Quais são os dois princípios que a legislação falimentar aponta que serão atendidos pelo processo judicial de falência?

Em último artigo se analisou a única hipótese expressa de aplicação da Lei 14.112/20 — e, portanto, da Lei 11.101/05 (LRF) — às falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45. Trata-se do artigo 158, V, da LRF c.c. artigo 5º, §5º da Lei nº 14.112/20, o qual passou a permitir a extinção das obrigações do falido como consequência imediata da declaração do encerramento da falência.

Quais são os dois princípios que a legislação falimentar aponta que serão atendidos pelo processo judicial de falência?
A despeito dessa regra, não se ignora que o artigo 75 da LRF evidenciou a existência de princípios gerais falimentares, os quais, até por sua conformação genérica e abstrata, não poderiam ficar adstritos exclusivamente ao procedimento falimentar disciplinado pela LRF. Indaga-se se eles se aplicam também às falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45 e, em caso afirmativo, se há alguma restrição à sua incidência, diante de procedimentos tão distintos.

A redação do artigo 75, §2º da LRF traz disposição reveladora: a falência, mais do que uma forma de liquidação forçada de uma empresa inviável ou uma execução coletiva[1], consiste em mecanismo de preservação dos benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial. Disto decorrem dois aspectos interessantes.

O primeiro, e talvez o mais evidente, é constatar que existe um interesse social, distinto e não necessariamente coincidente com o do devedor e de seus credores, o qual parece ser a justificativa para a existência de um microssistema da insolvência próprio para o empresário, distinto do regime geral de insolvência civil, disciplinado pela legislação processual civil. Tal interesse social que se encontra na preservação dos benefícios advindos da atividade empresarial. Razoável concluir, desse modo, que assim como a recuperação judicial, também a falência é forma de preservação da empresa, sendo que a primeira se destina a empresários em crise e, a última, aos insolventes.

Outro aspecto interessante da nova redação do artigo 75, §2º da LRF é o que descreve a falência como mecanismo, o que destaca a importância que o processo exerce para o sucesso do instituto falimentar. Reforçando essa compreensão, observa-se que o artigo 75, §1º da LRF reitera que o procedimento falimentar deve atender aos imperativos da celeridade e da economia processual.

Disto se conclui que o mecanismo representado pela falência deve desenvolvido por meio de processo célere e eficiente, voltado ao atendimento de finalidade específica, distinta e não excludente dos escopos gerais do processo[2], a qual corresponde à preservação da empresa que, até o início desse procedimento, era desenvolvida pelo empresário insolvente.

Trata-se de percepção que reforça a instrumentalidade do processo[3] falimentar, acentuando a importância de ele e todos os atos processuais nele praticados sirvam ao propósito de atingir o resultado de ser meio efetivo à preservação da empresa.

A Lei 14/112/20 ainda revelou que as estruturas centrais que impulsionam e movimentam esse mecanismo, permitindo o seu adequado funcionamento e assegurando os resultados pretendidos, são, segundo o artigo 75, I, II e §2º, a liquidação imediata do devedor e a rápida realocação útil de ativos na economia, preservando e otimizando os recursos produtos da empresa.

O legislador da reforma contextualizou, portanto, os atos de liquidação do devedor e realocação útil de ativos na economia, indicando que, mais do que meramente atos de liquidação de ativo, são meios pelos quais se concretizam a finalidade legal de preservação da empresa. Sem que eles ocorram, o mecanismo do processo falimentar jamais atingirá os seus propósitos, fixados pelo legislador. Esses meios não são um fim em si mesmos e tampouco devem ser conduzidos em atenção meramente ao interesse do devedor de encerrar suas atividades ou dos credores de quitarem seus créditos.

A compreensão de que a falência é um mecanismo por meio do qual se concretiza o objetivo legal da preservação dos benefícios da atividade empresarial confere outra compreensão ao instituto[4], distinta da sua definição tradicional, circunscrita às figuras do devedor ou credor. Indica que dentre todos os interesses que convergem no processo falimentar — de cada uma das classes de credores, do devedor, dos sócios dos devedores, de terceiros interessados — as soluções a serem adotadas devem ser escolhidas por proporcionarem melhor atendimento aos objetivos fixados pelo legislador. Trata-se, portanto, de vetor interpretativo que deve ser orientar a solução de conflitos que surgirem ao longo do processo falimentar.

