Qual a importância da construção de uma identidade nacional para o Estado Novo?

1O surgimento do nacionalismo liberal clássico do século XIX na Europa coincidiu com o període da independência das colônias sul-americanas. No Brasil, o contexte político e social era marcado pelas preocupações referentes à manutenção da unidade territorial e, no período pós-independência, pelo advento do romantismo e pela relevância em torno das questões referentes à formaçâo da nacionalidade. Enquanto na Europa, os debates localizavam-se em torno de questões concernentes à incorporação do povo na vida política, no Brasil, buscava-se um modelo de Estado e de naçáo centrada sobre a noção de caráter nacional.

2O nacionalismo brasileiro não aparaceria no periodo que antecedeu a independência, mas esse seria precedido da idéia do nacional – daquela que revelava antes de um sentímento de apego ao local de nascimento. O final do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte viram nascer uma forte ideología do caráter nacional brasileiro e uma nova forma de pensar a nacionalidade brasileira, atrelada a preocupação da construção da identidade nacional. As ideologias do caráter nacional brasileiro seguiram de perto os esquemas das doutrinas européias, embasadas na tese do determinismo geográfico ou da antropogeografia, que ligava o povo ao ambiente geográfico e à formação de um grupo racial. Estava présente a proposição eugênica da possibilidade de existência de uma única raça national, idéia essa que viria a influenciar a imigração de grupos desejáveis, como alemães e italianos, que viriam embranquecer o país. Sabemos, porém, que a homogeneização da identidade nacional e cultural jamais viria a ocorrer, uma vez que tratava-se de uma ideologia política. No entanto, esta ideologia logrou grande eficácia em termos de exclusão.

3O que propomos nesta breve exposição é analisar os elementos présentes em torno das discussóes a cerca da construção da identidade nacional brasileira, limitandonos ao período imediatamente anterior e posterior à independência. Não aprofundaremos nos conceitos de nação e nacionalismo, devido à brevidade de nossa exposição, mas tão somente apresentaremos algumas questões em torno das quais giravam os debates a respeito da formação de nossa identidade nacional.

Sentimento nacional em fins do século XIX e início do século XX

4Marcado por inúmeras révoltas populares, o século XIX, viu nascer um sentimento nacional, mesmo que este sentimento tenha se expressado com mais vigor no século XX. O periodo pós independência foi marcado por um forte sentimento antilusitano e pela tentativa de descoberta do passade histórico do pais, onde foram priorizados aspectos ligados à natureza e à pátria, elogiada em inúmeras produções literárias.

5Momento importante de construção do Estado brasileiro, o final da primeira metade do século XIX, correspondeu no campo literário às primeiras produções dos aurores brasileiros chamados románticos. O romantismo no Brasil, como movimento literário, como preferem denominar alguns autores, ou campo literario de acordo com outres, correspondeu ao momento histórico da afirmação de sua independência face à Portugal e de sua inserção na chamada modernidade a exemple das nações européias e dos Estados Unidos. A imagem do conquistador português deveria ser varrida da jovem pâtria para que pudesse ser construida uma nova.

6Não pretendemos neste artigo nos demorarmos nas especificidades literárias produzidas no Brasil e táo pouco apresentar uma ordem cronológica a respeito, mas tão somente expor a importância do romantismo e do modernismo no que diz respeito a questão da construção do sentimento nacional brasileiro.

7O romantisme procurava nossas particularidades, num momento onde o pais acabava de adquirir sua independência e procurava se afirmar enquanto povo. Dentre os principais aspectos enfatizados por estes autores, podemos citar : o nacionalismo, que se manifestava na exaltação da natureza da pátria ; na valorização do passado histórico do Brasil, com a criação de heróis nacionais, dentro os quais os indígenas.

8Os autores românticos insistiriam no que consideravam ser tipicamente brasileiro, procucando colocar em evidência o que acreditavam ser especificidade nacional. Dentre os principais aspectos priorizados por este movimento está o nacionalismo, que aparecia revestido da exaltação da natureza da nova pátria, manifestando-se igualmente pela valorização do passado histórico brasileiro através da criaçâo de heróis nacionais, particularmente atribuído aos indígenas. Caracterizavam-se ainda pela valorização do sentimentalisme, das emoções e do subjetivismo.

9De grande importância foi a publicação de “Ensaios sobre a história brasileira”, de autoria de Gonçalves de Magalhães na revista Niterói, que marcou o início do romantismo no Brasil. O romantismo se estendeu de 1836 até 1881 e pode ser compreendido a partir de suas três fases ou gerações. Da primeira geração participou Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre, autores que enfatizavam a exaltação da natureza, o retorno ao passado histórico e a “promoção” do indígena à herói nacional, de onde vem a denominação “geração indianista”. Da segunda geração, fortemente influenciada por Lord Byron e Musset, fizeram parte autores como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Fagundes Varela que produziram uma literatura que transparecia sentimentos de pessimisme, dúvidas, desilusões e de exaltação a morte. Incluímos à terceira e última geração brasileira do romantismo Castro Alves, Tobias Barreto e Sousándrade, fortemente influenciados por Victor Hugo e sua poesia politico social.

  • 1 "Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá ; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. (...)

10Autor do romantismo brasileiro, que demonstra um sentimento évidente de identidade nacional, Gonçalves Dias é tido como grande responsável pela consolidação do romantismo no Brasil. Trabalhou temas tais como : a natureza da nova pátria, a religiosidade, o indianismo e o espirito de brasilidade. Em sua poesia, que pode ser considerada nacionalista, o autor faz elogios à pátria em “Canção do Exilio”, evidenciando claramente um sentimento de identidade nacional1.

