendo a inten��o concreta de destruir al�m de um grupo reduzido de pessoas, analisando-se a escala da ofensa ou o n�mero de v�timas. Ou, de outro lado, que a quest�o da intencionalidade fosse trabalhada genericamente para todos os crimes. Ademais, houve a observa��o a respeito de estender a id�ia da al�nea �e�, sobre a transfer�ncia de crian�as de um grupo a outro, tamb�m para transfer�ncias de pessoas em geral, n�o esquecendo de incluir a id�ia de membros de um grupo particular[13].

              De qualquer forma, por ser admitida como norma costumeira (id�ia consolidada na Corte Internacional de Justi�a[14]) e inclu�da em muitas legisla��es internas, durante as reuni�es preparat�rias a Confer�ncia de Roma o crime de genoc�dio foi discutido por representa��es governamentais com base na referida Conven��o. E as principais considera��es das delega��es acabaram sendo ligadas a clarifica��es de termos, como o significado de destrui��o �em parte� de um grupo, de les�es mentais  e de medidas destinadas a impedir nascimentos (sugeriu-se os termos �preventing births within the group�).[15]

              Entretanto, apesar dessas discuss�es, consagrou-se os termos da Conven��o de 1948 no artigo 6� do Estatuto, como uma esp�cie de presente pelo cinq�enten�rio da mesma.

4.2. Crimes de Lesa Humanidade

              A origem do termo �crimes against humanity�, aqui traduzido por Crimes de Lesa Humanidade, est� ligado, curiosamente, ao caso de genoc�dio dos arm�nios, provocado pelos turcos na Primeira Guerra Mundial, que Hobsbawn colocou como sendo a primeira tentativa moderna de eliminar toda uma popula��o. Refiro-me � Declara��o para o Imp�rio Otomano, feita pelos governos russo, franc�s e brit�nico em maio de 1915 (Petrogrado), qualificando o massacre como crimes da Turquia contra a humanidade e a civiliza��o.[16] Posteriormente, esse conceito de forma gradativa assume o car�ter de norma costumeira, de car�ter imperativo (jus cogens), reportando-se a graves viola��es da dignidade humana. O Tribunal de Nuremberg reconheceu esse tipo de viola��es, confirmado sobre a forma de princ�pio pela resolu��o da Assembl�ia Geral na resolu��o 95 (I) de 11 de dezembro de 1946.

              Em rela��o ao TPI, o �1�, do art. 7� do Estatuto, disp�e que por Crimes de Lesa Humanidade ter�amos os seguintes atos: a. assassinato; b. exterm�nio; c. escravid�o; d. deporta��o ou traslado for�ado de popula��es; e. encarceramento ou outra priva��o grave da liberdade f�sica em viola��o de normas fundamentais de direito internacional; f. tortura; g. viola��o, escravid�o sexual, prostitui��o for�ada, gravidez for�ada, esteriliza��o for�ada ou outros abusos sexuais de gravidade comparada; h. persegui��o de um grupo ou coletividade com identidade pr�pria fundada em motivos pol�ticos, raciais, nacionais, �tnicos, culturais, religiosos, de g�nero ou outros motivos universalmente reconhecidos como inaceit�veis pelo direito internacional, em conex�o com qualquer ato mencionado no presente par�grafo ou com qualquer crime de compet�ncia do Tribunal; i. desaparecimento for�ado de pessoas[17]; j. �apartheid�; k. outros atos desumanos de car�ter similar que causem intencionalmente grandes sofrimentos ou atentem gravemente contra a integridade f�sica ou � sa�de mental ou f�sica. Esses atos, para serem considerados como um Crime de  Lesa Humanidade, devem ser cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistem�tico contra uma popula��o civil e com o conhecimento de tal ataque, conforme prescreve o �1�, do art. 7� do Estatuto. J� o �2�, do mesmo artigo, aclara que por �ataque contra uma popula��o civil� entende-se uma linha de conduta que implique a comiss�o m�ltipla de atos, mencionados no �1�, contra uma popula��o civil, sendo tais atos cometidos ou promovidos por pol�ticas de um Estado ou de uma organiza��o.

              Esse conceito de Crime de Lesa Humanidade, cujos termos j� estavam presentes no pacote de acordos do dia 6 de julho de 1998, passou tamb�m por muitas controv�rsias. O Projeto Final de Estatuto sintetizava tais controv�rsias em duas op��es, repletas de colchetes. A primeira op��o afirmando que � crime de lesa humanidade qualquer dos atos (enumerados nas al�neas) que se cometam: [como parte da comiss�o generalizada [e] [ou] sistem�tica de tais atos contra qualquer popula��o]. E a segunda op��o: [como parte de um ataque generalizado [e] [ou] sistem�tico contra uma popula��o [civil] [em escala maci�a] [em um conflito armado] [por motivos pol�ticos, filos�ficos, nacionais, �tnicos ou religiosos ou por qualquer outro motivo arbitrariamente definido]. Os pontos espec�ficos, que estavam sendo discutidos sobre o conceito de crime de lesa humanidade, poderiam ser traduzidos nas seguintes indaga��es: Conceituar ou n�o o que se entende por �generalizado� e �sistem�tico�? Essa categoria de crimes seria aplicada para situa��es de paz e de guerra? Incluir ou n�o motiva��es para conceituar essa categoria de crimes?

              O conceito final, consagrado no Art. 7 do Estatuto, �, em parte, produto dessas controv�rsias. O conceito de �ataque contra uma popula��o civil�, exposto na al�nea �a�, do �2� do Art. 7, � a s�ntese dos conceitos de generalizado (�widespread�) e sistem�tico (�sistematic�) trabalhados nas reuni�es preparat�rias (ver, por exemplo, o Relat�rio do Comit� Preparat�rio, volume II, compila��o de propostas[18]). Por �generalizado� entendia-se o ataque maci�o em natureza e dirigido contra um grande n�mero de pessoas. Por �sistem�tico� entendia-se o ataque constitu�do, ao menos em parte, por atos cometidos ou promovidos por uma pol�tica ou um plano, ou por uma pr�tica repetida por um per�odo de tempo. Ora, o conceito de generalizado est� assegurado na chamada �comiss�o m�ltipla de atos� e, por sua vez, o conceito de sistem�tico est� consagrado no que se chamou de �linha de conduta� ou de �atos cometidos ou promovidos por pol�ticas de um Estado ou de uma organiza��o�. Ent�o, embora o conceito do �1�, do Art. 7 do Estatuto, enquadra o crime de lesa humanidade a partir de atos cometidos como parte de um ataque �generalizado� ou �sistem�tico�, na realidade deve ser entendido como parte de um ataque �generalizado� e �sistem�tico�, pois � o que se infere da al�nea �a�, do �2� do Art. 7 do Estatuto.

              Outra quest�o seria se tal crime ocorre em �poca de paz ou tamb�m em de guerra. Creio que a possibilidade de se cometer esse tipo de crime reporta-se a qualquer situa��o, desde que as v�timas sejam civis, e n�o militares. Para estes �ltimos, tem-se a prote��o em rela��o aos  crimes de guerra (Art. 8 do Estatuto). Embora o direito internacional n�o proteja somente militares fora de combate, seu plano de prote��o possui l�gica e n�veis diferentes da prote��o dos direitos humanos, no Estatuto representada especialmente pelo Crimes de Lesa Humanidade. Vejam que o Tribunal Penal Internacional significa um ponto de uni�o entre os direitos humanos e o direito humanit�rio, fato que tamb�m se comprova pela inclus�o, na compet�ncia desse Tribunal, dos crimes de guerra ocorridos em conflitos internos, e n�o somente em conflitos internacionais.

              A �ltima quest�o, diz respeito a motiva��es espec�ficas (pol�ticas, filos�ficas, de nacionalidade, �tnicas ou religiosas ou por qualquer outra arbitrariamente definida) que, felizmente, n�o foram inclu�das no Estatuto. Entretanto, tem-se no Art. 7 do Estatuto os indesej�veis termos �com o conhecimento do ataque�, no caso, generalizado ou sistem�tico contra uma popula��o civil. Seria o conhecimento do plano ou da pol�tica estatal ou de uma organiza��o? Seria o conhecimento de todos os crimes envolvidos na no��o de �generalizado�? Do nosso ponto de vista, esse conte�do do crime de lesa humanidade deve ser deslocado para a an�lise dos elementos subjetivos do crime. O Art. 30 do Estatuto, que versa sobre tais elementos de intencionalidade, determina que os elementos materiais do crime devem ser cometidos com inten��o e conhecimento, sendo esse �ltimo definido como a consci�ncia de que as circunst�ncias existem ou que a conseq��ncia ocorrer� no curso ordin�rio dos fatos.

4.3. Crimes de Guerra

              Os crimes de guerra s�o, sem d�vida, preocupa��es milenares que confluem, hoje, no estabelecimento de um TPI. Timothy McCormack, por exemplo, demonstra que desde o s�culo VI a.C., com o guerreiro chin�s Sun Tzu, h� preocupa��es com o comportamento dos beligerantes no conflito. O C�digo de Manu (direito hindu feito cerca de 200 a. C.), por exemplo, � emblem�tico ao fixar armas proibidas (como flechas envenenadas) ou pessoas que n�o deveriam ser mortas (como espectadores) [19].

