Por quê o touro não se deixa montar

No regime de monta natural, um touro pode servir até 100 vacas por ano. A industrialização do sêmen de igual número de montas, entretanto, pode produzir cerca de 30.000 doses de sêmen/ano. A multiplicação do material reprodutivo e a facilidade de transporte viabilizam o uso de touros geneticamente superiores a baixo custo. Essa é uma forma de acelerar o melhoramento genético e aumentar a eficiência produtiva.

O sêmen bovino dos reprodutores de alto mérito genético é processado nas centrais de sêmen, onde os animais passam por um rigoroso controle sanitário e nutricional. É preciso adotar uma política de melhoria constante e consistente do rebanho, à medida que o manejo também é apurado. De nada adiantará gerar bezerras de alto padrão, se as condições de manejo não evoluírem proporcionalmente, não permitindo que esses animais expressem seu potencial produtivo.

Depois que se adota a inseminação, a detecção do cio tem que ser feita de forma alternativa, surgindo a necessidade de técnicas para reconhecimento do cio entre as vacas. Segundo o professor Dr. Luis Fonseca Matos, no Curso CPT Inseminação Artificial em Bovinos – Convencional e em Tempo Fixo, “um recurso muito utilizado é o rufião, um macho inteiro, que monta mas não consegue fazer a penetração, porque tem o pênis bloqueado dentro do prepúcio ou desviado lateralmente”.

Outra possibilidade é o uso de fêmeas que repetem cio ou mesmo androgenizadas, ou seja, tratadas com hormônios masculinos. “A forma mais simples, porém, é a observação da monta entre fêmeas. Quando entram no cio, elas ficam agitadas e nervosas, e tentam montar em fêmeas que estão na mesma situação. Se estiver em cio, a vaca aceita a monta”, afirma o professor.

O intervalo médio de repetição de cio é de 21 dias, podendo variar de 17 a 24 dias. A duração é de 10 a 18 horas. A correta observação durante esse período é fundamental para o sucesso da inseminação.

Quer saber mais sobre o Curso? Assista ao vídeo abaixo:



Por Equipe CPT de Redação.

Por quê o touro não se deixa montar

Por quê o touro não se deixa montar

AVISO LEGAL

Este conteúdo pode ser publicado livremente, no todo ou em parte, em qualquer mídia, eletrônica ou impressa, desde que contenha um link remetendo para o site www.cpt.com.br.

O artigo explora as claves simbólicas da tourada espanhola e do movimento antitaurino que postula a sua erradicação. Em que pese o acirramento do seu antagonismo, “taurinos” e “antitaurinos” têm em comum algumas diferenças com o paradigma “moderno” de separação natureza/cultura (ou humano/animal) e elaboram, cada um por seu lado, uma identificação entre os humanos e os seus animais de escolha. Essa identificação – que no caso das touradas remete ao tema clássico do sacrifício – põe em jogo noções sobre gênero e sexualidade.

I explore the symbolic keys of the Spanish bullfight, as well as those embedded in the growing anti-bullfight movement. Notwithstanding their rampant antagonism, bullfight lovers and bullfight haters share a stand against the “modern” nature/culture (animal/human) divide. They both build, albeit in a divergent fashion, an identification between the humans and their chosen animals. This identification, that in bullfight redirects to the classical anthropological theme of sacrifice – is grounded on sex and gender conceptions.

Entradas no índice

Palavras chaves:

animalismo, gênero, sexualidade, touradas

Keywords:

animalism, bullfight, gender, sexuality

Mapa

Notas da redação

Recebido em: 28/05/2016
Aprovado em: 06/02/2017

Texto integral

PDF 152k Assinalar este documento

  • 1 As touradas têm sido recentemente proibidas pelo governo autônomo da Catalunha, não sem críticas de

1As touradas espanholas levam séculos sendo motivo de polêmica; bem mais tempo do que levam sendo um símbolo ou uma festa nacionais. Mas essa polêmica tem se acirrado contemporaneamente até se tornar a mais intensa (no sentido emotivo e no sentido semântico) de todas as que envolvem direitos animais. A opinião antitaurina tornou-se majoritária, sobretudo entre a população espanhola mais jovem e urbana. Junto com os argumentos em comum com outros movimentos animalistas, ela usa um léxico agressivo – atraso, barbárie, selvajaria, primitivismo, incultura, aberração, irracionalidade – que alveja uma identidade e uma tradição nacionais controversas. A tendência antitaurina alimenta e se alimenta das tensões entre os nacionalismos centrais e periféricos, e entre o catolicismo e uma tendência laicista com tintas crescentemente anticlericais ou antirreligiosas. Na polêmica sobre os touros há muito mais do que uma controvérsia animalista. O touro de que falamos não é apenas um animal empírico, ele simboliza tudo aquilo que diz simbolizar e muito mais que não consegue se exprimir de outro modo.