11A primeira fase do romantisme merece uma atenção especial por estar estreitamente ligada a nosso tema de interesse, a construção do sentimento de identidade nacional. Desta fase participou José de Alencar, que apresentava igualmente claros traços nacionalistas em suas obras.

12Alencar tentou construit uma imagem do Brasil ligando a região norte e sul, do litoral até o interior do pais, o présente e o passado, o urbano e o rural, construindo uma linguagem especificamente brasileira e defendendo o casamento inter-racial entre indígenas e portugueses. Uma de suas características mais marcantes é o tropicalismo, onde priorizava os aspectos ligados às qualidades da região tropical e, ao afirmá-lo, ele não recusou sistematicamente a influência da cultura lusitana sobre a brasileira, salvo no caso onde ela impôs uma condição colonial sobre o ponto de vista literário ou no que concerne a linguagem dos autores portugueses, mais acadêmicos.

13São de sua autoria diverses romances tais como “Sonhos d’Ouro” e “Viuvinha”, que retratava os hábitos de moradores e da vida urbana ; os romances históricos como "As Minas de Prata” e "A Guerra dos Mascates” ; romances regionais como "Sertanejo”, e "O Gaúcho” ; e “O Guarani”, "Ubirajara” e "Iracema”, romances indianistas. Nestes romances, o autor contrastava os dramas da vida cotidiana à natureza onde nenhum detalhe era esquecido, o tamanho das árvores, as quedas d’água, as florestas e a descrição física e psicológica de sens personagens, tidos pelo autor como tipicamente brasileiros. O naturalismo de seus personagens indígenas contrastava com a sofisticação não natural daqueles que se consideravam europeus.

14De estilo literário considerado escandaloso em sua época, José de Alencar, construia uma linguagem diferente daquela utilizada pelos acadêmicos em gérai, modificando algumas palavras do português e fazendo uma adaptação mais brasileira da linguagem. A linguagem tornava-se mais suave ao ser acrescentadas influências da língua "tupi” e "nagô” e igualmente da língua inglesa. Alencar abole os excessos de "ão” e a dureza dos pronomes.

15Poetas tais como José de Alencar e Gonçalves Dias, irão ajudar a construir uma imagem nacional tentando resgatar a idéia do mito do paraíso terrestre, que remontava aos primeiros anos da colonização, mitos esses assentados sobre aspectos geográficos. Como comenta Barros, o romantisme » preocupou-se sobretudo com a busca das peculiaridades nacionais, num período onde podia ser percebido um forte sentimento antilusitano, a preocupação principal destes aurores não era a inserção ou integração da sociedade brasileira à produção cientifica e cultural ocidental, como poderíamos perceber nas gerações que se seguiriam aos românticos.

16O final do século XIX e início do XX é particularmente caro aos nossos estudos uma vez que os autores vão se apegar a temas até então despercebidos ou não abordados. Fazendo parte da literatura deste período, podemos citar o autor Lima Barreto, com seu poema intitulado “O triste fim de Policarpo Quaresma”, lançado em 1911. Policarpo Quaresma, seu personagem principal, é descrito como sendo um homem típico dos primeiros anos da incipiente república, proclamada em 1889.

17O personagem de Lima Barreto se dizia um nacionalista que combatia a mentalidade européia, ou seja, se posicionava contra aqueles que fixavam seu olhar sobre tudo que acontecia na Europa, tida por estes como “modelo de civilização” ainda dentro de um olhar eurocentrista. Policarpo recusava-se, por exemplo, a usar tecidos que não fossem aqueles produzidos no Brasil, assim como botas e alimentes tidos por ele como estrangeiros. Lima Barreto apresenta um sentimento nacional e uma clara necessidade de afirmação da cultura brasileira em detrimento do que considerava excessiva influência estrangeira. De grande importância foi a obra de Euclides da Cunha "Os Sertões”, publicada em 1901, uma vez que o autor se inseria em um movimento de descoberta do Brasil, descoberta esta que se estendeu até o movimento modernista. O autor demonstrava grande interesse pelas regiões do interior do Brasil, então desconhecidas e, igualmente pelos relatos de viajantes e naturalistas.

  • 2 Roberto Ventura apud Madeira, 2001, p. 114.

18A obra referente à guerra de Canudos foi publicada cinco anos após o termine da mesma, e recebeu grande influência do historiador francês Hippolyte Taine. Euclides apresentou uma concepção naturalista onde buscou correspondência entre os fatos narrados e a paisagem. Podia ser percebida uma visão determinista da história uma vez que o autor a considerava como resultante de très fatores : o meio, ou o ambiente fisico ou geográfico ; a raça, considerada responsável pelas disposições inatas e hereditârias ; e o momento, resultante das duas primeiras causas2. Em “O homem”, Euclides da Cunha discorre a respeito das origens do homem americano, da formação racial do sertanejo e os efeitos maléficos da mestiçagem.

  • 3 Roberto Ventura apud Bolle, 2001, p. 115.

19Em “Os sertôes" o autor explicava a guerra de Canudos vista a partir do choque entre dois diferentes processos de mestiçagem : a litorânea e a sertaneja. Elogiou o tipo mestiço do sertão, o quai apresentava certas vantagens em relação ao mulato da região litorânea, devido ao seu isolamento histórico e da ausência de componentes africanos que, para o autor, tornaria mais estável a sua evolução racial e cultural. O sertanejo seria mais forte, uma vez que não apresentaria o raquitismo dos mestiços neurastênicos do litoral. No entanto, Euclides da Cunha afastouse, em parte, do determinismo geográfico, ao admitir ser possivel a amenização dos efeitos produzidos pela seca pela construção de açudes e canais3.

  • 4 Ibid, p. 183.
  • 5 Bolle, op. cit., p. 183.