              O Estatuto, em seu artigo 8, consagra esta longa evolu��o do direito internacional humanit�rio que, desde o s�culo passado, vem sendo impulsionado pelo Comit� Internacional da Cruz Vermelha.  Os crimes aqui mencionados s�o, primeiro, as chamadas �infra��es graves� consagradas nas quatro Conven��es de Genebra de 12 de agosto de 1949; segundo, outras viola��es graves a leis e costumes pertinentes a conflitos armados internacionais e, terceiro, viola��es graves em conflitos de car�ter n�o internacional.

              Para o primeiro grupo[20], as infra��es graves seriam: i. homic�dio doloso; ii. tortura ou tratamento desumano, inclusive as experi�ncias biol�gicas; iii. provocar grandes sofrimentos ou atentar gravemente contra a integridade f�sica ou a sa�de; iv. a destrui��o e a apropria��o de bens, n�o justificadas por necessidades militares e executadas de maneira il�cita e arbitr�ria; v. compelir um prisioneiro de guerra ou outro indiv�duo protegido a servir em for�as inimigas; vi. privar um prisioneiro de guerra ou outro indiv�duo  dos direitos de um imparcial e regular julgamento; vii. submeter � deporta��o, transfer�ncia ou confinamento ilegais e; viii. tomar ref�ns.

              Para o segundo, as viola��es seriam: i. dirigir ataques contra a popula��o civil enquanto tal ou civis que n�o participem diretamente das hostilidades; ii. dirigir ataques contra bens civis; iii. dirigir ataques contra pessoal, instala��es, material, unidades ou ve�culos participantes de uma miss�o de manuten��o da paz ou de assist�ncia humanit�ria, em conformidade com a Carta das Na��es Unidas; iv. lan�ar ataque sabendo que causar� perdas de vidas, les�es em civis ou danos a bens de car�ter civil ou danos extensos, duradouros e graves ao meio ambiente que sejam excessivos em rela��o � vantagem militar geral, concreta e direta prevista; v. atacar ou bombardear, por qualquer meio, cidades, aldeias, povoados ou pr�dios que n�o estejam defendidos e que n�o sejam objetivos militares; vi. causar a morte ou les�es a um inimigo que tenha deposto as armas ou n�o tenha meios de defesa; vii. utilizar de modo indevido a bandeira branca, a bandeira ou as ins�gnias militares ou o uniforme do inimigo ou das Na��es Unidas, bem como os emblemas previstos nas Conven��es de Genebra, e causar assim a morte ou les�es graves; viii. transfer�ncia pela Pot�ncia ocupante de parte de sua popula��o para o territ�rio que ela ocupa, ou a deporta��o ou transfer�ncia de toda ou parte da popula��o do territ�rio ocupado; ix. fazer ataque a pr�dios destinados ao culto religioso, �s artes, �s artes, �s ci�ncias ou � benefic�ncia, monumentos hist�ricos, hospitais e lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que n�o sejam objetivos militares; x. submeter indiv�duos da parte advers�ria a mutila��es f�sicas ou experi�ncias m�dicas ou cient�ficas de qualquer tipo, que n�o estejam associadas a tratamento m�dico, dental ou hospitalar, nem levadas a cabo em seu interesse e que causem mortes ou ponham em risco a sa�de de tais indiv�duos; xi. matar ou ferir de modo trai�oeiro os inimigos; xii. declarar que n�o dar� quartel; xiii. destruir ou confiscar bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra o tornem imperativo; xiv. declarar como abolidos, suspensos ou inadmiss�veis em um tribunal os direitos e a��es dos nacionais da parte inimiga; xv. obrigar nacionais da parte inimiga a participar de opera��es b�licas dirigidas contra o seu pr�prio pa�s; xvi. saquear uma cidade ou uma localidade, inclusive quando tomada de assalto; xvii. utilizar veneno ou armas envenenadas; xviii. utilizar gazes asfixiantes, t�xicos ou similares ou qualquer l�quido, material ou dispositivo an�logo; xix. utilizar balas que se abram ou amassem facilmente no corpo humano, como balas de camisa dura que n�o cubra totalmente a parte interior ou que tenha incis�es; xx. empregar armas, proj�teis, materiais e m�todos de guerra (proibidos por emenda � arts. 121 e 123 do Estatuto) que, por sua pr�pria natureza, causem danos sup�rfluos ou sofrimentos desnecess�rios ou produzam efeitos indiscriminados em viola��o ao direito internacional dos conflitos armados; xxi. cometer ultrajes contra a dignidade de indiv�duos, em particular tratamentos humilhantes e degradantes; xxii. cometer estupro, escravid�o sexual, prostitui��o for�ada, gravidez for�ada,  esteriliza��o for�ada ou qualquer outra forma de viol�ncia sexual que constitua uma viola��o grave das Conven��es de Genebra; xxiii. utilizar a presen�a de civis e outras pessoas protegidas para que fiquem imunes �s opera��es militares determinados pontos, zonas ou  for�as militares; xxiv. dirigir intencionalmente ataques contra pr�dios, materiais, unidades e ve�culos m�dicos e contra pessoal que esteja utilizando emblemas previstos nas Conven��es de Genebra, de acordo com o direito internacional; xxv. provocar intencionalmente a inani��o da popula��o civil como m�todo de fazer a guerra, privando-a dos bens indispens�veis para a sua sobreviv�ncia, inclusive por meio da obstru��o intencional da chegada de suprimentos de socorro, de acordo com as Conven��es de  Genebra; xxvi. recrutar ou alistar crian�as menores de 15 anos nas for�as armadas nacionais ou utiliz�-las para participar ativamente das hostilidades.

        O terceiro grupo de crimes, ao lado da inclus�o dos crimes sexuais, constituiu em grande vit�ria da sociedade civil internacional em mat�ria de crimes de guerra, pois inclui as viola��es em conflitos armados n�o internacionais, que atualmente englobam a maioria dos conflitos. O perfil de v�rios conflitos contempor�neos, como o da Ex-Iugosl�via e de Ruanda, s�o internos e revelam toda sorte de s�rias viola��es ao direito humanit�rio, al�m de apresentar uma administra��o de justi�a totalmente ineficaz e indispon�vel. Lembre que, de um lado, n�o se deve confundir este tipo de conflito com situa��es de dist�rbios ou tens�es internas, tais como motins, atos isolados e espor�dicos de viol�ncia ou outros atos de car�ter similar (art. 8, 2, d e f) e, de outro lado, menciona o par�grafo 3� do art. 8 que a previs�o deste tipo de crime n�o �afetar� a responsabilidade que incumbe a todo governo de manter e restabelecer a lei e a ordem p�blica no Estado e de defender a unidade e integridade do Estado por qualquer meio leg�timo�.

              Feitas estas observa��es, diga-se que esta categoria engloba o disposto no art. 3� comum �s quatro Conven��es de Genebra e outras viola��es graves consagradas por normas ou costumes internacionais. Com base no art. 3� das Conven��es, que � um verdadeiro elo de liga��o entre o direito humanit�rio e os direitos humanos[21], temos: i. atos de viol�ncia contra a vida e a integridade corporal, em particular o homic�dio em todas as suas formas, as mutila��es, os tratamentos cru�is e a tortura; ii. os ultrajes contra a dignidade pessoal, em particular os tratamentos humilhantes e degradantes; iii. a tomada de ref�ns; iv. as senten�as condenat�rias pronunciadas e as execu��es efetuadas sem julgamento pr�vio por tribunal constitu�do regularmente, que ofere�a todas as garantias judiciais geralmente reconhecidas como indispens�veis.