2Começarei num ponto muito periférico do mundo dos touros, tratando de um romance taurino, Los mozos de Monleón, que nunca foi objeto de muita atenção. Em espanhol, a palavra “romance” designa um poema narrativo (e cantado) em versos octossílabos, que foi o gênero por excelência da épica popular espanhola. Recolhidos em coletâneas desde o Renascimento, os romances continuavam a ser garimpados por folcloristas e filólogos em inícios do século XX, quando várias versões de Los mozos de Monleón foram anotadas, com sua música. Vejamos uma delas:

  • 2 Nessa transcrição me permiti modificar alguns termos dialetais, tais como veyuda = viuda ou joriza 

Los mozos de Monleón
se fueron a arar temprano
para dir a la corrida [no original, joriza; corrida: tourada]
y remudar con despacio; [remudar: trocar de roupa]
al hijo de la viuda [no original, veyuda]
el remudo no le han dado. [a mãe lhe nega a roupa limpa]
– Yo a la corrida he de ir
aunque lo busque emprestado.
– Permita Dios si allá vas
que te traigan en un carro, [carro: charrete, obviamente]
las abarcas y el sombrero [abarca: tipo de calçado simples, uma sola de esparto atada com fitas]
de los indiestos colgando! [indiestos: estacas laterais da carroça, que seguram a carga]
Se cogen los garrochones, [garrochón: um tipo de lança usada na tourada]
se fueron la nava abajo, [nava: terra plana e sem árvores]
preguntando por el toro,
y el toro ya está encerrado.
En el medio del camino
al vaquero se encontraron.
– ¿Cuánto tiempo tiene el toro?
– El toro tiene ocho años. [os touros costumam ser lidiados com mais ou menos cinco]
Muchachos, no entréis a él;
mirar que el toro es muy malo,
que la leche que mamó
se la di yo por mi mano.
– Si nos mata que nos mate,
ya venimos sentenciados.
Manuel Sánchez llamó al toro,
nunca lo hubiera llamado:
por el pico de una abarca
toda la plaza arrastrando.
– Compañeros, yo me muero;
amigos, yo estoy muy malo;
tres pañuelos tengo dentro [tenta estancar a hemorragia com lenços]
y este que meto son cuatro.
Al rico de Monleón
le piden los gües y el carro. [gües: bois]
A la puerta la viuda
arrecularon el carro.
– Aquí tenéis vuestro hijo
como lo habéis demandado.
A eso de los nueve meses
la madre sale bramando;
los vaqueriles arriba,
los vaqueriles abajo,
preguntando por el toro,
y el toro ya está enterrado
(Versão de G. Menéndez Pidal, 1935 apud Puerto, 1988).

3Los mozos de Monleón foi uma das peças populares que Federico García Lorca publicou em partitura harmonizada para piano, e nessa versão alcançou certa difusão na discografia erudita. É curioso que um poeta que flertou com o surrealismo, como Lorca, tenha simplificado o romance eliminando a sua coda, fazendo-o acabar no verso “como lo habéis demandado” e evitando assim o seu segmento mais obscuro. A única análise que conheço desse romance (Puerto, 1988) o define como uma tragédia de confronto entre a autoridade da mãe e a rebeldia do filho, que deseja afirmar a sua condição de homem na tourada, mas perece vítima da maldição materna. Os conflitos entre gerações – alegorias de uma tensão geral entre tradição e modernidade – foram temas caros às vanguardas literárias espanholas do século XX; e o castigo fatal de filhos desobedientes já era um tema muito frequente do romancero popular. Mas essa leitura é tão incompleta como a versão de Lorca.