20Para Willi Bolle, o que torna problemática a denúncia da guerra por Euclides da Cunha é que ele desenvolve um discurso de legitimação da guerra de Canudos, baseando-se no pressuposto do social-darwinismo do esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes, considerando mesmo o aniquilamento dos sertanejos pela “implacável força motriz da história”, segundo expressão de Gumplowicz, como inevitável. Luiz Costa Lima, observa que a denúncia “se manifesta em independência da explicação científica”, ficando limitada a uma declaração humanista4”. Para Berthold Zilly, a obra apresenta um choque entre os valores da civilitas, que é apenas retórica, e o racionalismo instrumental de um civilização que justifica a modernização pela força5.

  • 6 Ibid, p. 172.

21Sua obra apresenta grande anseio de integração histórico-cultural ao clamor por justiça social e pela modernização do Brasil. A partir da obra “Os sertões", o sertão passou a se destacar entre todas as demais regiões brasileiras : não mais como um tableau da natureza, à maneira dos viajantes, dos autores românticos e dos regionalistas, mas uma paisagem política, contendo o retrato do país6.

22Euclides de Cunha ansiava por dar a sua contribuição à construção da nação, nação que complementaria o Estado criado em 1822. O autor sentia a necessidade de définir uma identidade brasileira específica, que se distinguisse dos "princípios de civilização” formulados na Europa e cuja “imitação parasitária" podia ser observado no litoral brasileiro. Euclides via o "cerne vigoroso” da nacionalidade brasileira na rude sociedade sertaneja. Entretanto, o autor elaborou dois diferentes discursos sobre o sertanejo. Por um lado, uma argumentação cientifica e pseudocientífica, assentadas nas teorias racistas que atribui ao sertanejo um “estado mental retardatário” e "um estatuto social inferior” ; por outro lado, uma narrativa de luta onde a coragem é enaltecida, assim como outras virtudes dos sertanejos tidos como verdadeiros heróis.

23A idéia da sociedade sertaneja como "cerne vigoroso da nossa nacionalidade” fazia parte, de um projeto muito abrangente de construção da nação por parte da intelectualidade brasileira, se que estendeu desde os autores do romantismo até os nossos dias. Aurores como Darcy Ribeiro, em "O povo Brasileiro” de 1995, acentuavam a questão étnica, e outros, como José Murilo de Carvalho, em "Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil” também de 1995.

  • 7 Bolle, op. cit., p. 222.

24Inúmeras tentativas de invenção do Brasil eram construídas, inclusive construções oficiais que tiveram signifîcativa importância para sua história. É o que podemos observar no mito do "Eldorado brasileiro”, reforçado pela Coroa portuguesa com o intuito de reunir força de trabalho necessária para a empresa colonizadora. Segundo Willi, "essas invenções oficiais do Brasil”, vitoriosas, embora não necessariamente bem-sucedidas, contrastavam as invenções políticas alternativas e derrotadas : os quilombos, a Revolução de Pernambuco, a Cabanagem, a Guerra dos Farrapos, Canudos, e os movimentos sociais do século XX7.

  • 8 Celso, 1997, p. 21 "Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferioridade. (...)

25A proclamação da república, em fins do seculo XIX, iria então marcar a ascensão de novas discussões em torno da idéia de modernização do pais e da função da história. A obra de Afonso Celso, "Porque me ufano do meu pais”, de 1990, foi escrita numa fase correspondente a transição entre o fim do império e início da república. Sua obra pode ser vista como uma tentativa de superação das idéias negativas a respeito do caráter nacional brasileiro, propostos por Silvio Romero, já abordado no início deste breve estudo8.

  • 9 0 ufanismo baseou-se, sobretudo, nas qualidades naturais do pais, como forma de valoriza-lo.

26Diferentes correntes nacionalistas do início do século XX tentavam explicar ou definir a questão identitária brasileira. A história produzida durante o período republicano vislumbrava reconstruit a história brasileira onde apareceria com mais veemência a visão positiva da ascendência das très raças formadoras, apesar do "mal-estar” ainda reinante por parte de alguns autores. Aparecerá igualmente neste período a idéia do “brasileiro cordial”, uma super valorização das belezas naturais do pais, da região tropical e do homem que nela habitava. Podemos observat o nascimento de um nacionalismo do tipo ufanista9. As primeiras décadas da república, proclamada em 1889, veria nascer variadas concepções de nações e nacionalismo brasileiro, dentre as quais priorizaremos aquelas defendidas pelo intégrantes do movimento modernista brasileiro.

27De essencial importância para a questão identitária nacional brasileira, a Semana de Arte Moderna representou uma forma de expressão de nacionalismo, nacionalismo este ligado à idéia de nação definida como o conjunto da sociedade brasileira do passado e do presente portadora de suas características culturais, seus interesses econômicos, políticos e sociais. Sentimento este que perpassava primeiramente pelo processo de valorização da cultura percebida a partir do conceito de mestiçagem num primeiro momento.

28Este importante movimento artístico, político e social, nasceria com o advento da Semana de Arte Moderna realizada em fevereiro de 1922. Ocorrido no teatro municipal da cidade de São Paulo, é tido como o marco do início do modernismo no Brasil. O movimento modernista pretendeu colocar o Brasil em contato com as principais correntes européias e ao mesmo tempo defender a chamada consciência da realidade brasileira. Violentas críticas foram direcionadas à sociedade aristocrática ligada a produção cafeeira. Contrariamente ao modernismo na Europa, o movimento modernista brasileiro não pretendeu a ruptura com a tradição. Os artistas depreenderam um comportamento de contestação por acreditarem que era necessário uma ruptura com o conservadorismo artístico brasileiro.