              As demais viola��es graves reconhecidas pelo Estatuto para conflitos n�o internacionais s�o: i. dirigir intencionalmente ataques contra a popula��o civil enquanto tal ou contra civis que n�o participem diretamente das hostilidades; ii. dirigir intencionalmente ataques contra pr�dios, material, unidades e ve�culos sanit�rios, e contra pessoal habilitado para utilizar emblemas previsto nas Conven��es de Genebra, de acordo com o direito internacional; iii. dirigir intencionalmente ataques contra pessoal, instala��es, material, unidades ou ve�culos participantes em uma miss�o de manuten��o da paz ou da assist�ncia humanit�ria em conformidade com a Carta das Na��es Unidas, sempre que tenham o direito � prote��o outorgada a civis ou bens civis, de acordo com o direito internacional dos conflitos armados; iv. dirigir intencionalmente ataques contra pr�dios dedicados ao culto religioso, �s artes, �s ci�ncias ou � benefic�ncia, monumentos hist�ricos, hospitais e lugares onde se agrupam doentes e feridos, sempre que n�o sejam objetivos militares; v. saquear uma cidade ou pra�a, inclusive quando tomada por assalto; vi. cometer atos de estupro, escravid�o sexual, prostitui��o for�ada, gravidez for�ada,  esteriliza��o for�ada e qualquer outra forma de viol�ncia sexual que constitua uma viola��o grave dos Conv�nios de Genebra; vii. recrutar ou alistar menores de 15 anos nas for�as armadas ou utiliz�-los para participar ativamente das hostilidades; viii. ordenar a transfer�ncia da popula��o civil por raz�es relacionadas com o conflito, a menos de que assim o exija a seguran�a dos civis de que se trate ou por raz�es militares imperativas; ix. matar ou ferir a trai��o um combatente inimigo; x. declarar que n�o se dar� quartel; xi. submeter pessoas que estejam em poder de outra parte no conflito a mutila��es f�sicas ou a experi�ncias m�dicas ou cient�ficas de qualquer tipo que n�o sejam justificadas em raz�o de um tratamento m�dico, dental ou hospitalar da pessoa de que se trate, nem sejam levadas a cabo em seu interesse, e que causem a morte ou ponham gravemente em perigo a sua sa�de; xii. destruir ou confiscar bens do inimigo, a menos que as necessidades da guerra o tornem imperativo.

              Este rol de crimes s�o em si mesmos suficientes para justificar este Tribunal, principalmente porque � de conhecimento de todos que essa tipifica��o prov�m de in�meras situa��es reais[22].

4.4 - Crime de agress�o

              O crime de agress�o sempre causou pol�mica na doutrina e pr�tica internacionais.  Primeiro, a discuss�o girava em torno da licitude da guerra como meio de solu��o de controv�rsias internacionais.  A concep��o de "guerra justa" de Santo Agostinho, em que seria melhor os justos subjugarem os malfeitores do que o contr�rio, influenciou muito o pensamento ocidental, ao ponto de os humanistas "c�vicos" (como Patrizi e Maquiavel) defenderem a guerra como uma op��o pol�tica a ser protagonizada pelos cidad�os, enquanto dever c�vico.  Essa ragione di stato seria, entretanto, contestada pelos humanistas do norte, como Erasmo, para quem toda a guerra � fraticida.

              Segundo, no plano internacional, em tom de inspira��o kantiana, a guerra fora considerada universalmente como um meio il�cito de solu��o de controv�rsia pelo Art. 2�, �4�, da Carta das Na��es Unidas, embora temos que recordar o precedente do "Pacto de Briand-Kellog" (1928), de menor alcance.

              A discuss�o da abrang�ncia da absten��o de recorrer � amea�a e ao uso da for�a, estabelecida pelo referido artigo, rendeu v�rias correntes doutrin�rias, como a do direito de inger�ncia por raz�es humanit�rias.  A confus�o se d� porque essa absten��o deve ser, segundo o Art. 2�, �4�, contra a integridade territorial ou a independ�ncia pol�tica de um Estado ou outro modo incompat�vel com os objetivos das Na��es Unidas. Discute-se, ent�o, exce��es � regra, embora entendemos que o Art. 2�, �3�, resolve a quest�o ao determinar que as controv�rsias devem ser resolvidas por meios pac�ficos, n�o amea�ando a paz, a seguran�a e a justi�a.  Dessa forma, n�o haveria possibilidade de uso unilateral da for�a por um Estado, resguardando a leg�tima defesa e o direito de autodetermina��o dos povos, assim como as faculdades do Conselho de Seguran�a sob a �gide do cap.  VII da Carta.

              Dentro desse contexto, houve duas propostas de defini��o de agress�o enquanto crime sob jurisdi��o do futuro TPI.  Uma das alternativas define agress�o como os atos cometidos por um indiv�duo que, como l�der ou organizador, � envolvido no uso de for�a armada por um Estado contra a integridade territorial ou independ�ncia pol�tica de outro Estado ou em outro modo incompat�vel com a Carta das Na��es Unidas.  A segunda alternativa define o crime de agress�o como o cometido por uma pessoa que est� em posi��o de controle ou � capaz de dirigir a��es pol�ticas ou militares em seu Estado, contra outro Estado, em infra��o � Carta das Na��es Unidas, recorrendo � for�a armada e amea�ando ou violando a soberania estatal, integridade territorial ou independ�ncia pol�tica.  Sobre essa �ltima defini��o, houve a proposta de acr�scimo de infra��o ao direito internacional costumeiro.  Ademais, discute-se o rol de atos que, a princ�pio, caracterizaria a agress�o.  Entre outros, est�o as invas�es, ataques, ocupa��es, bloqueios, permitir acesso para agress�o a um terceiro Estado ou enviar bandos, grupos, mercen�rios.

              A diferen�a b�sica entre os dois conceitos de agress�o concentra-se na vincula��o estrita aos termos do Art. 2�, �4�, da Carta (primeira alternativa) ou o acr�scimo da viola��o � �soberania estatal� a esses termos, que se funda na defini��o de agress�o dada pela Resolu��o n� 3314 (XXIX) de 14 de dezembro de 1974.  Se, de um lado, cremos ser insuficiente esse conceito quando as rela��es internacionais s�o pautadas por coer��es econ�micas; de outro lado, v�rias delega��es governamentais sugestionaram n�o incluir o crime de agress�o, por v�rios motivos.Destacamos o argumento de imprecis�o da responsabilidade individual criminal nessa seara. E, tamb�m, o argumento de poss�veis confus�es entre as fun��es do futuro TPI e as do Conselho de Seguran�a.

              Por esses fatores foi grande a pol�mica sobre a defini��o do crime de agress�o. Assim, o art. 5�, �1�, al�nea �d�, do Estatuto, prev� o crime de agress�o, mas o �2� do mesmo artigo remete a defini��o desse crime para futura emenda (segundo o art. 121 do Estatuto) ou revis�o (prevista pelo art. 123 do Estatuto), pois durante a Confer�ncia de Roma n�o houve consenso sobre a tipifica��o desse crime, apenas consolidando de que o tipo n�o deve ser contr�rio com o disposto na Carta das Na��es Unidas.

              A controv�rsia sobre este tipo de crime permanece na Comiss�o Preparat�ria para o TPI (PrepCom), que est� discutindo os elementos dos crimes e as regras de procedimento e prova. Nas duas primeiras, realizadas nos dias 16 a 26 de fevereiro e 26 de julho a 13 de agosto de 1999, tem-se tr�s propostas sobre o crime de agress�o: a dos pa�ses �rabes, a da Alemanha e a da R�ssia. A proposta mais abrangente foi a elaborada pelos pa�ses �rabes (Bahrain, Iraque, L�bano, L�bia, Om�, Sud�o, S�ria e Yemen), para os quais a agress�o envolve da priva��o da autodetermina��o, liberdade e independ�ncia � amea�a e uso de for�a armada para violar a soberania, integridade territorial, independ�ncia pol�tica ou direitos inalien�veis de outro povo. Este grupo de pa�ses elegem, ainda, uma s�rie de situa��es espec�ficas de agress�o, como bloqueios e uso de mercen�rios e grupos irregulares[23]. No outro extremo est� a proposta da Federa��o Russa que, de um lado, condiciona esse crime � pr�via determina��o de um ato de agress�o pelo Conselho de Seguran�a e, de outro lado, limita o objeto � concep��o, prepara��o, in�cio e execu��o de uma guerra de agress�o[24]. Por fim, a Alemanha prop�e um meio termo, ao condicionar o crime de agress�o a ataques armados contra integridade territorial ou independ�ncia pol�tica de outro Estado, segundo a Carta das Na��es Unidas, ao mesmo tempo que admite inger�ncia do Conselho de Seguran�a na determina��o destes atos[25]. Como vemos, h� muito o que discutir sobre este tema.

5. As posi��es brasileiras sobre o TPI

              Antes de tratar desse assunto, importa reconhecer que o Minist�rio das Rela��es Exteriores estabeleceu constante di�logo com a sociedade civil desde momentos preparat�rios � Confer�ncia. Refiro-me em especial �s respostas deferidas �s demandas da III� Confer�ncia Nacional de Direitos Humanos, que teve nesse particular o Movimento Nacional de Direitos Humanos e o Centro de Prote��o Internacional de Direitos Humanos como representantes. Nesses contatos preliminares boa parte das reivindica��es da sociedade civil eram contempladas pelo MRE, embora alguns temas pol�micos ainda estavam indefinidos, como o papel do Conselho de Seguran�a das Na��es Unidas. Essa boa rela��o persistiu na Confer�ncia, tendo a delega��o brasileira comparecido na �Sudan Room�[26] logo no in�cio da Confer�ncia, a fim de dialogar com as ONGs.