  • 3 Outra versão reproduzida por Puerto acrescenta alguns versos em que um padre confere os últimos sac

4Essa exclusão dos últimos seis versos aponta a dificuldade de assimilar seu conteúdo. A mãe de Manuel Sánchez, em lugar de sair presto a conferir o resultado de sua maldição, aparece apenas nove meses depois (um chavão de oito sílabas a que os romances recorriam para aludir a um nascimento), como se o desfecho da tragédia tivesse sido uma fecundação, e não uma morte. Ela reaparece em cena não chorando e se lamentando, mas bramando como os bovinos, percorrendo de um lado a outro os currais, e procurando não seu filho Manuel Sánchez, mas “o touro” – que já está “enterrado”, outro dado estranho porque o destino dos touros mortos não é a sepultura, mas o consumo. Bem antes no romance, o vaqueiro avisa aos jovens que se abstenham de participar na tourada: Manuel Sánchez, o filho maldito da viúva, se enfrenta com um touro órfão (ele foi amamentado por mãos humanas, as do vaqueiro).

  • 4 Diga-se de passagem, a vontade de entender a cultura popular espanhola como “realista” – isto é, de

5Que fazer com isso tudo? Esse tipo de relatos em que matador e vítima trocam seus papéis, em que um humano reaparece em forma de animal, em que uma imolação equivale a uma gravidez, e em que uma viúva age levada por algo que está mais para ciúme de amante que para amor materno, se encontram com frequência nesse mundo pagão que a antropologia sempre frequentou, mas não, pelo menos à primeira vista, no cristão campo de Salamanca em que o romance foi recolhido. Ninguém, nem os camponeses nem os escassos folcloristas que têm se ocupado de sua tradição, tem destilado nada a partir desses enigmas, de modo que toda a secção final do romance tem a consistência dos lapsos e dos sonhos. Mas é precisamente nessa condição sub-reptícia, quando algo que se transmite no relato passa a ser um não dito no metarrelato, que a atenção a um mito pode fazer diferença: ele fala sobre o que é de praxe deixar na sombra. Para encontrar um comentário adequado desse mito devemos passar desse mundo das touradas rurais para o outro, bem mais conhecido, das touradas profissionais.

  • 5 O mundo das touradas organiza uma cultura peculiar e enormemente intrincada, que abrange desde taxo
  • 6 A versão que utilizo é uma posterior (Pitt-Rivers, 2002), aparecida numa revista taurina; uma ediçã
  • 7 Bem resumida por um texto de Germaine Tillion (2000, p. 53, tradução minha), tratando de sua versão

6O mundo das touradas tem uma vasta vertente erudita, que se estende da poesia à história ao ensaio, e no qual a antropologia tem um papel menor. Não faltam estudos antropológicos sobre a infinita variedade do mundo taurino rural, e sobre o seu enraizamento arcaico, mas o mundo das touradas profissionais tem interessado pouco à antropologia profissional. A peça mais famosa a elas dedicada pode ser um ensaio de Julian Pitt-Rivers (1984), que – sem recorrer a esse rótulo – encaminhou o tema das touradas para os estudos de gênero. A tourada é, diz ele, tão obviamente sacrificial – veja-se o estilo sacralizante de todos os detalhes da tourada, muito alheio ao de um espetáculo esportivo – que faz desaparecer uma questão central: qual seria o destino desse sacrifício? Para Pitt-Rivers, seria o de conciliar a relação agônica entre os sexos própria da cultura mediterrânea. A tourada põe essa conciliação em mãos de um oficiante, o torero, que na festa aparece inicialmente como sacerdote-sacrificador, transforma-se depois numa mulher sedutora e vai se retransformando em homem até chegar ao momento do sacrifício em que a espada penetra numa ferida prévia do touro, comparável a uma vagina aberta. A interpretação de Pitt-Rivers pode ser exotizante e excessiva, especialmente nesse ponto final, mas toda ela, em conjunto, alude a associações simbólicas facilmente perceptíveis, a uma sexualização muito explícita dos ingredientes da festa. As touradas, segundo Pitt-Rivers, equilibrariam a relação agônica entre o masculino e o feminino: constituiriam assim um desses rituais de têmpera funcionalista, capazes de resolver no plano das fantasias as tensões irresolúveis da vida cotidiana.

7A minha interpretação segue as linhas gerais da interpretação de Pitt-Rivers, e de Delgado Ruiz – à qual aludirei mais tarde –, que a revisou parcialmente. Mas o faz seguindo caminhos paralelos: aproveitando alguma de suas observações, acrescentando outras, e se desmarcando de sua conclusão.