29O movimento modernista representou um marco na maneira de pensar e de escrever o Brasil, apesar das divergências de ordem política, ideológica e estética, entre seus participantes. Pode ser percebido um interesse pela construção da imagem do pais que acreditavam ser o Brasil real, diferente da imagem oficial. Para tanto era necessário denunciar a miséria, o subdesenvolvimento e os aspectos considerados “atrasados” naquele Brasil do início do século XX. Sentia-se ainda a necessidade da valorização de uma língua tipicamente brasileira em oposição a influência do português falado em Portugal. Os modernistas fizeram da manifestação artística uma tentativa de construção da identidade nacional, tentando produzir uma arte que revelasse uma identidade nacional.

30O evento juntou ao mesmo tempo pintura, escultura, arquitetura, literatura e música e propunha a liberdade de expressão para melhor poder transmitir o que entendiam por identidade nacional. Os modernistas tentaram restaurar a dignidade da língua e das manifestações populares, desprezadas na época por uma sociedade que se posicionava em direção da produção cultural européia. O que náo quer dizer que o modernisme brasileiro não tenha recebido grandes influências do velho continente, sobretudo francesa : tal é a sua grande contradição.

31Em 1925, o autor modernista Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral lançaram o "Manifeste de Poesia Pau-Brasil” sob o quai reforçaram a idéia de criação de uma arte assentada sobre as especificidades culturais do povo brasileiro. Em 1928 foi lançado o "Manifeste Antropófago”, de Oswald de Andrade, através do qual o autor propunha "devorar” a influência estrangeira, o que significa dizer que aceitava-se as influências de outras culturas sobre a do Brasil para melhor reforçar as características nacionais na arte e na literatura. O modernisme brasileiro representou um movimento que pretendeu descobrir as raízes brasileiras, numa tentativa de ruptura com a cultura portuguesa fortemente presente no pais, é o que podemos perceber no Manifeste Antropófago de Oswald de Andrade,

  • 10 Andrade, 1928.

Só a Antropofagia nos une Economicamente. Filosoficamente. Unica lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismes, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. (...) Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. (...) A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica D. Joao VI : –‘Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça !’ Expulsamos a dinastia. É précisé expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte10.

  • 11 Teodoro, 1999, p. 72.

32O Brasil contemporâneo ao movimento modernista contava com uma certa ascensão econômica e social dos imigrantes no sentido de valorização da sua personalidade étnica e conseqüentemente uma supervalorização da raça branca como valor fundamental. Como observa Maria de Lourdes Teodoro, pode-se perceber que na literatura brasileira os grupos étnicos e culturais numericamente menos representados (sírio-libaneses, japoneses, chineses e outros) são menos evocados. Constatação que révéla para a autora, não o seu menor peso em relação à construção identitária, mas o modelo de identidade cultural sonhada. Um modelo de identidade cultural sonhada profundamente arraigada à uma visão etnocêntrica que apresentava-se hostil em relação ao negro11. Um modelo de identidade pautado em teorias racistas que ligavam comportamento social à características biológicas, teorias que já começavam a receber sérios golpes na Europa.

33O debate em torno da questão identitária girava em torno da língua, cultura e notadamente da idéia de “assimilação”. A concepção de identidade cultural exige, como vimos, um certo conhecimento do passado, passado este, que para Mário de Andrade era possível relembrar sem, no entanto, acentuar o sentimento de inferioridade nascido das comparações com o velho continente.

  • 12 Bastide, 1943.

34Para Roger Bastide, o trabalho de defesa da raça negra realizado pelos próprios negros e mestiços jamais fora prioridade do movimento modernista como preconizaram alguns autores12.

  • 13 Teodoro, 1999, p. 79.
  • 14 Verger, 1959, p. 24.

35Se houve um grupo étnico efetivamente defendido por este movimento, este grupo foi o dos brancos e, de uma maneira mais simbólica os indígenas, mas como “criadores de mitologias" e não como elemento componente da sociedade moderna e urbana. No entanto, isto não significa dizer que os modernistas nâo se interessaram pelos negros, mestiços e indígenas, pois não teria sido possível pensar em uma originalidade cultural brasileira ignorando-os. Podia ser claramente percebido em Oswald de Andrade e Mário de Andrade uma vontade de integrat os elementos raciais e culturais que caracterizavam a sociedade brasileira13. Elementos da cultura africana, tais como feiticeiros, que parecem ser vistos como negatives, no Brasil estavam incorporados à cultura popular em gérai e vividos de maneira positiva nas variadas escalas sociais, como assinala Pierre Verger14.

36Poetas e escritores do movimento modernista demonstraram duas características em comum, quai seja, a necessidade de inserir seu meio sociocultural em suas obras literárias e igualmente a necessidade de uma revolução estética. Características que a autora Maria de Lourdes Teodoro, aponta como ponto de similaridade entre o movimento modernista brasileiro e o Movimento da Negritude ocorrido nas Antilhas.

  • 15 Andrade, 1974, p. 250.

37Em comparação aos dois importantes períodes literários, priorizados em nossa breve exposição, o movimento modernista e também do romantismo, Mario de Andrade constrói uma intéressante visão. O autor modernista diria posteriormente que no que concerne o espírito revolucionário modernista, tão necessário quanto o espírito do romantisme, preparou o estado revolucionário a partir dos anos 30. O movimento modernista teve também como traço distintivo a segunda tentativa de nacionalização da linguagem. Esta similaridade é bem forte. Observa ainda Mario de Andrade que esta necessidade "espiritual” presente nos românticos e igualmente nos modernistas apresentou-se além da questão literária e artística : uma vez que a questão nacional se colocava igualmente15.