              O Brasil, no in�cio da Confer�ncia, defendia a possibilidade de o promotor iniciar o processo proprio motu, tendo independ�ncia em rela��o aos demais �triggering parties� (Estados e Conselho de Seguran�a), o que era extremamente satisfat�rio. Tinha posi��o flex�vel em rela��o ao papel do Conselho de Seguran�a - CS, no sentido de admitir que pudesse esse �rg�o iniciar um processo, mas era contr�rio � possibilidade de o CS criar novos tribunais ad hoc e, tampouco, considerar o TPI como um �rg�o subsidi�rio daquele ou serem as investiga��es ou processos suspensos pelo CS, exceto em circunst�ncias excepcionais, quando o CS agiria formalmente sob a �gide do cap�tulo VII da Carta das Na��es Unidas, por um per�odo limitado de tempo, o que era razo�vel na avalia��o das ONGs. Entretanto, o Brasil era favor�vel � jurisdi��o inerente do TPI somente para o crime do genoc�dio, sendo favor�vel ao chamado mecanismo �opt-in� para os demais crimes, a fim de favorecer a ratifica��o universal do Estatuto. Isso significava que, ao ratificar o Estatuto, o Estado s� aceitaria a compet�ncia do Tribunal para crimes de genoc�dio, podendo, para os demais crimes (crimes de guerra, crimes de lesa humanidade e crimes de agress�o), n�o reconhecer essa compet�ncia ou submeter caso a caso.

              Essa posi��o brasileira foi revertida publicamente em plen�rio no in�cio de julho de 1998, no sentido de aceitar a compet�ncia autom�tica do Tribunal para todos os crimes, o que muito agradou �s ONGs. Posteriormente, outras duas quest�es permaneceram pendentes em rela��o ao Brasil: a extradi��o e a pris�o perp�tua.

              Uma das quest�es centrais discutidas em Roma, ligadas � efetividade da execu��o penal, foi a cria��o de um instituto jur�dico para apresentar a pessoa acusada diante o TPI, chamado de �surrender�. Esse instrumento � similar � extradi��o, por�m distinto, embora existiam propostas de denominar esse instituto justamente de extradi��o.

              No art. 28 do Draft para o estabelecimento de um tribunal penal internacional para o Apartheid e outros crimes internacionais, criado no j� mencionado estudo de especialistas sobre a Conven��o do Apartheid de 1973 e instrumentos conexos,[27] o conceito de �surrender�  era realmente equivalente ao de extradi��o. No �2� desse artigo 28, entretanto, taxativamente determina-se que n�o seriam obst�culos para a entrega (a) alega��es de que se trata da exce��o de crime pol�tico[28] , (b) que o indiv�duo � nacional do Estado requerido e (c) por outras condi��es ou restri��es impostas pelos Estados requeridos na pr�tica de extradi��o em rela��o a outros Estados. Assim, ter�amos uma situa��o curiosa, pois o aspecto que nos leva a considerar que a extradi��o e a entrega seriam equivalentes � justamente o elemento que neutraliza os efeitos nocivos dessa equival�ncia e marca um princ�pio de diferen�a entre os institutos. Ou, em outros termos, quando a entrega prev� os aspectos pr�ticos da extradi��o, evitando empecilhos para o julgamento no ent�o hipot�tico TPI (como o crime pol�tico, a proibi��o de extradi��o de nacionais e os direitos internos), iguala os institutos mas tamb�m estabelece um patamar de diferencia��o para a jurisdi��o internacional, n�o permitindo escusas internas fundadas em pol�tica de extradi��o.

              Assim, necessitou-se firmar a posi��o de n�o admitir a confus�o entre a extradi��o e �surrender�, o que foi claramente diferenciado no Estatuto final. A delega��o brasileira, entretanto, tendo em vista a Constitui��o Federal de 1988, que veta a extradi��o de brasileiros natos e de brasileiros naturalizados antes do fato criminoso (nesse �ltimo caso com a exce��o dos crimes de tr�fico de entorpecentes), defendeu que n�o havia possibilidade de o Brasil �extraditar� os nacionais dessas categorias para o futuro Tribunal, caso fosse necess�rio. E, apesar de votar a favor do Estatuto no plen�rio final da Confer�ncia, fez declara��o de voto no sentido das dificuldades constitucionais nessa mat�ria.

              Essa posi��o foi contestada pelo presente autor, em artigo distribu�do na Confer�ncia, intitulado �The International Criminal Court: Brazil and the Question of Extradition�, pelos seguintes motivos:

a.       n�o se trata do antigo instituto da extradi��o, que se reporta a entrega de uma pessoa, submetida � senten�a penal (provis�ria ou definitiva), de uma jurisdi��o soberana a outra. Trata-se de entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdi��o penal internacional que ajudou a construir. A Constitui��o brasileira certamente n�o se refere a esse caso especial, por impossibilidade de l�gica e de vatic�nio;

b.       o par�grafo 2�, do art. 5�, da CF/88, afirma de forma categ�rica que os direitos e garantias previstos na Constitui��o brasileira n�o excluem outros decorrentes do sistema ou do regime por ela adotados ou, ainda, provindo dos tratados em que o Brasil seja parte. O Tribunal Penal Internacional est� sendo formado mediante um tratado, o que significa dar-lhe recep��o constitucional. Sabemos, � verdade, que o Supremo Tribunal Federal nega arbitrariamente esse dispositivo constitucional, determinando que os tratados de direitos humanos ou humanit�rio n�o se diferenciam dos demais tratados e, portanto, possuem o mesmo status de lei federal, o que significa dizer que uma lei posterior dessa natureza pode derrogar tratados ratificados anteriormente pelo Brasil. Entretanto, optamos pelo concebido na Constitui��o, e n�o no imposto por interpreta��o;

c.       as disposi��es transit�rias da CF/88 propugnam a cria��o de um Tribunal Internacional dos Direitos Humanos, enquanto princ�pios constitucionais direcionam as rela��es internacionais brasileiras mediante a preval�ncia dos direitos humanos. Embora o Tribunal Penal n�o seja exclusivamente um tribunal de direitos humanos[29], possui aspectos intr�nsecos aos mesmos e, o que � importante, vai de encontro com o projeto constitucional brasileiro.

              Denunciamos, ent�o, a contradit�ria e c�moda posi��o brasileira, evitando que criminosos brasileiros fossem apresentados ao Tribunal e ao mesmo tempo impedindo que o Brasil se transformasse em um reduto de criminosos estrangeiros.

              Assim, o art. 102 do Estatuto diferencia os termos �surrender� de �extradition�, sendo o primeiro a condu��o de uma pessoa de um Estado ao Tribunal, de acordo com o Estatuto, e o segundo a condu��o de uma pessoa de um Estado a outro, de acordo com tratados, conven��es ou legisla��o nacional. Ressalta-se que a execu��o penal, mediante acordo entre os Estados e o TPI, poder� ser no Estado que entrega. Ora, � inconceb�vel este tipo de situa��o na extradi��o.

              O Tribunal Penal Internacional � um produto do esfor�o conjunto e democr�tico dos Estados, das Organiza��es Internacionais e das ONGs. Portanto, � �nico, n�o possui paralelo hist�rico, significando a primeira jurisdi��o internacional permanente de car�ter penal, que de forma n�o seletiva e desvinculada de uma guerra espec�fica procura por fim a era de atrocidades que presenciamos. Como o pr�prio pre�mbulo do Estatuto menciona: �atrocidades que desafiam a imagina��o e comovem profundamente a consci�ncia da humanidade�.

              A nossa Constitui��o Federal � perfeitamente adequada ao Estatuto do TPI, em especial pela abertura do �2�, do Art. 5�, mas sobretudo pela principiologia que a rege e orienta toda a sua estrutura segundo a dignidade humana, paz, direitos humanos e direitos fundamentais. O TPI � uma necessidade, e n�o sobreposi��o. � a respira��o de uma Constitui��o como a nossa, pois o TPI s� atuar� se ela for ultrajada. Ali�s, pode significar a respira��o das pessoas que aqui vivem e sobrevivem, e n�o das autoridades e poderosos que aqui s�o fac�noras.

              A proposta de emenda constitucional que ora apresentamos � a express�o desse esp�rito, afirmando a constru��o garantista e humana do nosso sistema jur�dico, ao resguard�-lo com as possibilidades do
TPI. A PEC em quest�o tem o seguinte teor:

 �Art. 5� [...] �3� - A Rep�blica Federativa do Brasil poder� reconhecer a jurisdi��o do Tribunal Penal Internacional, nas condi��es previstas no Estatuto aprovado em Roma no dia 17 de julho de 1998.�

              Sobre o outro problema constitucional (pris�o perp�tua), diga-se que segundo o art. 77 do Estatuto, uma pessoa condenada, por algum crime de compet�ncia do Tribunal, poder� ser reclusa por um per�odo n�o superior a 30 anos (o mesmo limite ser� imposto em caso de cometimento de mais de um crime). Todavia, em casos de extrema gravidade do crime e relevando as caracter�sticas pessoais do condenado, a reclus�o poder� ser de perpetuidade. A pris�o perp�tua � a exce��o da exce��o, pois a compet�ncia do TPI sempre diz respeito a crimes graves (� uma condi��o de admissibilidade) e a extrema gravidade deve ser entendida como situa��o limite.