8É explícito para os nativos, taurinos ou antitaurinos, que as touradas são uma encenação da masculinidade. A associação do touro com a virilidade não precisa ser detalhada, mas o é em todos os terrenos, da retórica ao artesanato à culinária. O torero, da sua parte, põe em jogo todo o repertório masculino: coragem física, desprezo do perigo e da dor, domínio, sobranceria. Não apenas na arena: o torero seria um objeto eminente de desejo feminino. De um desejo perigoso, pois casar com um torero condena a um sofrimento polivalente (apenas superado por quem é ao mesmo tempo – algo nada incomum – esposa e mãe de torero). Uma norma não escrita das touradas veda a presença da esposa do matador no espetáculo, de mau agouro; e as ficções poéticas – sem excesso de fantasia – sempre outorgam a este uma ou várias amantes, sobre as quais não pesa esse tabu. A presença e a atitude das mulheres na tourada são, por assim dizer, marginais à sua gramática e essenciais à sua pragmática. Elas não têm papel nenhum no rito, mas a sua presença – e às vezes seu entusiasmo explicitamente tingido de erotismo – enfatiza o sentido da atuação do torero.

9Não há como negar essa glorificação da masculinidade que aparece em primeiro plano; mas ela é apenas um elemento de um complexo em que há outras associações contrárias. A começar pelo mais visível: o traje do torero, elaborado segundo uma moda do século XVIII – quando as touradas foram regulamentadas na sua forma atual – tomou mais tarde conotações femininas. Pitt-Rivers não duvidou à hora de definir o torero como um travesti – de fato, tem sido por vezes fonte de inspiração para a moda feminina espanhola. Exatamente o mesmo pode se dizer das suas posturas, passos e gestos, e de toda a técnica e a apresentação corporal do torero. Sem que haja, que eu saiba, normas explícitas a esse respeito, a ideia de um torero barbado é incongruente; pelo contrário, é compulsório o uso de uma coleta – pequeno rabo-de-cavalo ou coque –, signo do torero na ativa. Em épocas em que esse arranjo de cabelo era intolerável para um homem, a coleta podia consistir num aplique colocado na nuca do torero apenas para o momento da tourada.

  • 8 “Muito touro para pouco torero” é, por exemplo, um modo frequente de aludir à superioridade (uma su

10De um modo mais sutil porém mais contundente, o vocabulário da tourada (especializado e extensíssimo), tem sido uma fonte sempre disponível do vocabulário da sedução. Praticamente qualquer termo e qualquer evento da tauromaquia pode se aplicar à descrição do encontro erótico entre homem e mulher – dentro de uma concepção mal adaptada, com certeza, à ética amorosa atual. Isso, aliás, de um modo simétrico: mulher e homem podem, nesse jogo verbal, ocupar igualmente a posição do touro. Na arena, frente ao touro, o torero não está em funções de macho: sua ação é sempre mínima, sutil, aparentemente passiva; ele provoca, incita, elude. Mesmo no momento de matar, a força que afunda a espada no corpo do touro deve ser também a da sua investida, e portanto essa “hora de la verdad” é o momento de mais perigo para o torero, porque sem o chamariz alternativo do pano, as hastes do touro vão dirigidas diretamente sobre seu corpo. O motivo mais comum de morte de toreros tem sido a perfuração da virilha, com hemorragia da artéria femoral. E, como Pitt-Rivers cuida de destacar, o torero não pode, nesse momento, tirar o corpo fora, usando a espada de lado, o que seria “assassinar o touro” e não matá-lo. A analogia desse momento culminante com uma cópula mortal, que às vezes pode ser recíproca, dispõe de muitos índices a partir dos quais se explicitar, embora a exegese nativa o evite discretamente.

  • 9 A mesma coisa pode se dizer a respeito da homossexualidade de um e outro torero, conhecida ou event

11É bom lembrar que, embora muito rara, existe a torera, e ela não é em absoluto uma inovação pós-moderna: já houve toreras no século XVIII – Goya retratou alguma, nas suas gravuras de touradas – e, embora sua ação na arena, com o mesmo traje e a mesma prática, suscite opiniões contrárias entre os taurinos, ela não altera em absoluto o rito e o status de uma tourada. Já a substituição de um touro por uma vaca seria absolutamente impensável; os festejos com vacas estão a rigor fora da tauromaquia, e não incluem a morte do animal. O verdadeiro e insubstituível macho da tourada é o touro.