38Um dos pilares da cultura brasileira, “Macunaima herôi sem nenhum caráter” é publicado em 1928, por Mario de Andrade. Em Macunaíma, como iremos denominar a obra, o autor reelabora literariamente temas de mitologia indígena e visões folclóricas da Amazônia e do resto do pais, fundando uma nova linguagem literária considerada brasileira. Macunaíma bem como a obra “Memórias sentimentais de João Miramar”, de 1924, e "Serafim Ponte Grande”, publicado em 1933, sendo as duas últimas de autoria do modernista Oswald de Andrade, são consideradas revolucionárias na medida que desafiaram o sistema cultural vigente propondo, através de uma nova organização da linguagem literária, o lançamento de outras informações culturais, diferentes em tudo das posições mantidas até então na sociedade brasileira.

39A obra Macunaíma, considerada nacionalista e sem xenofobia, é a que melhor concretiza as propostas do Manifesto Antropófago que buscava uma relação de igualdade real da cultura brasileira com as demais. Não apresentava a rejeição pura e simples do que vem de fora, mas propunha consumir o que há de bom na arte estrangeira, aplicados a um vasto desenvolvimento das raízes culturais brasileiras. Chama atenção em Macunaíma a abundância de enumerações de danças tribais e a mistura de elementos das diversas regiões do pais, buscando desregionalizar sua obra, e procurando conceber o Brasil como entidade homogênea – num conceito étnico nacional e geográfico. Em contraposição ao forte sentimento régional présente na cultura brasileira como desenvolvido anteriormente no inicío deste estudo.

  • 16 Teodoro, 1999, p. 156.

40A autora Maria de Lourdes Teodoro ressalta, ainda na obra Macunaíma, o episódio do linchamento em São Paulo, a utilização da língua como elemento de expressão cultural e de defesa da integridade física dos indivíduos. Podendo ser ainda evocativa do discurso étnico da identidade brasileira. As raças e a mestiçagem provocaram os encontros dos personagens de Mario de Andrade em Macunaíma16.

  • 17 Ibid, p. 265.

41Macunaíma pode ser visto a partir de um idéal de "eu” deslocado em direção do continente europeu ou do tornar-se “Saci”, do ponto de vista brasileiro, expressão de um idéal de "eu” contestado significative da hesitação perpétua dos brasileiros entre um idéal de sociedade euro-americana e uma identidade majoritariamente vivida. Quando Macunaíma pensa em partir para a Europa é devido a idéia de encontrar seu talismá. O autor se posiciona em direção da Europa mas para melhor se armar contra seus compatriotas numa incessante defesa do Brasil dos brasileiros. Mario de Andrade tentou conciliar o mundo branco com a necessidade de conhecer o mundo original dos brasileiros, assumindo assim as culturas destruídas pelo colonizador17.

42Na obra de Mario de Andrade, Macunaíma consegue, com a ajuda de outros protagonistas, dentre eles seus dois irmãos, recuperar o talismá. Seu retorno à floresta pode significar o retorno às condições de vida típicas do Brasil rural, onde se podia perceber a presença de doenças endêmicas, onde os doentes sâo eram tratados no "maior hospital do mundo”, situado em São Paulo. O trabalho comum de procura da Muiraquitã não deixa de ter uma ligação com o discurso regionalista, tão présente no pais como já observado anteriormente, a partir do momento onde a ideología que os une em torno da procura do talismã exige a uniáo das três forças.

  • 18 Teodoro, 1999, p. 273.

43O autor, traz à tona a presença africana dentro do contexto social brasileiro, assim como a presença dos indígenas, japoneses e mestiços, não de maneira mítica, mas como indivíduos inseridos no seio de uma sociedade e de seus problemas. O que foi possível na medida em que a cultura popular preservava seus valores e sua maneira de ser, mais ou menos assumidos pelas elites brancas. O modernisme brasileiro desejou fixar, entre as tradições européias e nacional, sua maneira própria de expressão, combatendo o vazio deixado por uma "cultura importada”. Mais do que a necessidade de preencher o vazio, a autora Maria de Lourdes Teodoro atribui à aurores como Mario de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade a negação da existência deste vazio cultural através da afirmação da existência de uma cultura nacional rejeitada por esta mesma elite18,

  • 19 Teodoro, op. cit., p. 261.

44A amizade reinante entre o très amigos représenta os três grupos étnicos brasileiros, e indica uma tendência de reduzir os aspectos dos conflitos de ordem étnica e/ou racial que poderiam estar présentes na obra. Essa relação amical porém não é reveladora de uma realidade portadora de desigualdades raciais, mas sugere, ao contrário, a absurdidade de tal conflito19.

45Podemos fazer aqui uma referência com a construção do mito da democracia racial que faz alusão igualmente a convivência ordeira e pacifica entre os três “irmãos” ou grupos étnicos fundadores da sociedade brasileira. Mito este construído como forma de fazer frente ao mal-estar das eûtes brasileiras em relação à presença do negro, dentre outros motivos. A mistura com as raças diras inferiores era vista como uma vergonha nacional e mal-estar gérai, sobretudo por parte das elites que se identificavam muito mais com a Europa. A mestiçagem passa então a ser supervalorizada e elevada a categoria de especificidade nacional, num processo de construção de uma identidade ressentida. Em nossa visão uma solução “à brasileira” e uma tentativa de inversão do processo de percepção do brasileiro de si mesmo. Graves problemas sociais daí originaram, dentre os quais a falsa idéia da inexistência de preconceitos raciais, não sem a luta de grupos negros no sentido de denúncia, conseqüências essas que nâo serão objeto de nossas análises no momento, apesar da seriedade e importância que o tema exige.