              Um exemplo recente dessa situa��o limite foi a decis�o hist�rica do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, proferida no dia 4 de setembro de 1998. Pela primeira vez um tribunal penal internacional aplicou a Conven��o sobre o Genoc�dio de 1948, ao condenar Jean Kambanda � pris�o perp�tua. R�u confesso, Kambanda foi ministro do governo provis�rio de Ruanda em 1994, quando cerca de um milh�o de pessoas foram assassinadas. O Tribunal Ad Hoc de Ruanda determinou a pena m�xima em raz�o da natureza dos crimes e do cargo ocupado por Kambanda.

              Al�m de prevista para situa��es limites, a pris�o perp�tua disposta no Estatuto n�o � perp�tua em todos os seus termos, j� que o �3�, do art. 110, prev� a revis�o da pena ap�s 25 anos de cumprimento, a fim de saber se essa pode ser reduzida.Neste caso, o recluso poder� ter sua pena reduzida se uma ou mais condi��es estiverem presentes (�4�, do art. 110): a) O recluso manifestou, desde o princ�pio e de forma continuada, vontade de cooperar com o Tribunal em suas investiga��es e processo; b) O recluso facilitou, de forma volunt�ria, a execu��o das decis�es e ordens do Tribunal em outros casos, em particular auxiliando na localiza��o de bens sobre os quais incidam multas, seq�estro ou repara��o que possam ser utilizados em benef�cio das v�timas; ou c) Outros fatores previstos nas Regras de Procedimento e Prova que permitam determinar uma mudan�a nas circunst�ncias suficientemente clara e importante para justificar a redu��o da pena. E se durante tal revis�o o  TPI n�o alterar a pena, h� possibilidade de voltar a examinar a quest�o posteriormente (�5 do mesmo art. 110).

              Apesar de a pris�o perp�tua ser prevista nestas condi��es e, para muitos crimes previstos na compet�ncia do Tribunal, o Brasil prever pena de morte por fuzilamento (ver C�digo Penal Militar, Livro II, Dos Crimes Militares em Tempo de Guerra, arts. 355-408), devemos lutar, ap�s nossa ratifica��o, para que se emende ou revise o Estatuto (arts. 121 e 123, respectivamente), no sentido de abolir este tipo de pena, que reputo desumana em si mesma.

              Importa considerar que a diplomacia brasileira e boa parte da intelectualidade deste pa�s demonstrou claro �nimo, consentimento e desejo, em rela��o � ratifica��o do TPI pelo Brasil, no semin�rio oficial do Minist�rio das Rela��es Exteriores sobre o assunto, organizado em conjunto com o Conselho da Justi�a Federal[30]. E por este fato a sociedade civil brasileira agradece, principalmente porque esse processo de discuss�o, que incluiu outros semin�rios e tamb�m audi�ncias p�blicas na C�mara dos Deputados, culminou na inicialmente mencionada assinatura do Estatuto pelo Brasil. Esperamos, agora, que as convic��es do Executivo, ap�s acalorado e profundo debate, inspirem a pronta aprova��o deste Estatuto pelo Congresso Nacional.

              Por fim, acredito que a constru��o do TPI � um dos mais belos projetos constru�dos pela humanidade, no sentido que o poeta pode nos dar:

Belo porque � uma porta

abrindo-se em mais sa�das.

Belo como a �ltima onda

que o fim do mar sempre adia

 Jo�o Cabral de Melo Neto[31]


[1] Assinado pelos Estados Unidos, Gr�-Bretanha, Fran�a e Uni�o Sovi�tica, em 8 de agosto de 1945. Estabelecia o Tribunal Militar Internacional, a fim de julgar crimes contra a paz (v.g., envolvendo planejamento, instiga��o e provoca��o de agress�o), crimes de guerra (v.g., contra direitos e costumes humanit�rios - Conven��es de Haia, geralmente reconhecidos pelas for�as militares de na��es civilizadas) e crimes contra a humanidade (v.g., exterm�nio racial, �tnico e religioso; atrocidades em larga escala contra a civis).

[2] Instrumento da c�pula dos Aliados (�Allied Control Council�), promulgado em 20 de dezembro de 1945.

[3] O �International Military Tribunal for the Far East� teve por base uma carta promulgada pelo General Douglas MacArthur, comandante das For�as Aliadas, em 19 de Janeiro de 1946, inspirada no �London Agreement�.

[4]  Sobre os tribunais de Nuremberg e do Jap�o, bem como o direito internacional humanit�rio, ver MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direitos Humanos e Conflitos Armados. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1997.

[5] LAWYERS COMITTEE FOR HUMAN RIGHTS. Establishing an International Criminal Court: Major Unresolved Issues in the Draft Statute. New York: LCHR, International Criminal Court Briefing Series, volume I, number I, august, 1996.

[6] O Brasil ratificou este tratado em 28 de setembro de 1989.

[7] Ver Universal Jurisdiction: 14 principles on the effective exercise of universal jurisdiction. London: Amnesty International, may 1999, AI Index: IOR 53/01/99.

[8] O TPI ter� jurisdi��o somente sobre crimes cometidos ap�s sua entrada em vigor e, para os Estados que ratificarem ap�s este fato, s� exercer� suas faculdades ap�s este consentimento (ver art. 11).

[9] HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve s�culo XX: 1914-1991. S�o Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 57.

[10]  Aprovada pela Assembl�ia Geral das Na��es Unidas, res. 260 A (III).

[11]  O preceito que coloca o genoc�dio como um crime pass�vel de ser cometido em tempos de guerra e de paz � o art. 1� da mesma Conven��o.

[12] Doc. E/CN.4/1426, 1981: Study on Ways and Means of Ensuring the Implementation of Internacional Instruments Such as the International Convention on the Suppression and Punishment of the Crime of Apartheid, Including the Establishment of the International Jurisdiction Envisaged by the Convention.

[13] Ver doc G. A., 50th Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996. Report of the Ad Hoc Comittee on the Establishment of an International Criminal Court, Volume II.

[14] Refiro-me � Opini�o Consultiva da CIJ, emitida em 28 de maio de 1951, sobre Reservas � Conven��o para a Preven��o e a San��o do Delito de Genoc�dio. Nessa oportunidade a CIJ afirmou que: �As origens da Conven��o indicam que as Na��es Unidas tinham a inten��o de condenar e sancionar o genoc�dio como �um crime do direito internacional� que consiste em uma nega��o do direito de exist�ncia a grupos humanos inteiros, nega��o que comove a consci�ncia humana, causa uma grande perda � humanidade e � contr�ria � lei moral e ao esp�rito e objetivos das Na��es Unidas (resolu��o 96 (I) da Assembl�ia Geral, 11 de dezembro de 1946). A primeira conseq��ncia que deriva desse conceito � que os princ�pios impl�citos nessa Conven��o s�o princ�pios reconhecidos pelas na��es civilizadas como vinculantes para os Estados, ainda quando n�o exista uma obriga��o convencional�.

[15] Ver doc G. A., 50th Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996., Volume II.

[16] BASSIOUNI, Cherif. Crimes Against Humanity in International Law. 1992, p. 168.

[17] Sobre detalhes da defini��o desse crime no Estatuto do Tribunal e em outros instrumentos internacionais, ver JARDIM, Tarciso Dal Maso. O Crime do Desaparecimento For�ado de Pessoas: aproxima��es e disson�ncias entre o sistema interamericano de direitos humanos e a pr�tica brasileira. Bras�lia: Bras�lia Jur�dica, 1999.

[18] Doc. G. A., 51st Sess., Supp. No. 22, A/51/22, 1996.

[19] McCORMACK, Timothy L. H. From Sun Tzu to the Sixth Comittee, p. 31-63. In The Law of War Crimes: National and International Approaches. Neetherland: Kluwer Law International, 1997.

[20] Inspirado principalmente no Art. 50 da Conven��o para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Enfermos dos Ex�rcitos em Campanha, no Art. 51 da Conven��o para a Melhoria da Sorte dos Feridos, Enfermos e N�ufragos das For�as Armadas no Mar, no Art. 130 da Conven��o Sobre o Tratamento aos Prisioneiros de Guerra e no Art. 147 da Conven��o Sobre a Prote��o das Pessoas Civis em Tempos de Guerra.

[21] CAN�ADO TRINDADE et alli. As Tr�s Vertentes da Prote��o Internacional dos Direitos da Pessoa Humana. San Jos�, Costa Rica / Bras�lia: IIDH, CICV, ACNUR, 1996, p. 69.

[22] Sobre a viol�ncia contra a mulher em conflitos armados ver SAJOR, Indai Lourdes (ed.). Common Grounds: violence against women in war and armed conflict  situations. Asian Center for Women�s Human Rights, 1998.

[23] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 11, 26 february 1999.

[24] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 12, 29 july 1999.

[25] Ver doc. Pcnicc/1999/dp. 13, 30 july 1999

[26] A �Sudan Room� � uma sala da sede da FAO (local da Confer�ncia), onde a CICC (Coaliza��o de ONGs para o estabelecimento do TPI) estabeleceu-se e, por via de consequ�ncia, transformou-se numa esp�cie de quartel-general das ONGs credenciadas para a Confer�ncia.