A reforma revela, ainda, a importância que o tempo desempenha no processo falimentar e que deverá orientar, também, a realização de diversos atos processuais, em especial aqueles destinados à alienação de ativos.

Em diversos momentos o artigo 75 chama atenção ao tempo do processo: "permitir a liquidação célere" (artigo 75, II), "viabilização do retorno célere" (artigo 75, III), "(...) atenderá aos princípios da celeridade (...)" (artigo 75, §1º), "liquidação imediata do devedor" (artigo 75, §2º) e "rápida realocação útil" (artigo 75, §2º).

A preocupação com o tempo demonstra que a busca pela celeridade é crucial no entender do legislador para o funcionamento do mecanismo falimentar, sem o que os objetivos legais serão frustrados.

A reflexão realizada permite concluir que a nova redação do artigo 75 da LRF congregou diversos valores inerentes à própria existência do instituto jurídico falimentar, e, por consequência, relevou princípios gerais desse ramo do direito[5]. Destarte, muito embora sejam distintos os procedimentos da falência do Decreto-Lei nº 7.661/45 e da Lei nº 11.101/05, não podendo um ser aplicado ao outro por força do artigo 192 da LRF[6], é fato que tais princípios gerais falimentares se aplicam indistintamente a ambos.

Dispõem os artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) que: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" e "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

A Lindb consiste em código de normas que tem por finalidade disciplinar mecanismos de integração das normas e critérios de hermenêutica jurídica[7], destinado a assegurar a unidade e coerência do ordenamento jurídico[8]. Consequentemente, diante do quanto dispõe a Lindb, não há como se sustentar que um princípio geral de um determinado instituto jurídico, no caso, a falência, seja aplicado apenas a um determinado procedimento.

As regras que impõem ao intérprete dever geral de assegurar unidade e coerência ao ordenamento jurídico, conduzem à compreensão de que regra do artigo 192 está adstrita à disciplina em si do processamento das falências, não podendo, todavia, afastar a incidência de princípios gerais falimentares ao decreto. Não haveria sentido em se considerar apenas a falência regida pela Lei nº 11.101/05 como um mecanismo para a preservação dos benefícios da atividade empresarial, mas não a falência regida pelo decreto.

A conclusão de que os princípios gerais falimentares revelados na nova redação do artigo 75 aplicam-se, também, às falências regidas pelo Decreto-Lei nº 7.661/45 provoca interessantes reflexões sobre as alterações promovidas em seu regime jurídico. Em último artigo, comentou-se sobre os impactos do princípio do célere retorno do empresário à atividade empresarial e o regime jurídico de extinção das obrigações do falido para falências regidas pelo decreto, com derrogação expressa do artigo 192 da LRF nesse ponto. Pretende-se, no próximo, comentar o impacto no regime jurídico de alienação de bens.


[1] Rubens Requião, que em seu curso aponta que o instituto da falência pode ser entendido por um duplo aspecto jurídico, de direito material e de direito processual, mas, em qualquer caso, nota-se que a definição do instituto é centrada na figura do devedor: ‘Da primeira corrente, temos como exemplo a do jurista José da Silva Pacheco, que apresenta a definição: “A falência é o processo através do qual se apreende o patrimônio do executado, para extrair-lhe valor com que atender à execução coletiva universal, a qual concorrem todos os credores”. A definição dá uma visão parcial do amplo instituto falimentar. (...) A falência, na realidade, propõe uma solução para a empresa comercial arruinada: ou a liquida, ou proporciona sua recuperação. Assim, se substituíssemos a expressão liquidação judicial por solução judicial, poderíamos apresentar uma definição razoável par ao instituto. A falência é, no nosso entender, a solução judicial do devedor-comerciante que não paga no vencimento obrigação líquida.” (Curso de Direito Falimentar, Editora Saraiva, 1º volume, 1998. fls. 5/6).

[2] “Os escopos do processo são de natureza social, política e jurídica. O primeiro escopo social, que é o principal entre todos eles, é a pacificação de pessoas mediante a eliminação de conflitos com justiça. È essa em última análise a razão mais profunda pela qual o processo existe e se legitima na sociedade. Outro escopo social é o de educação das pessoas para o respeito a direitos alheios e para o exercício dos seus (....) Entre os escopos políticos do processo está o de dar amparo à estabilidade das instituições políticas. (....) Finalmente, o escopo jurídico do processo é a atuação da vontade concreta do direito”. (DINAMARCO, Cândido Rangel, e  LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil – de acordo com a Lei 13.256 de 4.3.2016, Malheiros. 2016, fl. 20).