46O contexto de formação social e identitário brasileiro constituiu-se a partir de um longo processo de imigração, onde vários países formaram o contingente de imigrantes que foram confrontados a um sistema herdeiro da estrutura em geral portuguesa, que posteriormente poder-se-ia chamar brasileira. A construção identitária baseada num sentimento de um destine comum acabaria que se sobrepor às questões relativas às identidades grupais, num contexto de grande desigualdade social. A desigualdade pode conduzir certes grupos, a se considerarem os únicos représentantes destas sociedades seja pela raça, seja pela escolha religiosa ou posiçáo ocupada no interior das classes sociais.

47Se dentro de lima mesma sociedade alguns se identificam mais com a cultura européia e outros com a cultura africana, indígena ou asiática, não se pode negar que a escolha prioritária de uma destas acabaria pot solapar o processo de identidade étnica dos demais, questão bastante contemporânea cujas soluções ainda são desprovidas de consenso.

  • 20 Ferreira, 1822.

48Para as elites brasileiras, a cultura ocidental representava o ideal de “eu”, motivo pelo qual a aproximação com o ocidente fora reforçada através da formação educacional. Era preciso estar preparado para assumir uma posição administrativa ou política significava, além de estar em dia com as teorias e produções científicas européias. Assim testemunhava o jornal conservador, “O Espelho”, em 1822, ao listar o nome dos brasileiros que haviam se formado nas universidades européias na tentativa de convencer o governo português da capacidade dos mesmos em gerir os negócies pūblicos20.

49A matriz portuguesa era ora reivindicada, ora negada, podendo mesmo ser percebido a existência de um forte sentimento antilusitano. Apesar da violência praticada contra os povos indígenas, existia igualmente uma matriz indígena e uma matriz africana onde a aceitação estava présente entre os brasileiros em gérai, podendo ser encontrado nos contos, lendas e mitos populares.

50Este distanciamento de Portugal, atrelado a outros motivos, dentre os quais, a necessidade de substituição de mão-de-obra escrava, impulsionaria os brasileiros représentantes das elites a reforçar seus laços com a Europa e atribuir às características raciais um peso ainda maior. Havia grande dificuldade de entendimento da complexidade social do pais e, igualmente, de aceitação certes grupos étnicos como indivíduos membres da sociedade brasileira. O movimento modernista seguia num sentido contrário, na medida em que ele não renegava a nenhum destes très componentes étnicos seu espaço na construção da identidade brasileira.

Bases da identidade nacional brasileira

51A identidade nacional brasileira oficialmente baseia-se sobre a idéia de nação mestiça, constituída a partir da inter-relação de très “raças” ou componentes étnicos, a indígena, a branca e a negra. Idéia de mestiçagem que já no século XIX podia ser percebida nas sugestões de Von Martius, já comentado, e que ganhou maior aceitação a partir de meados do século XX.

  • 21 Freyre, 1974, p. 417.

52Um dos componentes étnicos, o indígena, fora após a independência elevado a categoria de herói nacional sobretudo pela literatura romântica. Este fora tomado como simbolo de liberdade e de resistência ao julgo lusitano. Membres da aristocracia rural escravista, tomados de um forte sentimento nativista, chegaram mesmo a abandonar seus sobrenomes portugueses e substituí-los por nomes indígenas. Como exemplo, podemos apontar o visconde de Jequitinhonha, chamado Francisco Gomes Brandão, que optou por mudar seu nome tâo português por Francisco Gê Acaiaba Montezuma21. Apesar da história nacional ter sido bem mais marcada pela presença do negro e do mulato, nesse momento, é o indígena que será elevado a herói nacional.

53O indígena passou a ser idealizado como ícone da nacionalidade nos grandes romances, enquanto na realidade sofria os riscos de extinção. Porém, o indígena defendido pela literatura era o “bom selvagem” que vivia em sociedades indígenas tais como as dos Tupis ou Guaranis, desaparecidos ou assimilados. A mesma atenção não era concedida aos Aimorés ou aos Botocudos, cuja selvageria e insubmissão eram constantemente denunciados. Isso numa época onde a escravidão indigena temporária oriunda da "guerra justa” não havia por inteiro desaparecido. Num momento onde ainda existia a forte presença dos "bugreiros”, homens especializados na caça de indígenas, que praticavam espoliações e, muitas vezes, transferêneias forçadas de sociedades inteiras.

  • 22 Lilian Moritz Schwartz apud Bennassar, 2000, p. 475.

54Em 1908, o diretor alemão do Museu Paulista, Von Ilhering, defendeu no jornal "O Estado de São Paulo" a exterminação dos indígenas kaigangs presentes dentro do seu Estado, uma vez que eram vistos como obstáculo ao desenvolvimento da civilização22.

55As bases da identidade nacional eram aos poucos erigidas em torno do conceito de civilização tal como se apresentava em fins do século XIX. Conceito que repousava sobre a crença na existência de diferentes raças humanas e igualmente sobre o darwinisme social, baseada numa visão evolucionista das sociedades. Dentro deste modelo defendido encontrava-se no topo as sociedades européias, tidas como modelo de civilização a ser seguido,

56A questão da identidade nacional se cristalizaria, em fins do século XIX, período em que o pais acabara de abolir a escravidão, em torno do conceito de raça. Foi em torno desta questão que grande número de autores se esforçaram para entender a nação brasileira em formação. Porém, não estava ainda explicado o lugar igualmente ocupado pelos très povos fundadores na construção da nação, sobretudo do lugar do negro, cujos costumes eram associados à idéia de primitivismo. Visão que podemos perceber numa carta de um leitor publicada num jornal da cidade de Salvador intitulado “Jornal de Notícias”, em 23 de fevereiro de 1903 que dizia :

  • 23 Rodrigues, 1932, p. 257.