[27] Doc. E/CN.4/1426, 1981.

[28] Lembre que o art. VII da Conven��o de Genoc�dio de 1948 determina que, para efeito de extradi��o, o genoc�dio n�o seria considerado delito pol�tico, como de resto os demais crimes previstos nesse �draft� eram protegidos por cl�usulas similares em algum tratado j� existente na �poca.

[29] Pois tamb�m envolve o direito internacional humanit�rio.

[30] Semin�rio Internacional realizado no Superior Tribunal de Justi�a, entre os dias 8 a 10 de Setembro de 1999, e intitulado �O Tribunal Penal Internacional e a Constitui��o Brasileira�.

[31] NETO, Jo�o Cabral de Melo. Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta. 31� ed. Rio de Janeiro: Ed. Jos� Olympio, 1992, p. 111.

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O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL,
A PENA DE PRIS�O PERP�TUA E A CONSTITUI��O BRASILEIRA
Sylvia Helena Helena F. Steiner

            Em  tema t�o controvertido, como o que se refere � previs�o, pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, da pena de pris�o perp�tua, vejo como necess�rio, primeiramente,  tecer algumas considera��es sobre as discuss�es havidas durante a elabora��o de suas regras. E, antes de qualquer consider��o, acho necess�rio  deixar claro que num artigo, dada a pr�pria exiguidade de espa�o de que dispomos para expor nossas id�ias, n�o pode haver a pretens�o de se esgotar a mat�ria, e nem sequer, diga-se, de aprofundar de tal modo as reflex�es que estas traduzam toda nossa an�lise sobre o tema. Assim, estas notas devem ser interpretadas como, realmente, notas que s�o.

            A primeira observa��o que desejo fazer � sobre o fato de que, desde o in�cio das discuss�es acerca da cria��o de um Tribunal Penal Internacional  permanente, a Comiss�o de Direito Internacional da ONU, e depois o Comit� Preparat�rio criado pela Assembl�ia Geral, preocuparam-se em n�o privilegiar nenhum dos principais sistemas judiciais existentes, aqueles com ra�zes no common law e aqueles com ra�zes na civil law. Em outras palavras, nos principais sistemas jur�dicos vigentes, os primeiros congregando parte dos pa�ses de tradi��o anglo-sax�nica, e, o segundo, os pa�ses com ra�zes no direito romano, como o nosso. N�o se buscava, em verdade, criar um sistema h�brido, mas sim um sistema de regras original, novo, espec�fico para regular a estrutura de uma Corte internacional com perfil desvinculado de quaisquer Estados.

            A proposta, no entanto, no meu entender, n�o vingou de todo, pois verifica-se na verdade que houve uma tentativa de concilia��o entre institutos pr�prios do sistema do common law e outros pr�prios do sistema da civil law. Esse casamento for�ado, em diversos dispositivos do Estatuto, demonstrou n�o ter dado certo, como ali�s n�o daria qualquer casamento for�ado.

            No que diz especificamente com a previs�o das penas a serem impostas, a discuss�o surgida ap�s a apresenta��o do projeto elaborado pela Comiss�o de Direito Internacional foi justamente sobre a aus�ncia de previs�o da pena capital.

            Em verdade, como bem resumido por Norberto Bobbio[1], duas s�o as grandes correntes que antep�em suas concep��es sobre a justificativa da pena de morte: uma, a que se assenta numa concep��o chamada �tica, para a qual a pena de morte � decorr�ncia da regra de justi�a. Tem car�ter retributivo. A pena � justa. Outra, a concep��o chamada utilitarista, para a qual a pena de morte s� se justifica se provar-se que � �til, quer para fins de preven��o geral, quer para fins de preven��o especial, quer para a defesa social.

            Tenho que, dentro dessa perspectiva jusfilos�fica, os pa�ses com tradi��o assentada no common law s�o os que mais frequentemente compartilham a id�ia de que a pena de morte � justa. N�o importa se � �til, ou se � necess�ria. � apenas justa. � a medida da justa retribui��o.

            N�o vejo outro motivo para a discuss�o que se abriu, no seio da Comiss�o Ad Hoc e depois do  Comit� Preparat�rio, � vista do projeto elaborado pela Comiss�o de Direito Internacional da ONU, o qual n�o previa a pena de morte. Muitas das delega��es sustentavam, e isso prosseguiu inclusive nas discuss�es havidas durante a Confer�ncia de Roma, que sem a possibilidade de se aplicar a pena de morte os objetivos e a credibilidade da Corte seriam abalados. Seu ponto de apoio era a sustenta��o do fato de que a gravidade dos crimes a serem julgados pela Corte seria refor�ada com a previs�o da pena de morte. Insistiam essas delega��es em que n�o havia nenhuma proibi��o, sequer recomenda��o contra a pena de morte, derivada dos costumes de direito internacional. A pena de morte seria, na perspectiva dessas delega��es, a pena justa.

             A nosso ver, no entanto, a oposi��o  derivava muito mais do fato de entenderem, essas delega��es, que a n�o previs�o da pena de morte poderia ser interpretada como um progressivo desenvolvimento do costume internacional no sentido da proscri��o dessa pena.

            De outro lado, os delegados de pa�ses com sistemas mais assentados na civil law, e que portanto t�m uma vis�o diferente das finalidades da pena - muito mais num sentido utilit�rio do que retributivo - invocaram o fato de que, quer pa�ses  signat�rios do Protocolo Adicional ao Pacto de Direitos Civis e Pol�ticos, quer os pa�ses americanos signat�rios da Conven��o Americana sobre Direitos Humanos, e os europeus signat�rios da Conven��o Europ�ia,  tinham um compromisso internacional no sentido da aboli��o da pena de morte, ou ao menos de sua n�o extens�o a outros delitos.  A prevalecer a previs�o de tal pena no Estatuto, n�o poderiam eles ser signat�rios da Conven��o de Roma, nem tampouco colaborar com a obriga��o da entrega de pessoas � Corte se esta pudesse conden�-los � pena de morte.

            Como tamb�m se discutia a inclus�o da pena de pris�o perp�tua, esta sim prevista no projeto da Comiss�o de Direito Internacional,  algumas delega��es entenderam que a manuten��o deste tipo de pena seria necess�ria, no sentido de mostrar, �s delega��es que insistiam na inclus�o da pena morte, alguma flexibilidade, para alcan�ar-se um acordo. Ressalte-se que discuss�es sobre a pena de pris�o perp�tua t�m sido tema frequente, mesmo porque h� consider�vel doutrina que considera tal puni��o contr�ria ao princ�pio de humanidade das penas, defendido nas inst�ncias internacionais.

            Portugal, e os pa�ses ibero-americanos, foram os grandes opositores da inclus�o n�o s� da pena capital, mas tamb�m da pena de pris�o perp�tua no Estatuto do Tribunal.

            No entanto, venceu a corrente conciliadora. Assim, as negocia��es levaram  � aceita��o da manuten��o, no Artigo 77 de seu texto, da pena de pris�o perp�tua, em troca da n�o inclus�o da pena capital.

            Por seu lado, os detratores da pena de pris�o perp�tua fizeram constar tal pena como exce��o, a ser aplicada apenas em casos de excepcional gravidade dos crimes ou de circunst�ncias individuais do criminoso, al�m de  cl�usula mandat�ria de revis�o da pena , ap�s 25 anos de seu cumprimento - Artigo 110 do Estatuto. Caso indeferida a revis�o, a Corte se obriga a proceder a novas e sucessivas revis�es peri�dicas, na forma ainda a ser regulamentada pelas Regras de Procedimento e Prova que est�o sendo discutidas junto � Comiss�o Preparat�ria - PrepCom.

            Entendi necess�rio esse pequeno hist�rico, tirado da excelente obra organizada por Roy S. Lee[2],  a fim de que possamos compreender que a manuten��o da previs�o da pena de pris�o perp�tua no Estatuto  deu-se muito mais por necessidade, para evitar-se um maior confronto com as delega��es que insistiam na inclus�o da pena de morte, o que vem bem a demonstrar que grande parte das na��es ainda v� nas  penas mais severas a �nica forma de justa retribui��o aos crimes mais graves. 

            Cumpre ainda lembrar que, por decis�o da maioria das delega��es, mais uma vez aquelas mais afinadas com o sistema da common law, a aplica��o das  penas previstas no Estatuto fica a crit�rio dos Ju�zes, que t�m poder discricion�rio para escolher, dentre as esp�cies previstas, a pena a ser aplicada. Nenhum dos delitos previstos no Estatuto traz pena espec�fica cominada, � semelhan�a dos previstos nos estatutos dos Tribunais ad hoc de Ruanda e da extinta Yugoslavia.  Tal forma de comina��o de penas, totalmente estranha �s nossas tradi��es, tem igualmente sido interpretada � sem raz�o -  como ofensiva ao princ�pio de individualiza��o das penas.