  • 10 As touradas a cavalo continuam a existir, mas são vistas pelos taurinos como um gênero “menor”. E d

12Manuel Delgado Ruiz (1986), no seu livro sobre as touradas, partiu das ideias de Pitt-Rivers para dar um passo mais nessa interpretação generizada da festa e fazê-la mais sociológica e mais política. Em lugar de um confronto paradigmático masculino/feminino, ele identifica na tourada profissional uma teoria implícita da socialização. O homem é um bruto sem domar, e sua domesticação, sua redução ao mundo do trabalho e da família fica por conta da mulher, que recorre para isso à sedução e à sexualidade; os instintos podem ser redirecionados para a (re)produção se há uma mulher em funções civilizadoras que se ocupe disso. O que pode ser visto na arena é a amplificação trágica desse processo: o progressivo desgaste da besta entre seduções e feridas. Para que a tourada aconteça, o touro deve morrer; para que a vida social aconteça, o homem deve também morrer enquanto touro. Vale a pena lembrar que esse homem é um proletário, urbano ou rural: com raras exceções, o torero surge desse meio, e a própria tourada na sua forma clássica – tourada a pé – significou, no século XVIII, o triunfo do protagonismo popular num universo festivo até então próprio da aristocracia, que realizava as touradas a cavalo.

  • 11 Num artigo posterior de título provocativo (Delgado Ruiz, 2000), o autor indica que essa mesma aleg

13A interpretação de Delgado Ruiz não está muito longe de um discurso quase explícito entre as classes populares espanholas: formula uma associação simbólica que é, certo, a de uma cultura subalterna que está em franco retrocesso, em meio a vastas mudanças do mercado de trabalho, da instituição familiar e dos papéis de gênero. Embora nas polêmicas entre taurinos e antitaurinos os argumentos ligados ao gênero sejam muito secundários, essas últimas mudanças têm tido um papel de destaque na progressiva rejeição às touradas: essa mensagem implícita que sugerem Pitt-Rivers e Delgado Ruiz pode parecer tão intolerável como a própria festa que as codifica.

14Dentro de um seminário que tratou comparativamente das relações de gênero na Amazônia e na Melanésia, Marylin Strathern (2001, p. 226) incluiu uma formulação irretocável da sua tese de que o gênero não é uma superestrutura do sexo:

Men and women are sources of metaphors about maleness and femaleness, but in combination as well as separation, and this I take as the most interesting relationship between them.

15Assim, os signos do masculino e do feminino não correspondem exclusivamente a homens e mulheres: são patrimônio de ambos, potências ativadas em função de relações concretas. No mesmo volume, as contribuições de alguns etnólogos como Descola (2001, p. 91-114) sugeriam um papel menor da dualidade de gênero nas sociedades amazônicas, ou a rigor seu englobamento pela oposição entre consanguinidade e afinidade. Ou seja, por uma relação com o Outro que se manifesta plenamente na caça, na guerra e no canibalismo (Viveiros de Castro, 2000) e que assim equaciona as relações de afinidade (e gênero) com as que se estabelecem entre espécies. Não por acaso, os dramas matrimoniais contados pelos mitos ameríndios enfrentam cônjuges humanos e animais. O argumento melanésio de Strathern poderia se estender assim à relação amazônica entre humanos e animais – se aproximando muito, desse modo, à definição lévi-straussiana do totemismo: a diferença entre as espécies, como a diferença entre os sexos, é uma fonte de metáforas para qualquer outra relação inter ou intragrupal. Não se trata tanto de oposição entre humanos e animais, mulheres e homens, mas entre potências que são ativadas dependendo da relação focada em cada momento.

16Os meus comentários a respeito das touradas podem ser organizados de acordo com esse conjunto de ideias. A tourada coloca em cena os papéis de gênero, mas não – como poderia parecer à primeira vista – representados por homens e mulheres, senão como qualidades distribuídas entre um conjunto de atores que inclui todos os humanos e os animais implicados na festa. Do mesmo modo que o contraste entre animal e humano transcende os limites do encontro entre o touro e o humano para ser um sinal também da relação entre homens e mulheres. Os gêneros se opõem como espécies na mesma medida em que as espécies se opõem como gêneros.