O carnaval deste ano, em detrimento do patriotisme e da civilização que eu havia formulado, se traduziu, com algumas raras exceções, pela exibição pública do candomblé. Se um estrangeiro viessejulgar a Bahia através de seu carnaval, não poderia deixar de situá-la ao lado da África. Para a nossa vergonha, encontra-se entre nós uma comissão de austríacos que não deixarão certamente de registrar este fato dentre suas impressões de viagem e de divulgá-las em seus jornais cultos da Europa23.

57A recente república viria, em 28 de junho de 1890, adotar medidas de discriminação étnica. O decreto condicionava a entrada de imigrantes da Ásia e da África à prévia autorização do Congresso. Percebia-se uma forte necessidade de identificação com a Europa e uma verdadeira adesão à política do branqueamento da população. Em 1921 foi apresentado no Congresso nacional um projeto reclamando a interdição da entrada de imigrantes negros. Grandes instituições existentes no pais inseriram-se dentro deste debate racial, dentre as quais faculdades de direito, de medicina, de história e geografia e museus etnográficos, assentados sobre os modelos evolucionistas e sobre o darwinismo social.

58Apresentavam-se correntes pessimistas quanto ao futuro do pais uma vez que este contava com a presença de “raças inferiores” e igualmente com a degeneração mestiça. Era grande o mal-estar entre as elites brasileiras.

59A faculdade de direito da cidade de Recife, por exemple, foi fortemente influenciada pela filosofia alemã de Haeckel e Buckle, igualmente por autores tais como Spencer, Darwin, Littré, Gustave Le Bon, Gobineau ou Vacher de Lapouge. Em Salvador, também a faculdade de medicina iria concéder um lugar privilegiado à problemática racial. Raimundo Nina Rodrigues, grande nome da medicina legal brasileira, dedicará intímeros artigos a esta questão, dentre os quais, podemos citar os sugestivos títulos publicados em sua maioria na “Gazera medical da Bahia” : “Raça e civilização” (1890), “Raça e degeneração” (1887), “Os mestiços brasileiros” (1890), "O cruzamento racial” (1891), “Mestiçagem, degeneração e crime” (1899), “A raça e seus odores” (1921).

  • 24 A Guerra de Canudos ocorreu entre 1893 a 1897 na então comunidade de Canudos, situada no interior d (...)
  • 25 Bennassar, 2000, p. 477.

60Comportamentos sociais eram explicados a partir da influência acima citada. Nina Rodrigues consagrou váries estudos sobre as “epidemias da loucura religiosa” no Brasil, apresentados como a expressão de uma "alienação coletiva”, como definiria o autor. Aos seus olhos as “patologias délirantes” que podiam ser percebidos em Canudos24, eram explicados pelo fato de que a grande maioria da população dirigida por Antônio Conselheiro, era recrutada no seio de uma população mestiça onde restavam ainda resíduos ou forte influência dos ascendentes selvagens e bárbaros, dentre os quais indígenas e negros25.

61Em sua obra “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, publicada em 1894, Nina Rodrigues apresenta de maneira alarmista o futuro do pais,

  • 26 Rodrigues, 1957, p. 219.

A civilização ariana esta representada no Brasil por uma fraca minoria da raça branca que possui a responsabilidade de defendê-la, não somente contra os atos anti-sociais – os crimes – de seus próprios representantes mas também contra os atos anti-sociais das raças inferiores, mesmo que se tratando de verdadeiros crimes aos olhos destas raças ou mesmo que se trate apenas de manifestações do conflito da luta pela existência entre a civilização superior de raça branca e o esboço das raças conquistadas ou subjugadas26.

62O autor apresenta, na obra acima citada, um ensaio de psicologia criminal brasileira, chegando a sugerir a adoção de tratamento penal diferenciado segundo a origem racial, uma vez que, tornar os bárbaros e selvagens inteiramente responsáveis era tão injuste quanto atribuir responsabilidade às crianças e dementes.

63As primeiras décadas do século XX no Brasil veria proliférai’ diversas correntes em favor do branqueamento da população. Visão já présente nos discursos dos membros da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, no que diz respeito às raças desejáveis para substituir a mâo-de-obra escrava que se extinguiria em fins do século XIX. Discursos assentados sobre a presunção de superioridade da raça branca, considerada mais avançada, e que defendiam a imigração massiva de europeus cujo objetivo era promover ‘ naturalmente” o clareamento da população.

64Percebe-se uma adaptação do racismo à realidade nacional onde a mestiçagem era ao mesmo tempo vista como fonte de decadência e, paradoxalmente, encarada como solução a partir da estimulação de imigração européia para promover o clareamento da nação brasileira.

65Em 1911 teve lugar em Londres o primeiro Congresso Mundial das Raças onde João Bastista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, proferiu, sob o título de “Sobre os mestiços no Brasil”, as seguintes palavras :

  • 27 Skidmore, 1976, p. 83.

Os filhos dos mestiços já représentant na terceira geração todas as características fisicas da raça branca [...]. Em virtude deste processo de homogeneização étnica, é de se esperar que um século a mais sera suficiente para que os mestiços tenham desaparecido no Brasil. Isto irá coincidir com a extinção paralela da raça negra entre nos27.

66Começava-se a assentar a concepçáo mestiça da naçâo brasileira. Porém, a própria idéia da mestiçagem obteve diferentes interpretaçôes e aceitações a partir da segunda metade do século XIX. Ora vista como a melhor maneira de representação da nação, como exemplo apontaremos Von Martius, ora vista unicamente como fator de decadência, por contar com a presença de raças tidas como inferiores, como vimos em Raimundo Nina Rodrigues e inúmeros outros aurores. Em outros momentos, como uma resposta a esta segunda visão, seu estímulo, como fator de clareamento mediante políticas de incentivo à imigração européia. Na década de 1930, a idéia de mestiçagem iria se impor como interpretação oficial da identidade nacional.