            Ap�s esse breve passeio pela hist�ria de um debate que resultou, a nosso ver, na infeliz e injustific�vel inclus�o da pena de pris�o perp�tua no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, resta expor nosso entendimento acerca da compatibilidade ou n�o de tal previs�o com nosso texto constitucional. Essa, afinal, a tarefa para a qual fomos desafiados.

            Acredito que n�o haja uma resposta simples, f�cil, detect�vel de pronto. Qualquer que seja a mat�ria em discuss�o, a pr�pria ess�ncia da ci�ncia do direito reside na interpreta��o. Direito � interpreta��o. A norma n�o � a decomposi��o de uma verdade posta. A norma � o que nela interpretamos.

            Em verdade, o que me proponho a fazer aqui � dar in�cio a algumas reflex�es, necess�rias para que possamos compreender o modelo de sistema penal proposto pelo Estatuto do TPI, em confronto com um modelo por n�s mais conhecido e tido por ideal e justo.

            N�o pretendo, mesmo porque n�o me habilito para faz�-lo, entrar no discurso filos�fico. Como operadores do direito , acabamos criando o h�bito de buscar respostas nas normas, muito mais do que nos valores que lhes d�o sustenta��o.

            A primeira e importante observa��o necess�ria � a de que a ratifica��o do Brasil ao TPI n�o implica, jamais poder� implicar, em defesa da pena de pris�o perp�tua.

            A Constitui��o Brasileira prev� um extenso e cuidado rol de direitos e garantias fundamentais no seu artigo 5�. Por for�a do artigo 60, p�r.4�, inc.4, sequer proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais pode ser objeto de delibera��o.  Assim, � primeira vista, o inciso XLVII, �b�, do art. 5� da CF, que proscreve a pena de pris�o perp�tua, geraria a incompatibilidade do texto do Artigo 77 do Estatuto, a impedir a ratifica��o do Brasil.

            N�o vejo como t�o simples a equa��o.

            Primeiramente, e dentro da mais tradicional doutrina constitucionalista, � de se lembrar que os princ�pios, sempre, prevalecem sobre as regras. E � princ�pio da Rep�blica Federativa do Brasil reger-se, nas suas rela��es internacionais, pela preval�ncia dos direitos humanos          ( art. 4�, II ). N�o h� que se esquecer que o pa�s tem por um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana ( Art. 1�, III ). Nem como esquecer-se, ainda, que ao rol de direitos e garantias fundamentais agregam-se os direitos e garantias previstos nos tratados internacionais dos quais o pa�s seja parte ( Art. 5�, p�r.2�)

            Nas rela��es internacionais, pois, � princ�pio constitucional reger-se o pa�s pela preval�ncia dos direitos humanos.  N�o vem  desvinculada de respaldo principiol�gico a norma inserta no art. 7� do Ato das Disposi��es Constitucionais Transit�rias que aduz que o Brasil propugnar�  pela cria��o de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. N�o � esta uma norma program�tica despida de qualquer conte�do principiol�gico. Ao contr�rio, aponta para uma das  formas pela qual se realizar� o conte�do do princ�pio.

            Ora, j� numa primeira vis�o panor�mica sobre princ�pios constitucionais expressos - formalmente e materialmente constitucionais, pois - se depreende que o pa�s compromete-se, na ordem internacional, com a ado��o de medidas de preserva��o de direitos fundamentais, e propugna pela cria��o de um tribunal internacional que apure viol��es ad direitos humanos.

            O Pre�mbulo do Estatuto, embora n�o tenha o car�ter obrigacional de suas disposi��es, aponta para o TPI como meio de preserva��o e restabelecimento da comunidade internacional frente a amea�as decorrentes dos mais graves crimes contra os direitos fundamentais, de transcend�ncia internacional. O fim da impunidade, e a preven��o de novos crimes, s�o objetivos reafirmados pelos signat�rios do Estatuto. Portanto, tem o TPI inegavelmente o perfil desse  Tribunal Internacional de Direitos Humanos previsto no Artigo 7� do ADCT, e seus objetivos traduzem a preval�ncia, na ordem internacional, da prote��o de tais direitos.

            Em si mesmo, pois, o Tribunal Penal Internacional n�o s� atende a um princ�pio constitucional, como o Brasil se coloca como incentivador de sua implementa��o.

            Essa a linha da primeira reflex�o que proponho aos estudiosos da mat�ria. A cria��o de um Tribunal Penal Internacional de direitos humanos � princ�pio expresso em nossa Constitui��o. Assim, regras espec�ficas contidas no texto constitucional devem ser interpretadas de molde a se conformar com o princ�pio de que decorrem. N�o o inverso: n�o se pode privilegiar a regra, em detrimento do princ�pio

            Vejo assim que, ao propugnar pela cria��o de um Tribunal Penal Internacional de direitos humanos, n�o poderia o constituinte , � evid�ncia, condicionar-lhe a estrutura, organiza��o e funcionamento ao modelo e semelhan�a dos tribunais internos. Regendo-se nas suas rela��es internacionais pela preval�ncia dos direitos humanos, a exist�ncia de normas de direito interno diversas daquelas previstas numa Corte internacional n�o poderia levar a um ju�zo de incompatibilidade, quer formal,  muito menos substancial, por uma quest�o de l�gica.

            Numa segunda ordem de reflex�es, vejo que o constituinte, ao formular o elenco de direitos e garantias previsto no art. 5�, mais especificamente o regime penal contido nas regras dos incisos XLV, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX, n�o poderia ter em conta  sen�o as rela��es entre o Estado, atrav�s de seus �rg�os repressivos, e o indiv�duo que, nos termos do princ�pio da territorialidade, houver cometido delito no territ�rio nacional ou nas suas extens�es, como  previsto em lei.

            As normas de direito penal da Constitui��o regulam o sistema punitivo interno. D�o a exata medida do que o constituinte v� como  justa retribui��o. N�o se projeta, assim, para outros sistemas penais aos quais o pa�s se vincule por for�a de compromissos internacionais.

            Ali�s, esse j� f�ra o entendimento do eminente Ministro Francisco Resek, no julgamento da Extradi��o n� 426 - tida como leading case - em que o Supremo Tribunal Federal deferiu extradi��o de estrangeiro a Estado requerente no qual se aplicaria a pena de pris�o perp�tua, sem condi��es ( RTJ 115/969). Em seu judicioso Voto, o eminente internacionalista j� afirmava que �(...) no que concerne ao par�grafo 11 do rol constitucional de garantias� ( e aqui o Magistrado se referia ao rol de direito e garantias fundamentais do art. 153 da Constitui��o anterior, e que dizia respeito � proibi��o de penas de pris�o perp�tua) �ele estabelece um padr�o processual no que se refere a este pa�s, no �mbito especial da jurisdi��o desta Rep�blica. A lei extradicional brasileira, em absoluto, n�o faz outra restri��o salvo aquela que tange � pena de morte. (...) O que a Procuradoria Geral da Rep�blica prop�e � uma extens�o transnacional do princ�pio inscrito no par�grafo 11 do rol de garantias.�

            No mesmo julgamento, o n�o menos iminente Ministro Sidney Sanches afirma: �(...) O par�grafo 11 do art. 153 da Constitui��o Federal, a meu ver, visou impedir apenas a imposi��o das penas ali previstas ( inclusive a perp�tua) para os que aqui tenham que ser julgados. N�o h� de ter pretendido efic�cia fora do pa�s.�

            Na Extradi��o n. 669.0, o eminente Ministro Celso de Mello, trazendo precedente da lavra do respeitado Ministro Sep�lveda Pertence, dele transcreve: �(...) A quest�o da imposi��o das penas privativas de liberdade, tais como abstratamente definidas na legisla��o de New Jersey, traduz op��o judicial peculiar ao ordenamento jur�dico daquele estado-membro da Uni�o norte americana. Nesse contexto, n�o se pode impor, no plano das rela��es extradicionais entre estados soberanos, a compuls�ria submiss�o da parte Requerente ao modelo jur�dico de aplica��o de penas vigente no �mbito do sistema normativo do estado a quem a extradi��o � solicitada�. Em seu Voto, o relator conclui: �(...) A for�ada importa��o de crit�rios ou de institutos penais n�o se legitima em face do direito das gentes nem se justifica � luz de nosso pr�prio sistema jur�dico.� ( RTJ 133/1097).

            Tais precedentes s�o ora trazidos apenas para demonstrar a sensibilidade de nossa Corte Superior no sentido de afirmar a aplica��o territorial de nossa lei penal. N�o diversa a situa��o, como ora se apresenta, de ter-se � vista ordenamento que prov�m seuqer de outro Estado soberano, mas de �rg�o supranacional,  cujas regras jamais poderiam ser tidas por incompat�veis com nossas regras internas pelo simples fato de que se aplicam por �rg�os jurisdicionais distintos.

            J� por essa reflex�o, tamb�m, n�o vejo como possam quaisquer institutos de direito penal interno, ainda que com status constitucional, serem opostos como barreiras intranspon�veis � submiss�o do pa�s a um sistema penal internacional.