  • 12 Essa possibilidade aparece, no entanto, como milagre em alguns velhos rituais rurais como o do Tour

17Esse jogo é suscetível de múltiplas realizações de um canto a outro do planeta: a das touradas se distancia claramente dos modelos “melanésio” e “amazônico” aos quais acabo de aludir. A diferenciar as touradas do complexo da predação amazônica concorre especialmente o conceito de bravura, que deve ser completamente separado de noções como “selvagem” ou “natural”. O touro bravo não é um animal “selvagem”; ele procede de um espaço aberto onde se cruzam a vida selvagem e a agricultura e sua própria agressividade é culturalmente induzida (veja-se infra, nota 15). A bravura faz parte de um inventário de virtudes – atribuídas ao touro – tipicamente humanista, fazendo par especialmente com a “nobreza”. Por outro lado, as relações entre o ser humano e o touro não são percebidas como equivalentes a relações de afinidade/inimizade (como as que no modelo amazônico encarnam as diferentes espécies), pois é a filiação o que fica em destaque: o touro leva a marca do seu criador e, junto com seu nome próprio, cada touro é conhecido também pelo sobrenome desse criador: ele é “um Mihura”, “um Vitorino”. O touro bravo equidista entre o selvagem e o doméstico (como entre o consanguíneo e o afim): é um devir que parte do primeiro num movimento nunca completo ao segundo, e que nunca se resolve na domesticação. A bravura pode ser burlada pelas astúcias da arte, mas isso nunca transformará o touro em xerimbabo, nem as touradas em rodeio ou em circo.

18Comparando as touradas com os rituais melanésios de Strathern (1988), é outro contraste o que vem à luz: nestes, a reprodução sexuada dos porcos é englobada no trabalho doméstico da mulher que por sua vez é englobado na ação ritual pública do homem: a culminação do processo é uma troca entre homens. As touradas são, pelo contrário, fruto de um trabalho marcadamente masculino (lembre-se, como exemplo extremo, aquela função nutriz do vaqueiro de Monleón) e o feminino aparece em destaque precisamente no produto final, seja no aspecto feminino do matador, seja na presença de mulheres como destinatárias da morte do animal. A dualidade de gênero não se instala na produção da festa mas na sua consumação; não está na sua infraestrutura mas na sua expressão.

19Num artigo sobre o universo simbólico do catolicismo rural espanhol (Calavia Sáez, 1997), eu mesmo tracei um contraste entre metáforas vegetais – as múltiplas aparições da árvore sagrada – e metáforas animais, quase todas elas taurinas. Quando não incompatíveis, esses dois conjuntos dividem seus domínios com nitidez, e o meu artigo correlacionava isso com diferenças ambientais (de um lado, a relação entre a aldeia e o bosque; do outro, a relação entre aldeias separadas por interstícios que incluem, é claro, as fazendas de criação do touro bravo), mas sobretudo com um registro sociológico. As metáforas “vegetais” acompanham representações do social em que a aliança e a própria sexualidade que a fundamenta são elididas, e a comunidade se postula como um corpo que se perpetua por si mesmo, como essas árvores sagradas que, real ou aparentemente, se reproduzem mediante algum modo de clonagem. Já no universo “do touro” as dualidades agônicas – entre comunidades vinculadas por alianças e inimizades tradicionais – passam a primeiro plano, junto com a sexualidade que lhe serve como metáfora geral ou como pretexto histórico. Pensar vegetalmente aponta para a autoctonia, para a encenação ritual ou narrativa de um mundo endógamo, daquela famosa “doçura de viver entre si” de que Lévi-Strauss falou. Pensar animalmente aponta para a cisão, para o conflito. Para a sexualidade, na medida em que o sexo é a primeira das cisões humanas ou o motivo preferido de disputa.

20O romance de Los mozos de Monleón, com que iniciamos a análise, tem a virtude de reduzir todo este último conjunto à sua mínima expressão, constituindo algo assim como o átomo da tauromaquia: a filiação cindida segundo gêneros (mãe/filho), a identidade cindida segundo espécies (humano/touro) e, mediando entre um lado e outro, essa aproximação entre gestação e morte. As touradas não apenas põem em jogo as dualidades mais básicas com que uma cultura pode ser construída, como o fazem nas versões mais fortes destas, e com a morte como mediadora – toda uma tragédia.