[3] Sobre o conceito de instrumentalidade do processo: “O raciocínio teleológico há de incluir então, necessariamente, a fixação dos escopos do processo, ou seja, dos propósitos norteadores da sua instituição e das condutas dos agentes jurisdicionais que o utilizam.”. (DINAMARCO, Cândido Rangel, e  LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. op. cit., fl. 20).

[4] Conforme ensina a Professora Paula Forgioni: “A função do direito comercial ata-se, assim, à implementação de políticas públicas; não se esgota na busca do incremento do tráfico, desdobrando-se também na determinação do papel que o mercado desempenhará na alocação de recursos em sociedade.” (A evolução do Direito Comercial Brasileiro: da mercancia ou mercado. Editora Revista dos Tribunais, 2009. fl. 23).

[5] “Os princípios gerais do Direito poderiam ser cogitados como uma de suas fontes formais, se definidos como a cristalização, em termos abstratos, do conjunto de preceitos normativos do ordenamento legal. Noutra significação, sua exposição não interessa na sede desta matéria, mas sim, na temática da interpretação da lei, por isso que servem para preencher lacunas e ajudam a determinação do alcance e do verdadeiro sentido da lei. (...) A generalibus júri principiis, da qual deve ser extraída a decisão judicial quando a lei for omissa, falhe a analogia e não existam costumes adequados, tem como determinante o “espírito da ordem jurídica”, que se manifesta através de “valorações da camada dirigente”, como ultimum refugim do juiz. Não devem ser entendidos como princípios de validade geral, segregados pelo direito natural ou pelo direito justo, e absolutos, mas como princípios histórico-concretos, pertencentes a determinada ordem jurídica. Nessa perspectiva, quando o juiz encontra solução do caso concreto valendo-se de ideias jurídicas gerais expressa no ordenamento legal, ele fundamenta a sentença ainda na lei.” (GOMES, Orlando. Atualizador: Humberto Theodor Junior. Introdução ao Direito Civil. 13ª edição. Editora Forense, Rio de Janeiro, 1998, fls. 49/50).

[6] “Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945.”.

[7] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada. 19ª edição. Saraivajur. fl.23.

[8] “Ao lado do princípio da plenitude do ordenamento jurídico situa-se o da unidade da ordem jurídica, que pode levar-nos à questão da correção do direito incorreto. (...) O sistema jurídico deverá, teoricamente, formar um todo coerente, devendo, por isso, excluir qualquer contradição do direito. Para tanto, o jurista lançará mão de uma interpretação corretiva guiado pela interpretação sistemática (LINDB, arts. 4º e 5º), que auxiliará na pesquisa dos critérios a serem utilizados pelo aplicador do direito para solucionar antinomias.”  (DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada. 19ª edição. Saraivajur. fl.23.

Maria Rita Rebello Pinho Dias é juíza titular da 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital de São Paulo, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP e doutora em Processo Civil pela USP.

Quais os princípios que regem a falência?

Aqui se destacam dois importantes princípios do direito falimentar: (i) o princípio da preservação da empresa e (ii) o princípio da maximização dos ativos. De fato, sabendo-se que empresa é uma atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços (art.

Quais são os três princípios basilares do direito falimentar?

Dessa forma, a Lei 11.101/2005 foi editada, tendo como princípios basilares a preservação da empresa, a proteção aos trabalhadores, e por fim os interesses dos credores.

Quais são os principais objetivos do processo de falência?

A falência, lei 11.101/05, tem por finalidade afastar o devedor de suas atividades empresariais, visando a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens ativos recursos produtivos tangíveis e intangíveis da empresa.

São princípios aplicáveis à falência e ou a recuperação judicial?

A recuperação judicial se funda em alguns princípios basilares, nos quais é constituída sua legislação. A lei 11.101/2005 tratou de consagrar os princípios da preservação da empresa e da função social da empresa, que são princípios norteadores para a interpretação de todos os artigos da referida lei.