            Mas n�o � s�.

            A ordem jur�dica, interna ou internacional, � din�mica. E n�o se pode cogitar de um princ�pio, ou de uma norma, dissociado do valor que lhe � subjacente, ou de que � decorrente. Em outras palavras, uma norma jur�dica n�o subsiste s� por sua exist�ncia formal, mas tamb�m pelo seu conte�do substancial. Nessa medida, a pr�pria Constitui��o , mesmo sem revis�o ou emendas que lhe alterem a forma, pode assumir novos conte�dos decorrentes de um c�mbio no conte�do material dos direitos envolvidos. Assim, alguns autores resumem esse fen�meno como sendo aquele em que h� um processo informal de mudan�a na Constitui��o, por meio do qual seriam atribu�dos novos conte�dos, novos sentidos n�o expressos na letra das normas. Tais mudan�as adviriam, pois, a partir de mudan�as na realidade, e seriam reconhecidas atrav�s, a exemplo, de nova interpreta��o do texto constitucional.

            Essas muta��es podem alterar o conte�do material de normas constitucionais, e s�o constitucionais na medida em que n�o afrontem princ�pios, nem arranhem as chamadas reservas materiais ou reservas de justi�a, nem causem trauma ao sistema. E decorrem da interpreta��o, de uma nova constru��o jurisprudencial, da mudan�a dos usos e costumes, de pr�ticas governamentais e, aqui convergimos, da implementa��o da normativa internacional.

            Em mais simples anota��es, tenho que a constru��o, normativa ou decorrente dos usos e costumes, de um arcabou�o jur�dico internacional, pode trazer altera��es materiais � Constitui��o. E, no caso, na cria��o de um Tribunal Penal Internacional, inexistente � �poca da promulga��o do texto da lei maior, mas prevista em suas disposi��es finais transit�rias, reflete-se esse poder  difuso para provocar altera��o no conte�do da Constitui��o.

            N�o haveria assim, nas disposi��es estatut�rias, qualquer incompatibilidade com o texto da lei maior, na medida em que a proibi��o da pena de pris�o perp�tua restringiria o legislador interno, e t�o somente ele. De outro lado, a afirma��o do princ�pio da preval�ncia dos direitos humanos no plano internacional, e da disposi��o constitucional de se  propugnar pela cria��o de um tribunal internacional de direitos humanos, levam ao entendimento de que as normas do Estatuto desse tribunal podem operar muta��es substanciais no texto constitucional, que passa assim a abrig�-las sem a necessidade de qualquer altera��o formal em seu texto, e sempre desde que se conformem com suas reservas materiais.

            Por fim, e como �ltimo argumento para reflex�o, lembro que o pr�prio texto constitucional, no mesmo rol de direitos e garantias do art. 5�, prev� a exce��o da pena de morte, para os crimes militares cometidos em tempo de guerra ( Art. 5�, XLVII, �a�).

            A leitura do texto do C�digo Penal Militar ( Decreto Lei 1001, de 21.10.69), nos traz a triste vis�o de um extenso rol de delitos punidos com pena capital. A trai��o ( art. 355), a fuga ( art. 365), o dano em bens de interesse militar ( art. 384), o abandono de posto ( art. 390) s�o alguns exemplos. Prev�, ainda, alguns delitos cujas condutas t�picas s�o semelhantes �s que v�m elencadas no rol do Artigo 8 do Estatuto, ou no Artigo 3 Comum das Conven��es de Genebra, que descreve os crimes de guerra. Tamb�m, a exemplo, pune nosso C�digo Penal Militar, com a pena de morte, os crimes de genoc�dio  ( art. 401 ), e de viol�ncia sexual ( art. 407), este quando houver o resultado morte. Veja-se que n�o distante de diversas defini��es t�picas trazidas pelo Estatuto, as quais, apenas em situa��es excepcionais, poderiam ser punidas com a pena de pris�o perp�tua. Portanto, nossa legisla��o interna, ao abrigo de dispositivo constitucional, prev� pena muito mais severa que aquela trazida pelo Estatuto para algumas figuras t�picas an�logas.

            Ainda recentemente, o Brasil ratificou o segundo Protocolo Adicional da Conven��o Americana sobre Direitos Humanos, o qual, em seu Artigo 2, reafirma que os Estados signat�rios se comprometem com a aboli��o da pena de morte, ressalvando-se, no entanto, sua previs�o aos casos de crimes de guerra.

            N�o h�, pois, uma restri��o moral ou substancial do constituinte contra a pena de morte em casos de crimes cometidos em situa��o de guerra, embora, nesse caso, tenha o Brasil assumido inclusive obriga��es internacionais no sentido de n�o ampliar as hip�teses previstas. Diante dessa constata��o, refor�a-se a id�ia de que a previs�o restritiva � pena de pris�o perp�tua, dirigida ao legislador ordin�rio interno, n�o oferece resist�ncia � apena��o de crimes internacionais, em tudo assemelhados aos crimes cometidos em tempo de guerra - aqui compreendidas as situa��es de conflito previstas no Estatuto do TPI - que poderiam inclusive, na legisla��o interna, serem punidos com a pena capital.

            Sem a pretens�o de ter trazido solu��es �s controv�rsias, espero que estas reflex�es possam contribuir, ao menos, para que prossiga um debate s�rio e desapaixonado sobre a import�ncia do Tribunal Penal Internacional, e a necessidade de o Brasil ratificar seus Estatutos aceitando-lhe a compet�ncia. A aceita��o das compet�ncias de uma corte internacional de direitos humanos � princ�pio constitucional, e o princ�pio, como sabido, deve ser levado em conta como principal crit�rio de interpreta��o e integra��o do texto constitucional[3].

            Sempre oportuno lembrar que o controle internacional sobre a a��o dos Estados � garantia da promo��o dos direitos e garantias fundamentais, como afirmou Fabio Comparato[4], j� que a prote��o das pessoas contra os mais graves crimes de transcend�ncia para toda a comunidade internacional n�o pode ser interpretado como assunto de exclusivo interesse dom�stico.

            A leitura dos diversos dispositivos do Estatuto do Tribunal Penal Internacional demonstra que ele adota o ide�rio garantista. N�o deixa de preocupar-se com os princ�pios garantistas da legalidade dos delitos e das penas, da irretroatividade, da culpabilidade. Em seu Artigo 67 elenca extenso rol de garantias processuais, sob determinados aspectos mais detalhistas inclusive do que v�rias das normas processuais de nossa legisla��o interna.

            N�o se pode, diante de todo esse conte�do, afirmar que a previs�o da pena de pris�o perp�tua - expurgada, com raz�o, de nosso ordenamento interno - traduz a consagra��o de um tribunal alheio aos princ�pios garantistas do direito  penal moderno.

            De qualquer forma,  aliando-se o reconhecimento da exist�ncia de muta��o constitucional decorrente da cria��o de um tribunal internacional de direitos humanos pelo qual o constituinte propugnava,  ao fato de abrir o pr�prio texto constitucional possibilidade de apena��o inclusive mais grave a crimes previstos igualmente no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, vejo como poss�vel a ratifica��o imediata do Estatuto de Roma, sem que com isto se esteja infringindo quaisquer de suas disposi��es de prote��o a direitos fundamentais.


[1] BOBBIO, Norberto,  A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus Editora, 1992.

[2]  EINAR FIFE, Rolf,  �Penalties� , in  The International Criminal Court - The Making of the Rome Statute. Kluwer Law International, 1999.

[3] BARROSO, Lu�s Roberto, Interpreta��o e Aplica��o da Constitui��o. S�o Paulo: Saraiva, 1998.

[4] referido por WEIS, Carlos, Direitos Humanos Contempor�neos. S�o Paulo: Malheiros, 1999.

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Quais são os princípios que regem a atuação do Tribunal Penal Internacional?

Qual o principal objetivo do Tribunal Penal Internacional?

O Tribunal Penal Internacional tem competência para processar e julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, descritos nos artigos 6º,7º,8º e 8 bis de seu Estatuto.

Qual princípio fundamenta o pedido formulado pelo Tribunal Penal Internacional?

A relação jurisdicional internacional tem por base o princípio da complementaridade, pelo qual o Tribunal Penal Internacional somente atuará caso a jurisdição interna do Estado não estiver investigando, processando, ou já houver julgado o crime que ocorreu em seu território.

Quais as características do Tribunal Penal Internacional?

O Tribunal Penal Internacional pode atuar para punir indivíduos e crimes cometidos – entretanto, não possui competência de julgar Estados nacionais. Além disso, não pode atuar em qualquer país e a qualquer hora. Existem restrições estabelecidas legalmente. Assim, sua jurisdição não é universal.

Quais são os principais crimes da competência do Tribunal Penal Internacional?

O Tribunal Penal Internacional é um órgão que julgará pessoas, não países, responsáveis pelos mais graves crimes internacionais: crimes contra humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão e crimes de genocídio.