  • 13 Veja-se, para um caso de tauromaquia rural brasileira, a coletânea de Bastos (1993).
  • 14 A má tradução é assumida pelos antitaurinos quando se referem, por exemplo, à vileza de uma luta de
  • 15 Há uma possibilidade excepcional de indulto do touro que mostrou uma excelência muito além do comum
  • 16 As mortes de toreros na arena se tornaram raras no último meio século da festa; eram antes um desti

21Delgado Ruiz conclui seu livro falando da tourada como um dos raros exemplos de rito sacrificial que sobrevivem num mundo avesso ao próprio conceito de sacrifício. A identificação da tauromaquia como sacrifício, como Pitt-Rivers já percebeu, é uma constante dos trabalhos a respeito, muito mais como axioma que como argumento. Talvez não pareça necessário argumentar: a tourada é trágica, não dramática nem competitiva: o próprio termo “tauromaquia”, – como o termo bullfight com que é conhecida em inglês – é uma péssima tradução. Na tourada ninguém duvida sobre o desfecho, e deve ser o único espetáculo do presente ao qual se assiste sabendo que pelo menos um dos seus protagonistas morrerá. Nada de fundamental se altera – muito pelo contrário – nos casos em que o torero também morre. Por muito que a morte de um torero possa ser descrita na hora como um acidente indesejável, ela é uma culminação, um “sacrifício perfeito” por cima do sacrifício habitual. A glória suprema é a do torero morto na arena: os monumentos taurinos comemoram esse episódio. A morte do torero Paquirri galvanizou no começo dos anos 1980 uma festa que passava por um mau momento, e algo parecido aconteceu, mais recentemente, com as atuações temerárias de outro torero, José Tomás: as imagens que o mostravam continuando na lida totalmente ensanguentado correram mundo, e fizeram mais por manter o prestígio da festa que todas as declarações de patrimônio cultural.

  • 17 Em que pesem as pitadas de catolicismo popular espalhadas pelo meio taurino, e ao já citado aspecto

22E no entanto toda essa glosa sobre o sacrifício esbarra num problema léxico: as touradas não são “um sacrifício” em nenhum dos sentidos que esse termo tem em espanhol. Nada tem a ver com o sacrifício cristão: a teologia cristã conta com um sacrifício fundador que exclui doravante qualquer outro sacrifício independente, e se renova mediante um ritual, o da missa, visivelmente incruento. Sejam quais sejam os vínculos das touradas com o cristianismo, eles estão “ao lado”: ninguém pretende ganhar o céu com elas. O uso corriqueiro do termo “sacrifício” em espanhol é acintosamente dessacralizado: ou bem designa o abate utilitário de animais, ou aponta a noções de restrição, de austeridade, de poupança para algum investimento.

23As touradas são um sacrifício apenas para os antropólogos, mas mesmo nesse caso falta também essa dimensão “vertical” que nas teorias clássicas faz do sacrifício o modo essencial de relação com a divindade. As touradas não servem para consagrar um poder religioso ou político, não produzem qualquer noção de totalidade social ou religiosa, não são um símbolo do Estado mesmo quando o chefe de Estado as preside: ele está “ao lado” também, em nenhum momento o foco da festa se desvia em sua direção.

24A tourada, em geral, não produz: é claro que ela sustenta um enclave na economia espanhola, com alguns milhares de empregos vinculados às mil e uma destrezas exigidas para a criação do touro, a preparação dos trajes, o adestramento dos toreros e os mil e um ofícios de um espetáculo barroco; mas, globalmente, é uma festa muito dispendiosa que precisa de subsídios. As análises de Pitt-Rivers ou Delgado Ruiz, relevantes se pensarmos em alegorizações mútuas do ritual e a vida profana, se perderiam se quisessem se impor em termos de eficácia simbólica; ninguém espera obter das touradas algo assim como integração social, harmonia entre os sexos (em que pese a Pitt-Rivers) – ou uma válvula de escape à violência social, como já pretendeu alguma interpretação etológica canhestra. A melhor prova disso pode ser a dificuldade que os taurinos têm para encontrar argumentos favoráveis à sua festa que não se remetam à sua discutida estética: as touradas são um fim em si mesmas, não produzem mais nada.