  • 28 Freyre, 1974, p. 435.

67Contrariamente ao pensamento dominante do início do século XX, Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, tece elogiosos comentários voltados aos negros. Para o autor, a construção da identidade nacional brasileira dévia muito aos africanos, aos quais dedica dois dos cinco capítules de sua obra. A presença do elemento negro passa a ser valorizada e igualmente é apresenta uma tentativa de substituição da visão pessimista acerca da mestiçagem, outrera vista como fator de decadência. Freyre durante seus estudos na universidade de Columbia fora intensamente influenciado por Franz Boas, à ocasião seu mestre, e a quem Freyre diz ter aprendido “a considérât como fundamental a distinção entre raça e civilização, a separar os efeitos de relação puramente genéticas de influência sociais, herança cultural e meio”28 .

  • 29 Chacon, 1999, p. 255.

68Grande tentativa de valorização da contribuição africana à cultura brasileira pode ser percebida na Primeira Semana Afro-Brasileira, organizada em 1934 por Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano, que reuniram em Pernambuco antropólogos como Melville J. Herskovits, contemporâneo de Freyre e de Franz Boas em Colúmbia, também Arthur Ramos e Édisson Carneiro, Luis Câmara Cascudo, escritores como Jorge Amado e Mário de Andrade dentre outros. Este primeiro Congresso Afro-Brasileiro denunciava questões que diziam respeito à nacionalidade brasileira e aos desafios da inclusão das minorias. Aquele mal-estar inicialmente présente na sociedade brasileira continuaria mesmo após a abolição da escravidão e não se extinguiria com o advento da República. Somente com o desenvolvimento da ciência mais notadamente da antropologia e com a eliminação do conceito biológico da raça é que uma nova concepção do brasileiro poderia ser construida29.

69Nos anos 30 fora igualmente a africanidade, mestiçagem biológica e cultural, erigidas como grande referêneia da nacionalidade. A feijoada tida à época como prato típico dos escravos, ganhava assentos de prato nacional. A capoeira, luta de origem angolesa, enquadrada como delito pelo código penal de 1890, ocasião a quai era fortemente reprimida, ascendia em 1937 ao status de esporte nacional. Porém, perceber-se-ia uma tentativa crescente de atribuição de valor positive a questão da mestiçagem onde seria construído o paradigma da identidade nacional mestiça e do "mite da democracia racial” brasileira por parte do Estado Novo. O dia 1° de maio de 1939 séria fixado como "dia da raça” que sobre a vigilância das autoridades, procurava-se construit a idéia da fraternidade mestiça nacional. Os sérios problemas résultantes desta falsa visão, que interpretava a sociedade brasileira como desprovida de racismo e a elevava a categoria de democracia racial, não são alvo de nossos estudos no momento, apesar de sua complexidade e importância. Nos dedicamos sobretudo a analisar as bases sobre as quais a identidade nacional fora construída.

Considerações finais

70Na segunda metade do século XIX, ainda havia uma carência de sentimento nacional. O que existia correpondia a um sentimento régional e não ao nationalismo, que veria suas primeiras correntes nascerem somente durante a República Velha. Por ocasião da independência do Brasil em 1822, ainda éramos chamados os portugueses da America, como forma de distinção entre os portugueses da metrópole e o povo nascido na colônia.

71Podemos conduit que ocorreu num primeiro momento o surgimento de uma necessidade de unidade nacional, que iria sendo costurada, como uma longa colcha de retalhos a partir dos pedaços regionais acrecentados, moldando assim a forma da nação. Os variados fragmentos que comporiam a riqueza do produto final têm suas raízes na diversidade das regiões. Não podemos, contudo, apontar uma data precisa para o surgimento de uma consciência de identidade nacional brasileira. Como já afirmado, esta consciência não precedeu a independência do Brasil mas foi sendo construída a partir dela, perpassando pelo régional primeiramente. Percebemos que esta construção foi sendo lentamente desenhada no território nacional conjugado a outros fatores que levariam a questões referentes à composição da nação. Questões complexas que tratamos de abordar apenas alguns aspectos considerados mais relevantes.

Qual a importância da identidade nacional para os Estados modernos?

O conceito de identidade nacional, objeto de análise deste trabalho, refere-se a uma modalidade de identidade coletiva historicamente ligada à formação do Estado Moderno e que possui grande relevância para a compreensão da Teoria do Estado contemporânea.

Qual a importância da construção de uma identidade nacional?

Portanto, um dos fortes aspectos da identidade nacional brasileira é a língua. Há quem defina a identidade nacional como um conceito que indica a condição social e o sentimento de pertencer a uma determinada cultura. E muitos entendem que a cultura e a identidade estão inteiramente ligadas.

O que a construção de uma identidade nacional?

A identidade nacional é construída, dialogicamente, a partir de uma autodescrição da cultura. Dois grandes princípios regem as culturas: o da exclusão e o da participação. Com base neles, elas autodescrevem-se como culturas da mistura ou da triagem. A cultura brasileira considera- se uma cultura da mistura.

Qual a importância da historiografia para a construção das identidades nacionais?

O ensino de História possui objetivos específicos, sendo um dos mais relevantes o que se relaciona à constituição da noção de identidade. Assim, é primordial que o ensino de história estabeleça relações entre identidades individuais, sociais e coletivas, entre as quais as que se constituem como nacionais.