  • 18 Os comentários sobre a tauromaquia de Leiris (2001) flertam nesse sentido com as ideias de Bataille

25Contudo, as touradas foram durante muito tempo, e para boa parte da população espanhola, um centro da vida, esse tipo de jogo absorvente de que Geertz falou, ou esse fato social total de Mauss. Um papel que só faz sentido se passarmos de entender o sacrifício como produção de algum tipo de efeito a entendê-lo, parafraseando Bataille (1949), como dispêndio final, como consumo último que coroa um sistema de produção, como coda destrutiva que finaliza uma construção social. Uma sociedade está em mãos não de quem produz, mas de quem determina e controla seu modo supremo de consumo. As touradas, tão difíceis de encaixar em algum ramo de atividade – Arte? Esporte? Cultura? – se definem espontaneamente como a contra-atividade por excelência, elas são La Fiesta.

26Outrora despercebidas entre tantos outros divertimentos que implicavam animais, as touradas passaram a atrair o interesse dos artistas e intelectuais europeus a partir de finais do século XVIII – quando começaram a se sobressair como um espetáculo de imolação gratuita, cada vez mais isolado no meio de um mundo justificado pela utilidade. No início do século burguês, as touradas representavam o escândalo de um povo que, em lugar de velhos heróis (reis e cortesãos) ou novos heróis (homens de ciência, intelectuais, empresários) cultuava matadores. Ou o de um país, obviamente atrasado na carreira do progresso, em que a máxima expressão do consumo público estava não em mãos de suas elites (como a ópera), mas cifrado numa festa popular – popular pelos seus protagonistas e pelo seu público. Foi, diga-se de passagem, a única “revolução” chegada a termo num país cujas estruturas de poder permaneceram imutáveis: a nação passou a ser simbolizada por um festejo popular, no qual foram se condensando todos os dilemas e as aporias. Não é que as relações de gênero tivessem que recorrer às touradas para se exprimir ou para se equilibrar simbolicamente; foram as touradas que incorporaram o imaginário do gênero no mesmo movimento em que iam incorporando o do conflito político (a guerra civil como tauromaquia), o da religião (o cristianismo como religião de morte), ou a própria descrição geográfica do país (a península Ibérica como uma “pele de touro”). A tourada foi capaz de significar tudo, antes de tornar-se, para boa parte da sensibilidade contemporânea, um ritual sem sentido.

  • 19 Num exame da literatura clássica espanhola chama a atenção a ausência quase total do gênero “tragéd

27O discurso sobre as touradas tem insistido em vê-las como a expressão – sublime ou lamentável – de um país trágico. Mas creio que esse discurso deveria se inverter: nada na cultura espanhola indicava um gosto pela tragédia até que as touradas forneceram essa clave de interpretação para uma história nem mais nem menos trágica que outras.

28Apesar do que disse pouco antes, os taurinos vêm ensaiando argumentos novos para além dos exauridos apelos à estética e à tradição, e dentre eles merecem destaque os ecológicos: os taurinos argumentam que é o negócio das touradas o que sustenta grandes áreas de bioma “nativo” na península, as dehesas em que os rebanhos de gado bravo são criados no meio de uma vegetação de sobreiros e azinheiras e de uma ampla fauna selvagem. Eventualmente fazem contrastar a vida em liberdade das manadas de bravos (garantida pela morte violenta da maior parte de seus machos) com o tratamento do gado pela indústria da carne, e costumam provocar os adversários dizendo que seus argumentos só seriam válidos em boca de vegetarianos. Os antitaurinos entendem tudo isso como sofismas repugnantes: o espetáculo cruel não tem sequer a desculpa utilitária de granjas e matadouros, e quanto à preservação ambiental espera-se, talvez ingenuamente, que ela seja assumida pelo Estado, mantendo essas áreas junto com o próprio gado de lidia.

  • 20 Uma parte essencial da criação de gado bravo consiste na seleção dos reprodutores mediante touradas
  • 21 Isso denota uma ignorância real ou tática do que acontece numa praça de touros, onde a situação básica é de silêncio, quebrado em momentos especiais por músicas, aclamações, assobios ou vaias. Uma das situações em que as vaias proliferam é quando o touro não ataca (embiste) e fica indiferente às provocações, o que acontece com uma certa frequência. Mas nesse caso o objetivo não é exasperar o touro, mas exigir sua substituição; o touro então é retirado e sacrificado pelos métodos habituais de um matadouro.